Confira a seguir a primeira parte da entrevista de Rashid Khalidi a Tariq Ali, na qual o historiador palestino aborda a história política e intelectual do movimento nacional da Palestina, suas relações com os regimes árabes vizinhos, as hipocrisias do dito “processo de paz” e os vasos comunicantes entre Israel e o complexo-industrial-militar estadunidense.
Há 81 anos nascia Tariq Ali, no Paquistão. Jornalista, escritor, historiador, cineasta e ativista político, atualmente vive na Inglaterra, onde colabora com diversos periódicos e é um dos editores da revista New Left Review. É especialista em política internacional e tem se destacado com análises sobre o Oriente Médio e a América Latina. No último número da revista Margem Esquerda, Tariq Ali entrevistou o historiador palestino Rashid Khalidi. Confira a seguir a primeira parte da entrevista que aborda a história política e intelectual do movimento nacional palestino, suas relações com os regimes árabes vizinhos, as hipocrisias do dito “processo de paz”, os vasos comunicantes entre Israel e o complexo-industrial-militar estadunidense, as realidades da ocupação e os cálculos (ou erros de cálculos) do Hamas, bem como os desafios e as perspectivas para as próximas décadas.
Tariq Ali entrevista Rashid Khalidi
Rashid Ismail Khalidi é um dos mais proeminentes historiadores da Palestina e do Oriente Médio da atualidade. Advindo de uma família notável de Jerusalém, nasceu em Nova York no fatídico 1948 – sua família, assim como centenas de milhares de palestinos expulsos, não pôde retornar à sua terra natal após a Nakba. Filho do escritor e diplomata palestino Ismail Khalidi e sobrinho de Hussein Khalidi, que fora prefeito de Jerusalém (1934-37), seu interesse em história e geopolítica começou em casa. Nas mesas de jantar, era comum o assunto percorrer os bastidores da política internacional. Seu pai trabalhou por uma década e meia na Divisão de Assuntos do Conselho de Segurança da ONU e estava lá durante momentos-chave da política da região, como a Guerra dos Seis Dias, em 1967. “Desde cedo, aprendi a perceber a diferença entre o que sabíamos ser verdade e o que era noticiado”,1 conta.
Depois da morte do pai, em 1968, Khalidi traçou uma trajetória acadêmica prestigiosa. Formou-se em Yale, em 1970, e obteve seu doutorado na Universidade de Oxford, em 1974. Sob orientação de Albert Habib Hourani, apresentou um estudo aprofundado da política britânica no Oriente Médio pré-Primeira Guerra Mundial, analisando os antecedentes do Acordo Sykes-Picot e da Declaração de Balfour. Na sequência, mudou-se para o Líbano, país de sua família materna, e lá, entre 1976 e 1983, lecionou na Universidade Americana de Beirute e na Universidade do Líbano, além de ser pesquisador do Institute for Palestine Studies, cofundado em 1963 por seu primo, o renomado historiador Walid Khalidi. Acompanhou em primeira mão as tensas tratativas pela evacuação da OLP de Beirute diante da invasão israelense em 1982.2
Após o massacre de Sabra e Shatilla e com o acirramento das tensões no país, a família partiu para os Estados Unidos com um recém-nascido. A previsão era passar um ano fora, mas a guerra civil libanesa se agravou eles nunca voltaram para sua casa em Beirute, onde os três filhos haviam nascido. Khalidi passou dezesseis anos lecionando na Universidade de Chicago, onde também dirigiu o Centro de Estudos Internacionais. Entre 1991 e 1993, aconselhou a delegação palestina nas negociações de paz em Madri e Washington, tema de seu livro Brokers of Deceit [Negociadores do engano].3 Em 2002, passou a editar o Journal of Palestine Studies e, no ano seguinte, assumiu a recém-criada cadeira Edward Said de estudos árabes na Universidade de Columbia.
No primeiro semestre de 2024, sua universidade foi palco de uma série de ocupações estudantis contra o massacre patrocinado pelos EUA em Gaza. Em maio, horas depois da tropa de choque invadir um dos prédios ocupados e prender dezenas de estudantes, Khalidi fez um discurso apoiando os manifestantes e condenando a administração universitária. Depois de mais de vinte anos à frente da cátedra, ele se aposentou em junho, desvinculando-se da Columbia.
Nesta edição, a Margem Esquerda traz uma densa conversa entre Khalidi e Tariq Ali. Publicada com o título “The Neck and the Sword”4 [O pescoço e a espada], a entrevista versa sobre a história política e intelectual do movimento nacional palestiniano, suas relações com os regimes árabes vizinhos, as hipocrisias do dito “processo de paz”, os vasos comunicantes entre Israel e o complexo industrial-militar estadunidense, as realidades da ocupação e os cálculos (ou erros de cálculo) do Hamas, bem como os desafios e as perspectivas para as próximas décadas.
Tariq Ali – Comecemos
com o presente, não só no sentido dos horrores infligidos à Palestina
agora, mas o presente como parte do ainda ativo passado palestino. A
brutal repressão anglo-sionista da Grande Revolta Árabe de 1936-39 foi
seguida pela Nakba de 1948, a Guerra dos Seis Dias de 1967, o cerco a
Beirute de 1982 liderado por Ariel Sharon, os massacres de Sabra e
Shatila, as duas Intifadas e a contínua chuva de terror por parte de
Israel desde então. Ainda assim, o genocídio do pós-7 de outubro parece
ter um impacto global maior que todos esses acontecimentos.
Rashid Khalidi
– Sim, alguma coisa mudou em nível global. Não sei por que aqueles
episódios históricos não tiveram o efeito de mudar completamente a
narrativa – a narrativa popular, em especial. Não quero especular sobre
fatores como as mídias sociais. Mas esse tem sido o primeiro genocídio
que uma geração testemunha em tempo real, nos seus telefones. Foi o
primeiro em tempos recentes em que os Estados Unidos, a Inglaterra e os
países ocidentais foram participantes diretos, diferente dos do Sudão e
de Mianmar? Será que o trabalho dos militantes pró-Palestina sobre uma
ou mais gerações preparou as pessoas para isso? Não sei dizer. Mas você
tem razão quando diz que, como resultado dos horrores infligidos a Gaza
durante oito meses contínuos, e dos que estão sendo infligidos agora,
algo novo aconteceu. O deslocamento de 750 mil pessoas em 1948 não teve o
mesmo impacto. A Revolta Árabe de 1936-39 foi quase completamente
esquecida. Nenhum desses eventos prévios teve um efeito parecido com
esse.
TA – A
Revolta Árabe sempre me fascinou como um dos maiores episódios da luta
anticolonial, que recebeu muito menos atenção do que merece. Começou
como uma greve, depois uma série de greves, até se tornar uma enorme
revolta nacional que deixou os ingleses “nas cordas” por três anos. Você
poderia nos explicar as origens dela, seu desenvolvimento e
consequências?
RK – A Revolta Árabe
foi essencialmente uma revolta popular, em escala massiva. A liderança
Palestina tradicional foi pega de surpresa, assim como Arafat e as
lideranças da Organização para Libertação da Palestina (OLP) foram pegos
de surpresa com a Primeira Intifada em 1987. Ambas as insurreições se
iniciaram com incidentes menores; no caso da Revolta Árabe, foi a morte
em batalha do xeque ‘Izz al-Din al-Qassam em novembro de 1935, por
forças britânicas. Nascido em 1882 em Jableh, na costa da Síria,
al-Qassam foi um intelectual religioso, treinado em Al-Azhar e militante
anti-imperialista que lutou contra as forças ocidentais na região,
começando com os italianos na Líbia, em 1911, depois as forças francesas
na Síria, em 1919-20. Ele se instalou na Palestina controlada pelos
britânicos, onde viveu e trabalhou principalmente entre os camponeses e
os pobres urbanos. O assassinato de al-Qassam teve uma amplitude enorme;
dentro de alguns meses tinha ajudado a detonar a mais longa greve geral
do entreguerras na história colonial. O melhor relato dessa história é
de Ghassan Kanafani, o grande escritor palestino assassinado pelos
israelenses em 1972; era para ser o primeiro capítulo de sua obra sobre a
luta palestina, inacabada quando de sua morte.5
A análise de Kanafani se sustenta até os dias de hoje. Entre outras
coisas, ele salientou o impacto econômico sobre as classes populares do
aumento da imigração judaica para a Palestina nos anos 1930, depois que
Hitler chegou ao poder; a demissão de trabalhadores árabes de fábricas e
obras, conforme a política de “mão de obra exclusivamente judaica”, de
Ben-Gurion; o despejo de 20 mil famílias camponesas das suas terras,
vendidas aos colonos sionistas por donos de terras absenteístas; o
aumento da pobreza. Essas revoltas populares eclodem quando as pessoas
atingem um ponto em que perceberam que não poderiam mais continuar como
antes, e nesse caso a ira social se somou a poderosos sentimentos
nacionalistas e religiosos. Os palestinos se impuseram contra todo o
poderio do Império Britânico, que em um século e meio não havia sido
obrigado a conceder independência a nenhuma colônia, com exceção da
Irlanda em 1921. A Revolta Árabe foi esmagada pelo que ainda era o
império mais poderoso do mundo, mas os palestinos lutaram por mais de
três anos, com cerca de um sexto da população masculina morta, ferida,
presa ou exilada. Nos anais do período entreguerras, foi uma tentativa
sem precedentes de derrubar o domínio colonial. Só foi suprimida com o
envio de 100 mil tropas e a RAF (Força Aérea Britânica). Essa é uma
página esquecida da história da Palestina.
TA – Essa
derrota não levou também a uma desmoralização no seio das massas
palestinas, de modo que, quando a Nakba começou propriamente, em 1947,
eles ainda não haviam se recuperado dos horrores de 1936-39?
RK
– A derrota da Revolta Árabe criou um legado pesado, que afetou os
palestinos por décadas. Como Kanafani escreveu, a Nakba, “o segundo
capítulo da derrota – do final de 1947 a meados de 1948 –, foi notável
por sua brevidade: era apenas o epílogo de um capítulo longo e sangrento
ocorrido entre abril de 1936 e setembro de 1939”.6
O que os britânicos fizeram foi depois copiado em quase todos os
detalhes pelos líderes sionistas de Ben-Gurion em diante. Só por isso já
vale a pena recordar o custo para a sociedade palestina. Pelo menos 2
mil casas foram explodidas, plantações foram destruídas e centenas de
rebeldes foram fuzilados por portarem armas de fogo. Tudo isso
acompanhado de toques de recolher, detenção sem julgamento, exílio
interno, tortura, práticas como amarrar os habitantes dos vilarejos na
frente das máquinas a vapor, como escudos contra os ataques de
combatentes da liberdade. Em uma população árabe de cerca de 1 milhão de
pessoas, 5 mil foram assassinados, mais de 10 mil, feridos, e mais de 5
mil presos políticos foram deixados apodrecendo em prisões coloniais.
TA –
No processo de aniquilação da Revolta Árabe os britânicos deram um
valioso treinamento em contrainsurgência às forças sionistas que estavam
trabalhando com eles.
RK – Sim.
Especialistas em contrainsurgência, como Orde Wingate e outros experts
em tortura e assassinato, ensinaram aos sionistas todas as suas técnicas
coloniais sujas. Os britânicos trouxeram veteranos da Índia, como
Charles Tegart, o notório chefe de polícia de Calcutá, alvo de seis
tentativas de assassinato por nacionalistas indianos. As mesmas
fortalezas e campos de prisioneiros construídos por Tegart estão ainda
em uso por Israel nos dias de hoje. Eles trouxeram gente da Irlanda e de
outras partes do império, como o Sudão, onde Wingate começou, e onde o
primo do seu pai, Reginald Wingate, fora governador-geral e oficial de
inteligência antes disso.
TA –
Orde Wingate, um nome esquecido há muito tempo. Eu duvido que muitos
leitores tenham sequer ouvido falar da sua figura doentia, de quem
[Bernard] Montgomery disse que a melhor coisa que fez foi estar no avião
que caiu e o matou em Burma, em 1944. Quem foi ele? Ele tinha algum
vínculo especial com as forças sionistas? Me lembro vagamente de uma
série da BBC de 1976 em que ele foi retratado como um herói.
RK –
Ele era um assassino colonial de sangue frio, que acabou como
major-general e foi odiado por muitos do seu próprio lado, como as
palavras de Montgomery sugerem; Montgomery também descreveu Wingate como
“mentalmente desequilibrado”. Churchill, que não se fazia de rogado
quando o assunto era infligir sofrimento a populações submetidas, chamou
Wingate de “louco demais para comandar”. Ele nasceu na Índia britânica,
em uma família religiosa da igreja Plymouth Brethren. Cristão
fundamentalista e literalista bíblico, ele promovia a versão do Velho
Testamento de uma redenção judaica. Chegou na Palestina como capitão na
inteligência militar, justamente quando a revolta de 1936 estava
começando. Sabia árabe, aprendeu hebraico e se tornou figura-chave do
treinamento de integrantes do Haganá como “Esquadrões Especiais
Noturnos” – em outras palavras, esquadrões da morte –, que localizavam e
matavam habitantes dos vilarejos palestinos nas montanhas, assim como
os grupos de militares e colonos israelenses fazem hoje. Sua notoriedade
era tamanha que, quando explodiu a guerra europeia de 1939, figuras
árabes proeminentes demandaram que Wingate fosse expulso da região. Ele
foi. Seu passaporte foi carimbado proibindo seu retorno. Seu trabalho
estava feito. Ele treinou muitos dos homens que se tornaram comandantes
do Palmach e mais tarde do Exército israelense, como Moshe Dayan e Yigal
Allon. Vários lugares em Israel carregam seu nome, e ele é corretamente
considerado o fundador da doutrina militar israelense.
TA – Ele os ensinou bem.
RK –
Sim. O que antes fora uma especialidade colonial britânica se
transformou em uma especialidade colonial israelense. Tudo que os
israelenses fizeram, eles aprenderam dos britânicos – incluindo as leis,
as regulações emergenciais de defesa de 1945, por exemplo, que os
britânicos usaram contra a Irgun. As mesmas leis estão ainda vigentes,
agora usadas contra os palestinos. Tudo isso veio do manual colonial dos
britânicos.
TA –
Uma vitória – ou mesmo um empate – da Revolta Árabe teria estabelecido
as bases de uma identidade nacional palestina e aumentado sua força para
as batalhas que viriam. Assim como [Ghassan] Kanafani, você argumentou
que as vacilações da liderança tradicional palestina tiveram um
papel-chave na derrota, curvando-se, como fizeram – na Conferência de
Saint James, por exemplo – aos reis árabes, que haviam sido colocados em
seus tronos pelos britânicos…
RK –
Assim como agora, a liderança palestina estava dividida. Eles estavam
estorvados por sua própria incapacidade de chegar a um acordo sobre uma
estratégia apropriada para mobilizar a população e criar um fórum de
representatividade nacional, uma assembleia popular em que esses
assuntos poderiam ser discutidos. Diferentemente do que ocorreu na
Índia, no Iraque e em outras partes da África, os britânicos negaram aos
palestinos qualquer acesso ao Estado colonial. Então o argumento em
defesa de uma assembleia popular para romper decisivamente com as
estruturas do controle colonial era muito importante.
TA – Outra condição de fundo para a Revolta foi a emergência do fascismo na Europa.
RK
– A partir do momento em que os nazistas tomaram o poder, toda a
situação mudou para os judeus no seu relacionamento com o mundo e com o
sionismo. O que é totalmente compreensível. Isso produziu mudanças na
Palestina também: entre 1932 e 1939, a proporção de judeus na população
cresceu de 16% ou 17% para 31%. De repente os sionistas tinham uma base
demográfica viável para tomar a Palestina, o que não tinham em 1932.
TA – Os palestinos se tornaram vítimas indiretas do judeocídio europeu.
RK
– Absolutamente. Os palestinos estão pagando por toda a história
europeia de ódio aos judeus, desde os tempos medievais. Eduardo I
expulsou os judeus da Inglaterra em 1290, os franceses os expulsaram no
século seguinte, os éditos espanhóis e portugueses, nos anos 1490, os
pogroms russos de 1880 e, por fim, o genocídio nazista. Historicamente,
esse é um fenômeno quintessencial da cristandade europeia.
TA –
E se não tivesse havido um judeocídio na Europa e a Alemanha fascista
tivesse sido somente fascista, sem a obsessão de exterminar os judeus?
RK
– Esse é um grande “e se…”. Mas olhe para a situação em 1939. Já havia
um forte projeto sionista, com apoio imperial britânico, por razões que
nada tinham a ver com judeus e sionismo. Tinha a ver com interesses
estratégicos. A Declaração de Balfour foi feita pelo homem responsável
por emplacar a lei mais antissemita da história do Parlamento britânico,
o Aliens Act de 1905. A classe dominante britânica não se importava com
os judeus per se. Talvez se importassem com a leitura que
faziam da Bíblia, mas eles se interessavam sobretudo pela importância
estratégica da Palestina e do Oriente Médio, como porta de entrada para a
Índia, muito antes de 1917. Esse era o interesse deles, do início ao
fim. Quando foram forçados a sair, em 1948, eles o fizeram porque já
tinham desistido da Índia em 1947, e já não precisavam mais da Palestina
da mesma maneira. Mesmo que Hitler tivesse sido assassinado, haveria um
projeto sionista, com apoio imperial britânico. Ainda assim o sionismo
teria tentado tomar a totalidade do território palestino, que sempre foi
seu objetivo, e ainda assim teria tentado criar uma maioria judia
através de limpeza étnica e imigração. Eu não poderia especular mais do
que isso.
TA – Mas não havia também correntes antissionistas dentro das comunidades judaicas?
RK
– Certamente. Havia judeus comunistas, judeus assimilacionistas. A
grande maioria das populações judaicas perseguidas do Leste Europeu
decidiu emigrar para colônias de povoamento branco: África do Sul,
Austrália, Canadá, Nova Zelândia e, acima de tudo, Estados Unidos;
alguns também foram para a Argentina e outros países latino-americanos.
Essa é a maioria [dos países] para onde a maior parte da população
judaica do mundo foi, além daqueles que ficaram na Europa. O
antissionismo era um projeto judeu. Antes da ascensão de Hitler, os
sionistas eram uma minoria, e seu projeto era altamente contestado nas
comunidades judaicas. Mas o Holocausto produziu um tipo de uniformidade
compreensível no apoio ao sionismo.
TA –
Derrotas costumam ter o efeito de parar tudo por um tempo; aí a
resistência ressurge, de diferentes formas. No caso de 1936-39, contudo,
imediatamente depois da derrota, eclodiu a Segunda Guerra Mundial – que
começou na China, apesar de muitos a chamarem de uma guerra europeia.
Qual foi a atitude da liderança palestina nesse momento? Na Indonésia,
na Malásia, na Índia e em partes do Oriente Médio alguns grupos de
movimentos nacionalistas disseram: o inimigo do nosso inimigo é nosso
amigo, ainda que temporariamente. Sendo o nosso inimigo o Império
Britânico, isso significa alemães e japoneses. Em seu livro sobre o
Egito, Anouar Abdel-Malek escreve que, quando parecia que [Erwin] Rommel
iria tomar o país, multidões se reuniram nas ruas de Alexandria,
gritando: “Adiante, Rommel, adiante!”. Queriam qualquer um, menos a
Inglaterra. Qual foi a reação na Palestina?
RK
– A reação na Palestina foi altamente dividida. A facção minoritária da
liderança se alinhou com os alemães, seguindo o Grande Mufti. Ele tinha
uma extraordinária carreira militar: os franceses o expulsaram de
Beirute, os ingleses o enxotaram do Iraque, quando reocuparam o país em
1941, e depois o expulsaram do Irã. Ele tentou ir para a Turquia, mas os
turcos não o deixaram ficar, então ele acabou em Roma, e depois em
Berlim. Mas a maioria dos palestinos não adotou essa linha. Muitos se
uniram ao Exército britânico para lutar com as Forças Aliadas. Claro que
muitos líderes foram mortos pelos britânicos, tanto no campo de batalha
quanto executados. Outros foram exilados. Os ingleses adoravam exilar
seus oponentes nacionalistas nas ilhas sob seu protetorado:
Malta,Seychelles, Sri Lanka e as Ilhas Andamão. Meu tio foi mandado para
as ilhas Seychelles por alguns anos, junto com outros líderes
palestinos, e depois exilado em Beirute por outros tantos anos. A
liderança, via de regra, entendia que a Inglaterra nunca poderia ser uma
nação amiga. Dá para ler isso nas memórias do meu tio – ele se tornou
virulentamente antibritânico. Ele fora sempre nacionalista e
antibritânico, mas a Revolta [Árabe] mudou de maneira extraordinária a
visão dos palestinos. Antes, a liderança tentava sempre se conciliar com
os britânicos, nos moldes de várias elites coloniais cooptadas. Isso
mudou com a aniquilação da Revolta. Em última análise, a derrota da
Revolta e depois a Segunda Guerra Mundial deixaram os palestinos
mal-preparados para o que viria depois, quando duas novas superpotências
– Estados Unidos e União Soviética – apoiaram o sionismo, enquanto os
britânicos colaboraram in loco com os sionistas e os
jordanianos para prevenir o estabelecimento de um Estado palestino
naquele território. Os palestinos não estavam suficientemente
organizados para enfrentar o assalto dos militares sionistas, que
começou em novembro de 1947, meses antes do fim do Mandato Britânico, em
15 de maio de 1948, quando a repartição da ONU entraria em vigor, e os
exércitos árabes entraram na briga. Àquela altura, as forças sionistas
tinham tomado Jaffa, Haifa, Tiberias, Safad e uma dúzia de outros
vilarejos, expulsando cerca de 350 mil palestinos, e já haviam superado
em muito o que havia sido designado como Estado Árabe no Plano de
Repartição da ONU. Ou seja, os palestinos já haviam perdido antes mesmo
da proclamação do Estado de Israel e da deflagração da guerra
árabe-israelense.
TA –
Vamos chegar ao papel dos Estados Unidos em tudo isso. Mas como você
explica o apoio da União Soviética aos sionistas, fornecendo armas
tchecas para que eles continuassem na luta?
RK
– Stálin deu uma guinada repentina, como você sabe. De uma firme
potência antinacionalista e antissionista, a União Soviética subitamente
se transformou em uma defensora de um Estado judeu. Isso foi um choque
enorme para os partidos comunistas do mundo árabe. Havia várias
motivações, penso eu. Foi por certo uma tentativa de cobrir o lance dos
Estados Unidos, e havia uma sensação de que talvez Israel pudesse ser um
país socialista a se alinhar à União Soviética. Stálin também queria
minar o poderio britânico no Oriente Médio. Lembre-se de que ele havia
passado sua juventude lutando no sul do que mais tarde seria a União
Soviética, durante a Guerra Civil Russa, quando os britânicos foram os
maiores apoiadores do Exército Branco – os financiando, armando e
treinando. Eles os apoiaram com tropas e armadas do mar Báltico ao mar
Cáspio e ao mar Negro. Stálin tinha desde cedo desenvolvido uma
animosidade em relação aos britânicos e uma obsessão com a ameaça que
eles representavam no sul da União Soviética. Ele agora via esse momento
como uma oportunidade para minar os regimes árabes marionetes dos
britânicos na região.
TA – Foi uma intervenção política desastrosa. Mas não durou muito.
RK
– Alguns anos. Mas sim, totalmente. Se você olhar a votação na
Assembleia Geral da ONU, sem a União Soviética e seus anexos Ucrânia e
Bielorrússia, assim como os países que eles influenciavam, os
estadunidenses teriam dificuldade em impor a resolução de repartição.
Talvez eles o fizessem, mas o resultado poderia ter sido outro. E o
acordo de armamentos tcheco foi crucial para as vitórias de Israel
contra os exércitos árabes no campo de batalha.
TA – Isso
nos traz às elites árabes – as monarquias e califados instalados pela
Inglaterra depois do colapso dos otomanos –, sua colaboração com os
britânicos e seu fracasso em ajudar a derrotar essa entidade que foi
criada pelo Império Britânico.
RK – As
monarquias do Egito, da Jordânia e do Iraque tiveram o papel mais
importante aqui. Elas estavam sujeitas a pressões opostas, de cima e de
baixo. Por um lado, os britânicos não tinham a menor vontade de ver um
Estado palestino. Eles ainda mantinham uma enorme hostilidade contra os
palestinos, ainda que também tenham se tornado hostis aos sionistas, por
causa da campanha sangrenta levantada contra eles pela Irgun, a Gangue
Stern e a Haganá, no final da Segunda Guerra Mundial. A Inglaterra se
absteve na votação da ONU sobre a repartição. Um Estado judeu seria
estabelecido e nada poderia ser feito para evitar isso. Mas eles
esperavam manter o equilíbrio de poderes através dos regimes clientes e
manter influência em parte da Palestina através do emir Abdullah, da
Transjordânia, cujo Exército era comandado por oficiais britânicos. Por
outro lado, havia uma pressão por parte da opinião pública. O mundo
árabe havia muito se preocupava com o sionismo. Quando eu estava
pesquisando sobre esse assunto, descobri inúmeros artigos antigos de
jornal sobre a Palestina, em publicações de Istambul, Damasco, Cairo e
Beirute. Havia voluntários da Síria e Egito lutando na Palestina durante
a Revolta Árabe. Então esses regimes vizinhos estavam sob pressão
popular para fazer alguma coisa sobre a catástrofe que estava se
desenvolvendo em 1947-48, com os sionistas em clara vantagem, e os
refugiados destituídos chegando às capitais árabes. Os britânicos
queriam que os jordanianos invadissem a região para anexar a Cisjordânia
e Jerusalém Oriental. O Egito e os demais países árabes foram forçados a
intervir por conta da pressão popular. Mas o fizeram de maneira pouco
incisiva e somente depois que os britânicos haviam abandonado o local.
Isso teve um enorme efeito de radicalização no jovem oficialato
envolvido, incluindo Abdel Nasser. Nas suas memórias, ele escreve algo
como: ‘não nos foram dados os meios com os quais lutar, mas à medida que
lutávamos contra os israelenses, pensávamos na monarquia corrupta
controlada pelos britânicos em casa’. Junto com outros dois colegas
próximos do grupo nacionalista Free Officers, Nasser foi lotado em Gaza e
Rafah, e observou em primeira mão a ira dos soldados rasos contra o
Alto Comando no Cairo. Ele cita um soldado que ficava repetindo a cada
ordem sem sentido: “Vergonha, vergonha”, na entonação prolongada e
sarcástica do egípcio do interior.7
A guerra aumentou a popularidade dos Free Officers e, em última
instância, levou à queda da monarquia em 1952. O mesmo aconteceu com os
iraquianos e os sírios. Praticamente assim que a guerra acabou,
ocorreram uma série de golpes na Síria, seguidos pela revolução de 1952
no Egito, e no Iraque em 1958. Todos os oficiais militares envolvidos
haviam lutado na Palestina.
Notas
1 Chris Hedges, “Casting Mideast Violence in Another Light” [perfil de Rashid Khalidi na editoria “Public Lives”], The New York Times, 20 abr. 2004.
2 Sobre a experiência, Khalidi escreveu Under Siege: PLO Decisionmaking During the 1982 War
(Nova York, Columbia University Press, 1985).
3 Rashid Khalidi, Brokers of Deceit: How the US Has Undermined Peace in the Middle East (Boston, Beacon, 2013).
4 Publicada originalmente em New Left Review, n. 147, maio/jun. 2024, p. 5-38, e traduzida aqui por Luiz Guilherme Osório.
5 Ghassan Kanafani, A revolução palestina de 1936 a 1939: antecedentes, detalhes e análise (trad. Letícia Bergamini Souto, São Paulo, Expressão Popular, 2024)
6 Ibidem, p. 115.
7 “Nasser’s Memoirs of the First Palestine War”, traduzido para o inglês por Walid Khalidi para a edição do Journal of Palestine Studies
publicada no inverno de 1973, é um relato fascinante do caos e da falta
deliberada de planejamento do corrupto Alto Comando no Cairo.
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2024/10/21/tariq-ali-entrevista-rashid-khalidi-os-palestinos-estao-pagando-por-toda-historia-europeia-de-odio-aos-judeus/
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