Antropólogo vê sua família evangélica e periférica ser contaminada pelo 'vírus Marçal'
Por que uma família evangélica de uma igreja tradicional se tornou entusiasta de Pablo Marçal? E por que a periferia vem rejeitando a esquerda? Essas são as perguntas que intrigam meu interlocutor, que observa o mundo ao seu redor aderir apaixonadamente à campanha do ex-coach.
Podemos chamar esse interlocutor de André. Ele se encaixa na descrição da antropóloga Lila Abu-Lughod para "halfie" (de "half" em inglês), uma pessoa dividida entre dois mundos. Sua família está há quatro gerações em uma das denominações evangélicas mais antigas do país. Ao mesmo tempo, ele cursou antropologia em uma universidade federal, convivendo e absorvendo a visão de mundo da esquerda.
André mora com os pais e o irmão em uma casa alugada na periferia da
cidade. Eles têm uma microempresa, empregam funcionários e atendem
principalmente pequenos negócios em favelas.
Foi André quem apresentou Marçal à família. Ele conheceu o ex-coach
através de vídeos no Instagram e começou a segui-lo como se assistisse a
uma mistura de O Aprendiz, esportes radicais e "freakshow".
André vê Marçal como um personagem entre cômico e bizarro, alguém que se imagina super-herói, ensina a pousar helicópteros em pane e a lutar com tubarões e leva homens para reencontrar sua masculinidade em desafios perigosos e mal planejados. Mas ele se surpreendeu ao perceber que, entre um vídeo e outro, seus pais e irmão começaram a dizer: "Isso que ele diz faz sentido".
Foram os pais de André que o informaram que Marçal seria candidato a prefeito. Hoje ele observa, espantado, muitas pessoas na rua onde mora, funcionários da microempresa e clientes que atendem vestindo bonés de Marçal e acompanhando os debates e sabatinas com o ex-coach.
Um aspecto importante da observação de André: Marçal não conquistou sua família pela religião. Pelo contrário, seu pai deixou de assistir aos vídeos por meses depois de vê-lo orar para que uma cadeirante se levantasse e, em seguida, culpá-la pela falta de fé. A religiosidade de Marçal é apenas um complemento, identificando-o como alguém com valores morais semelhantes.
Se não é a religião, o que atrai a família de André a Marçal? Dois fatores se destacam: ser antiesquerda e pró-mercado. Para eles, a esquerda é vista como corrupta, inimiga do cristianismo por defender regimes que perseguem cristãos, antifamília por promover pautas progressistas, além de oportunista por buscar igrejas apenas em época de campanha.
Ser pró-mercado, para eles, tem mais a ver com prática do que com ideologia. Como microempreendedores, eles gostam da ideia de ter alguém na prefeitura que entenda desafios de quem tem o próprio negócio. Também são sensíveis ao discurso de Marçal, que incentiva sonhar com uma vida melhor e alcançar esses sonhos com empenho e disciplina.
A família de André já descartou Jair Bolsonaro como representante de seus anseios. Votariam nele apenas para derrotar um oponente de esquerda. Isso indica que há um contingente em igrejas tradicionais que está disposto a ignorar as recomendações de seus pastores. E sugere que lideranças cristãs, assim como alguns políticos de direita, também estão sendo percebidas como parte do sistema.
*Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliano-spyer/2024/09/evangelicos-perifericos-trocam-bolsonaro-por-marcal.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista
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