quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Domingo para reflexão.

Artigo de Luiz Marques  

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Arte: Alexandre Francisco  - IHU | Agência Brasil e Pixabay

09 Outubro 2024

A cidade que queremos reinventa a democracia. Propõe atividades culturais e esportivas. Olha para a encosta de morros. Previne contra enchentes. Tem a ecologia na agenda do progresso sustentável. Zela pelas árvores. Rega a diversidade e o pluralismo. Embeleza as paredes com murais artísticos como Diego Rivera que, embora de origem judaica, não apoiaria os bombardeios na Faixa de Gaza.

O artigo é de Luiz Marques, docente de Ciência Política na UFRGS, ex-secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul, em artigo publicado por Sul21, 08-10-2024.

A filosofia do dinheiro, ao penetrar a subjetividade das periferias, diminui em muito as chances de sucesso dos movimentos políticos para mudanças

Eis o artigo.

Esta foi a eleição do continuísmo. A famosa ave de Minerva só alça voo quando cai o crepúsculo. A opção dos eleitores foi reeleger os atuais “gestores”. A palavra de cunho neoliberal despolitiza suas decisões, por retirar a dimensão política inerente às escolhas governamentais. Vinte prefeitos nas capitais das unidades federativas competiam pela reeleição. Quatro ficaram pelo caminho, ainda na batalha do primeiro turno – Belém/PSOL, Fortaleza/PDT, Goiânia/Republicanos, Teresina/PRD.

Onze seguem governadas pelo mesmo partido político: Boa Vista/MDB, Florianópolis/PSD, Macapá/MDB, Maceió/PL, Rio Branco/PL, Rio de Janeiro/PSD, Salvador/União Brasil, São Luís/PSD, Teresina/União Brasil, Vitória/Republicanos. De centro esquerda, há Recife/PSB.

Em quinze haverá um segundo round – Aracaju (PL vs. PDT), Belém (MDB vs. PL), Belo Horizonte (PL vs. PSD), Campo Grande ((PP vs. União), Cuiabá (PL vs. PT), Curitiba (PSD vs. MDB), Fortaleza ((PT vs. PL), Goiânia (PL vs. União), João Pessoa (PP vs. PL), Manaus (Avante vs. PL), Natal (União vs. PT), Palmas (PL vs. Podemos), Porto Alegre (MDB vs. PT), Porto Velho (União vs. Podemos), São Paulo (MDB vs. PSOL). A esquerda do espectro político comparece em cinco.

Fundado em 2011, o PSD tornou-se a agremiação de centro direita mais forte no País, desbancando o MDB após duas décadas. Na lista dos melhores colocados constam: PSD (878), MDB (847), PP (743), União Brasil (578), PL (510), Republicanos (430), PSB (309), PSDB (269), PT (248). As volumosas emendas parlamentares, na distribuição de recursos para prefeituras, pesam na balança. O regalo do Erário repercute nos números do Centrão. Para o ministro-chefe da Secretaria de Relações Internacionais, Alexandre Padilha, “a Frente Ampla de Lula venceu a extrema direita nas eleições”. A aliança com vista em 2026 explica a retração presidencial nas campanhas petistas.

Estratégia de poder

O caráter imoral da prática institucionalizada no uso de receitas públicas traz embutido o sequestro das atribuições clássicas do Executivo, em um regime presidencialista. O que não parecia óbvio é a estratégia de poder adotada para fazer um cerco às prerrogativas legais da Presidência. Junto com a autonomização do Banco Central, que garante as rédeas da política monetária nas mãos das finanças, as “emendas secretas” – por Pix – formam um movimento em pinça para expandir os valores da desindustrialização, do empreendedorismo, do equilíbrio fiscal, da uberização do trabalho e da financeirização dos espaços públicos. A política e a economia são enlaçadas na espúria articulação.

No plano do cotidiano, a irradiação dos valores acima é exemplificada em áreas de apelo popular, como é o caso dos clubes de futebol nas metrópoles, através das SAFs, dos patrocínios das BETs e das agências financeiras estampadas nos uniformes. A variável Dinheiro-Dinheiro (D-D), sem a mediação da Mercadoria (D-M-D), auxilia no convencimento sobre a superioridade das iniciativas financistas para gerir o conjunto das atividades socioeconômicas. Inclusive nos entretenimentos tradicionalmente reservados às paixões aprendidas na infância. O cifrão é a luz no fim do túnel.

Naturalizar o status quo é fundamental para assegurar a ordem social e inibir as manifestações de insatisfação das massas. O esquema acarreta benefícios indiretos ao fortalecer as bases sociais de um modelo econômico excludente. Desaparecem as políticas estatais de formalização do labor e construção de um mercado interno robusto. A dominação ideológica torna os bilhões dispendidos uma pechincha para os interesses do rentismo. Na expressão de Georg Simmel, a philosophy of money (filosofia do dinheiro), ao penetrar a subjetividade das periferias, diminui em muito as chances de sucesso dos movimentos políticos para mudanças. Bota uma coleira invisível na rebeldia revolucionária.

“O neoliberalismo transformou profundamente o capitalismo, transformando profundamente as sociedades. Neste sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, uma política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida”, afirmam Pierre Dardot e Christian Laval, no prefácio à edição brasileira de A nova razão do mundo. Se conhecessem o papel da “Teologia da Prosperidade” e da “Teologia do Domínio”, na consciência periférica, os doutos da Universidade de Nanterre brindariam os leitores com outro capítulo, na bela obra. Sem conhecer, intuíram na mosca.

Espírito do tempo

A polarização entre a democracia e o neofascismo é a forma da polaridade, na política, que divide os que desistem e os que são bem-sucedidos na sociedade. A energia, a solidariedade e a cidadania se esvaem no fosso “meritocrático” que separa os losers dos winners, os perdedores dos vencedores. A abstenção eleitoral, que confere um título de campeã para a capital gaúcha na disputa dominical, exprime a apatia e a dessindicalização pelo fim do trabalho industrial e, com a evasão nas Ciências Humanas, do ensino universitário como veículo da mobilidade social. O desencanto não vota.

A subjetivação neoliberal internaliza a concorrência da guerra de todos contra todos, causando um enorme sofrimento – privado e público – para as pessoas que se distanciam dos padrões enaltecidos pela dita normalidade. A revolta social antineoliberal dá lugar ao sofrimento psíquico, à desvalia, ao ressentimento e ao ódio. Entende-se que possa desembocar na adesão às aberrações execráveis, as quais desconstituem os pilares da civilidade e do próprio Estado de direito democrático. O esgoto só serve para alcançar a liberdade nos filmes de Hollywood, sobre as falhas do sistema de justiça.

O retrocesso civilizacional está condensado em Donald Trump, Javier Milei, Jair Bolsonaro, Pablo Marçal e quetais. No esgarçamento dos limites da democracia, regulamentações perdem o prestígio para frear a barbárie do laissez-faire. O distópico anarcocapitalismo converte-se em alternativa aos olhos da multidão, sem uma identidade de classe. A alienação então generaliza a estupidez. O livre arbítrio confunde-se com o narcisismo sombrio. A dissonância cognitiva cria a realidade paralela.

As condições de um confronto de grande amplitude entre lógicas contrárias e correntes adversas estão se avolumando, em escala mundial. No curto prazo, as irracionalidades fazem jus ao espírito de nosso tempo, a post-truth (pós-verdade), conforme o Dictionary Oxford. São suspensos juízos morais sobre a conduta delinquente dos líderes: furto de joias, estelionatos. A inteligência artificial, a serviço das Big Techs, não é a chave para a emancipação, senão o atalho da servidão voluntária.

Princípio do comum

Para Pierre Dardot e Christian Laval, “A esquerda somente poderá tirar partido disso se souber remediar a pane de imaginação que vem sofrendo. Temos de desenvolver uma capacidade coletiva que ponha a imaginação política para trabalhar a partir das experimentações das lutas do presente”. É preciso conceber uma perspectiva de governança administrativa colada aos movimentos sociais, com pautas universalistas e também pautas contra as discriminações racistas, sexistas, transfóbicas.

Há que revelar uma vontade nítida de reorientação nas prioridades programáticas, contrariamente ao que é implementado pela direita, de praxe. A cidade que queremos é a das megaconstrutoras com edifícios na orla e desprezo por moradias sociais, escolas públicas e postos de saúde? Que relega o transporte coletivo e o saneamento básico para privatizá-los? Que faz cara de paisagem a demandas por ciclovias, para atender a pressão pelo estacionamento de carros particulares no meio-fio, das avenidas? É a cidade que teme o Orçamento Participativo? Não. É a cidade inclusiva, consciente.

A cidade que queremos reinventa a democracia. Propõe atividades culturais e esportivas. Olha para a encosta de morros. Previne contra enchentes. Tem a ecologia na agenda do progresso sustentável. Zela pelas árvores. Rega a diversidade e o pluralismo. Embeleza as paredes com murais artísticos como Diego Rivera que, embora de origem judaica, não apoiaria os bombardeios na Faixa de Gaza.

O “princípio do comum” que emana dos movimentos deve prevalecer em uma República. A cidade pertence sim aos moradores, não aos especuladores ou ao lucro. As ações comunitárias apagam o abismo existente entre os destinos que habitam os territórios urbanos cindidos, apesar do prefixo BR indicado nas rodovias. Cabe à esquerda superar a selva de pedra neoliberal, no combate por uma nova governabilidade, uma nova sociabilidade e uma nova rede de afetos políticos. “Luxo saber / além destas telhas / um céu de estrelas”, sonha em vigília o poeta trotskista, em um valente haikai.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/644579-domingo-para-reflexao-artigo-de-luiz-marques

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