quarta-feira, 2 de outubro de 2024

MAR MORTO

 Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO*

Arthur Azevedo, Cão, 2020

 

Comentário sobre o livro de Jorge Amado

Mar morto foi escrito em 1936, quando Jorge Amado tinha apenas 24 anos. Foi o primeiro de seus romances lido por Zélia Gattai (companheira de mais de cinquenta anos), quando nem sonhava em conhecer o autor, muito menos que se apaixonaria por ele. Apesar de ter lido todos os seus romances, Mar morto, “romance de fazer sonhar, cheio de poesia” (Amado, 2008, p. 273), não perdeu o lugar de seu preferido.

Para Ana Maria Machado (2008), é o romance mais lírico do autor, fortemente marcado pela subjetividade e pelo romantismo. Mas, não se trata de um sentimentalismo inocente, muito menos piegas, Amado descreve com intensidade as emoções de suas personagens, suas dúvidas e incertezas, suas crenças e desafios.

Aos 18 anos, o jovem e determinado escritor se propôs a escrever um ciclo de romances intitulado Os romances da Bahia, com o intuito de fixar “a vida, o pitoresco, a estranha humanidade da Bahia” (Amado, 1937, p. 11). O resultado são seis livros[i] que revelam, não apenas a veia realista do autor, mas, sobretudo, hábitos e costumes do povo baiano. Valorizando o elemento popular e a marginalidade, o jovem autor transformou o povo em seu personagem principal. Os romances é uma resposta de Jorge Amado aos vários autores, baianos ou não, que escreveram sobre a vida na Bahia.

Para ele, nenhum romance, publicado até então, tinha conseguido captar as verdadeiras humanidade e baianidade do povo e os mistérios do território. Todos tinham manifestado um absoluto desprezo pelas especificidades locais, culturais e sociais. Jorge Amado segue na contramão dessa proposta e busca revelar a verdadeira Bahia, os costumes, sentimentos e problemas de seu povo. As experiências nos cafés da capital, nas fazendas de cacau do sul e nas pequenas cidades do interior do estado, proporcionaram a Jorge Amado uma visão singular e mais completa da Bahia e de sua população.

Olhar de frente o povo tão sofrido foi uma grande aventura, mas também, um grande sacrifício. Revelar com honestidade os dilemas e agruras da população pobre da Bahia não foi tarefa das mais fáceis, porque o escritor se colocou numa posição de empatia. Existe, assim, uma adesão afetiva na sua escrita, que consegue capturar para além do sofrimento, a capacidade dessa gente ser alegre e resiliente. O resultado: obras plenas de sentimento e realidade, escritas com um forte tom de denúncia das desigualdades sociais e da miserabilidade humana.

Mar morto é o quinto romance do ciclo, que se diferencia dos demais por não possuir nenhuma referência ao mundo proletário das greves e dos sindicatos. Para Machado (2008, p. 278), o autor “jamais chega a constranger o leitor com perorações partidárias, palavras de ordem, discursos panfletários”, que podem ser encontrados nos outros romances do ciclo.

Em Mar morto, o destaque é a vida sofrida dos mestres de saveiros na Baía de Todos os Santos e suas crenças religiosas. Até os anos 1960, antes da construção das rodovias estaduais e federais, que ligam o litoral ao interior da Bahia, os saveiros eram os responsáveis pelo transporte de pessoas e de mercadorias e eram os guias de grandes navios cargueiros na entrada da baía. Apesar de desenvolverem importante atividade econômica (sem a qual o estado não teria se desenvolvido) e social para a população local, os mestres de saveiros estavam expostos às mais humilhantes condições de vida, pobreza, analfabetismo e condições de trabalho degradantes.

Além de tratar de aspectos sociais, Mar morto é “a história de Guma e de Lívia que é a história da vida e do amor no mar” (Amado, 2008, p. 9). A natureza, representada pelo mar, surge de forma potente, integrada e indissociável dessa história de amor. Contudo, o romance inicia com um capítulo sobre a morte, sobre como os homens do cais perdem suas vidas nas tempestades e no mar indomável. Amor e morte, Eros e Tânatos, surgem como duas faces da mesma moeda, complementares e necessários um ao outro, como as duas pulsões, conscientes ou não, que movem o sujeito.

Nesse sentido, a proposta do presente texto é analisar de que maneira as personagens Lívia e Guma vivenciam o mar. Para tanto, serão utilizados dois corpos teórico-reflexivos confluentes, um baseado nas narrativas míticas do povo iorubá e outro nas reflexões sobre as pulsões de vida e de morte do médico e psicanalista Sándor Ferenczi.

Apesar de se situar na interface entre literatura e psicanálise, não é objetivo transformar a psicanálise num instrumento de investigação literária, numa “relação aditiva, onde se tenta acrescentar sentidos ao texto literário a partir da interpretação psicanalítica” (Villari, 2000, p. 4), ou seja, não se busca a confirmação das propostas psicanalíticas de Ferenczi no discurso literário de Amado ou de utilizar passagens de Mar morto para ilustrar a teoria ferencziana. Nem, tampouco, traçar aspectos psicológicos do autor ou de suas personagens. Teorias psicanalíticas são condutoras da reflexão, mas como método, a inspiração veio de Roland Barthes, ao considerar que não é apenas a escrita que interessa, mas, sobretudo, a leitura que ela desperta.

O prazer e o gozo da leitura e da escrita

No conjunto da teoria da literatura de Roland Barthes, leitor e texto, no processo de leitura, entram em diálogo, numa relação que implica temporalidades e historicidades distintas. Um texto confronta o leitor a um universo de significados que podem ser estranhos à sua condição (histórica e social), pois, “um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo” (Barthes, [1968]2004, p. 64). É exatamente nesse estranhamento que surgem os sentidos mais essenciais do texto, afrontando uma tradição histórica e levando o leitor ao desafio da crítica, a partir das diferenças.

Tais diferenças projetam novos significados e atualizam os sentidos, podendo promover o autoconhecimento do leitor, que se confronta com novas interrogações sobre si mesmo, abrindo outras possibilidades de modos de ser. É nessa possibilidade de autoconhecimento, aberta para o leitor, que reside o prazer e o gozo da leitura, num ato de perder-se, dispender-se, desvirtuar-se.

Essa ideia, que coloca a leitura num espaço de prazer e gozo, ultrapassando o logos e o pensamento racionalista, cristão e positivista, de acordo com Kempiska (2015), se manifestou muito cedo nas reflexões de Barthes, culminando no irreverente O prazer do texto, originalmente publicado em 1973. Nesse polêmico texto, a leitura, por ser múltipla e marcada por ritmos, movimentos e atenções diversificados, é descrita por meio de comparações ancoradas no corpo e em experiências sensíveis. Nesse sentido, a princípio, Barthes ([1973]1987, p. 32) utilizou-se de metáforas alimentares e gustativas, seguidas das eróticas cada vez mais ousadas, relacionadas ao amor e ao prazer: “é preciso sempre ceder à impaciência do texto, nunca esquecer, não importa as exigências do estudo, que o prazer do texto é a nossa lei”.

Anos depois, em Fragmentos de um discurso amoroso (1977), impulsionado cada vez mais pelo desejo inconsciente, Barthes chega a descrever o ato da leitura como um espaço de gozo e a relação com o texto foi comparada diretamente à relação com o ser amado. O contato entre leitor e texto será cada vez mais compreendida como uma relação amorosa, feita de elementos sentimentais, eróticos e retóricos, numa intersecção da imaginação, do corpo e da linguagem. Não à toa, Julia Kristeva identificou exatamente no amor, o núcleo do savoir-faire barthesiano (Kempiska, 2015, p. 163).

Para Barthes ([1975]2004a), o prazer na leitura está associado ao desejo que ela desperta, marcado por dois traços fundamentais. Primeiramente, o leitor se confunde com o sujeito místico, que substitui a oração mental pela leitura (sendo Teresa d’Ávila o exemplo mais notório), e com o sujeito apaixonado, que se retira da realidade e do mundo exterior, entrando num mundo imaginário, provocado pela leitura.

O segundo traço, diz respeito às emoções corporais presentes no ato da leitura, como a fascinação, a dor e a volúpia. Esse duplo desejo, presente na leitura, provoca prazeres e captura o sujeito-leitor. A princípio é estabelecida uma relação fetichista com o texto, pois o sujeito-leitor sente prazer em certas palavras, em certas construções do texto, nas múltiplas formas que o escritor utilizou para expressar pensamentos, sentimentos e ações. Outro prazer é como o sujeito-leitor é capturado pela leitura, sendo impulsionado a ler mais. As metáforas e metonímias, as antíteses e sinestesias, enfim, todas as figuras de linguagem utilizadas pelo escritor, “prendem” o leitor ao texto, criando uma espécie de suspense.

O leitor busca desvendar algo que ainda está escondido na escrita, acelerando a leitura. Esse não aguentar esperar é a “pura imagem do gozo”, afirma Barthes (2004a, p. 39). Por fim, assim como houve um desejo e gozo na leitura, há um desejo e gozo de escrever sobre essa leitura, sobre os pensamentos e sentimentos que ela provocou: “desejamos o desejo que o autor teve do leitor enquanto escrevia, desejamos o ame-me que está em toda escritura (…). Nessa perspectiva, a leitura é verdadeiramente uma produção: (…) o produto (consumido) é devolvido em produção, em promessa, em desejo de produção, e a cadeia dos desejos começa a desenrolar-se, cada leitura valendo pela escritura que ela gera, até o infinito” (Barthes, 2004a, p. 39-40).

Enquanto leitora de Mar morto, me coloquei nesse lugar da falta e de buscar um saber sobre mim mesma, num processo de autoanálise. É desse lugar que escrevo. Esse texto é o resultado das múltiplas formas como eu, sujeito-leitora, fui impactada e capturada pelas angústias e pelos prazeres de leitura do universo amadiano, que me remeteram à busca de um prazer e de um gozo de escrita.

O mar e seus mistérios

Guma é um homem do mar. “Mulato claro de cabelos longos e morenos” (Amado, 2008, p. 80), ele mora na Cidade Baixa e não conheceu os pais, foi criado pelo tio, Francisco, que o transformou no melhor mestre de saveiro do cais. Cresceu frequentando o candomblé de pai Anselmo, onde tornou-se ogã[ii] de Iemanjá. Lívia é “moça, muito moça, pois os seios mal surgem no vestido de chita encarnada” (Amado, 2008, p. 88). Ela também não foi criada pelos pais, mora com os tios na Cidade Alta, é uma mulher da terra, por isso, tem dificuldades em aceitar as imposições do mar.[iii]

Essa história de amor improvável, afinal Guma e Lívia pertencem a mundos diferentes, é embalada pelo mar misterioso, que se apresenta de múltiplas formas, dando um ritmo singular e provocador à narrativa, permitindo ao leitor imaginar cenas e situações. A mãe de Judith “velejou para Cachoeira” (Amado, 2008, p.19). Se Rosa Palmeirão descobrir que Guma está gostando de Lívia, ele “tá naufragado”, avisa seu amigo Rufino (Amado, 2008, p.88). A jovem prostituta, que tinha apenas dezesseis anos, já “estava acabada que nem casco de saveiro naufragado”, pensa Guma (Amado, 2008, p. 108).

Quando alguém no cais está de mal humor, “tá de leme virado” (Amado, 2008, p.94). Filadélfio, um dos poucos que dominava a escrita no cais, escrevia cartas amorosas para todos os saveiristas. Era o primeiro que elogiava seus próprios dotes: “se com isso ela não ficar caidinha que nem canoa emborcada, eu lhe restituo os dez tostões” (Amado, 2008, p.134). Ao sair da casa de Lívia e Guma, Rodolfo resolveu seguir as “águas de uma cabrocha que descia a rua também” (Amado, 2008, p. 212). O mar também está presente nos corpos das personagens.

Nenhum homem que vive na beira do cais “anda com o passo firme dos homens da terra” (Amado, 2008, p.22), eles possuem “passo largo e inseguro dos que vivem nas embarcações e os corpos gingam como se houvessem apanhado vento forte” (Amado, 2008, p.104). Rosa Palmeirão anda gingando o corpo, “como se fosse marítima também”, suas nádegas “oscilam como a proa de um saveiro” e seus olhos são fundos e verdes como o mar, provocando medo (Amado, 2008, p. 57,60). Lívia tem “os olhos feitos de água” e, quando “se mudou para o mar”, sua carne passou a ter “o gosto da água salgada do oceano e os seus cabelos ficaram úmidos dos salpicos do mar” (Amado, 2008, p.88, 129, 138).

Não são apenas os saveiristas e canoeiros que são impactados pelos mistérios do mar, mas todos aqueles que escolheram viver próximo a ele, enfrentado, cotidianamente, seu temperamento imprevisível. Esse é o caso de Dulce, que ainda jovem, recém-saída da Escola Normal, chegou ao cais para substituir a professora. Apesar de já ter visto muita tristeza e muita miséria, não consegue sair do cais e acredita que um milagre pode acontecer, mudando a vida daquela gente sofrida, assim como o mar muda todos os dias. Caso também do dr. Rodrigo, médico que trabalha na beira do cais e atende toda aquela gente, recebendo quase nada, olhando a paisagem sempre renovada do mar e fazendo seus poemas.

O mar se apresenta com toda a sua potencialidade, pois é dele que vem toda a alegria e toda a tristeza. Nos dias calmos de sol, é um amigo, um doce amigo, de onde saveiristas, canoeiros e pescadores tiram seu sustento, onde amam suas mulheres e fazem seus filhos. Nos dias de vento forte e tempestade, o mar revela toda sua fúria e a vulnerabilidade da vida. O mar representa o eterno ciclo de vida-morte-vida, presente em toda a natureza, numa síntese das pulsões que movem todos os sujeitos. Viver no mar e do mar, torna tudo rápido e incerto, por isso, as pessoas do cais vivem e amam com intensidade, pois, cada momento pode ser o último.

Para o povo do cais, o amor tem pressa. É urgente se fundir e confundir com um outro ser, nele buscar apoio, alento e acolhimento, única possibilidade para enfrentar as agruras da vida e a própria morte. Pois, somente aqueles que amam com intensidade, como Lívia e Guma, vivem plenamente e não têm medo de morrer. Sendo destino de todos eles morrer no mar, seguindo a mesma história cíclica dos pais, dos avós e dos tios, nada melhor do que enfrentar o destino com bravura, pois, morrer no mar é um ato heroico e a forma de encontrar a única mulher que pode ser mãe e amante, Iemanjá.

Iemanjá: a mãe e a amante

Dia 2 de fevereiro é o dia mais lindo que há! É o mar, é o amor, é a afirmação total de Iemanjá (Várias queixas, Os Gilsons, 2020).

No Brasil, especificamente na Bahia, Iemanjá é a senhora dos mares e oceanos, mãe de todos os orixás. Segundo a tradição iorubá, que se faz presente no candomblé, enquanto mãe protetora e acolhedora, é ela quem ampara a cabeça do bebê no momento do seu nascimento, estando associada à fertilidade das mulheres e à maternidade. Enquanto mãe, ela guia e norteia, mas também pode confundir e paralisar com seus atributos de sereia, de encanto e sedução. Iemanjá é associada à criação do mundo e à continuidade da vida, sendo uma imagem rica em experiências ancestrais e atemporais, capaz de ampliar a consciência e a forma de perceber a vida.

Originalmente, Iemanjá é uma derivação de Yemojá, Yeye Omo Ejá, que significa mãe dos filhos peixe. Yemojá era a principal orixá dos Egbá, povo que, até o século XVIII, viveu entre as cidades de Ifé e Ibadan. Com as guerras entre as nações iorubás, explica Verger (1981), no início do século XIX, os Egbá migraram para Abeokutá, às margens do rio Ogum, que passou a ser a nova morada de Yemojá. Assim, na África, Iemanjá é associada às águas doces, à pesca e ao plantio e colheita do inhame.

Por isso, nos terreiros de candomblé baianos conserva-se sua saudação original, Odoyá, que significa mãe do rio. Tais mudanças ocorreram no mito de Iemanjá, porque a imigração forçada, dos vários povos africanos para o Brasil, motivou a formação de modos diferentes de ser e novas compreensões sobre o mundo e as pessoas. Como bem afirmou Gilroy (2001, p. 20), “a alienação natal e o estranhamento cultural são capazes de conferir criatividade”.

Ao lado de Oxum e Nanã, Iemanjá integra o trio das grandes mães na mitologia iorubá. Oxum é amor, a energia vital revolucionária presente em toda a natureza, linha mestra do funcionamento natural, que interliga todos os seres vivos, numa sintonia de cuidado. Onde há amor, Oxum está viva e se expressando. Ela é a orixá das cachoeiras e das águas doces, associada ao desenvolvimento da criança ainda no ventre materno, regendo todo o processo de fecundação e da gestação, até o nascimento.

Nesse primeiro período de sua existência, a criança vive numa bolsa, imersa nas águas de Oxum. Comumente, é representada como uma mulher elegante, sentada à beira de um rio, amamentando uma criança. Nanã é a mãe da chuva, originando-se do contato entre a água e a terra, é a lama. Ela é a orixá mais velha, poderosa e séria, é a senhora da passagem da vida para a morte, pois entre o mundo dos vivos e dos mortos existe um portal por ela regido. Apesar de não serem citadas nominalmente em Mar morto, Oxum e Nanã se fazem presentes, pois, trata-se de uma história de amor que convive com a morte.

Mesmo sendo cultuada como a grande matriz original, aquela que tudo gera e que guarda todos os segredos da criação, Iemanjá também é representada como uma sereia, uma amante exigente e libidinosa, que possui intensa vida amorosa, num enaltecimento da sexualidade feminina. Vários orixás sucumbiram aos seus encantos, dentre eles, Oxalá, Orunmilá, Ogum, Xangô, Olofim-Odudua e Oquerê. Mas, a Iemanjá sereia não seduz apenas os orixás. Prandi (2000, p. 609) cita uma narrativa mítica em que Iemanjá é descrita como “uma mulher caprichosa e de apetites extravagantes”, que vem à terra em busca do prazer da carne, procurando jovens e bonitos pescadores para levá-los ao seu “líquido leito de amor”, onde seus “corpos conhecem todas as delícias”.

Mas, como eles são apenas humanos, não sobrevivem aos encantos de Iemanjá e acabam morrendo afogados. Por isso, as mulheres dos homens que vivem no mar, levam muitos presentes a Iemanjá, para que ela poupe a vida de seus amados.

A imagem da sereia, mesmo que sensual e voluptuosa, não deixa de ser também a imagem materna, afinal depois de perder o ventre, a criança é acolhida e nutrida em fartos peitos de leite. Por ser metade mulher (de generosos seios sempre à mostra) e metade peixe (desprovida do órgão sexual feminino), a imagem da sereia insinua a possibilidade da realização parcial do incesto, pela via da erotização oral, de acordo com Freud ([1905]1996), o primeiro estágio da organização sexual infantil.

É dessa forma que Iemanjá surge em Mar morto, como a mãe e a amante de todos os saveiristas. Ela os ama e os acolhe como se fossem seus filhos, enquanto eles vivem e sofrem. Contudo, quando morrem, cheios de desejos, querem encontrar seu corpo de amante, como Orungã encontrou Iemanjá. Da união de Obatalá (o céu) e de Odudua (a terra) nasceram Iemanjá e Aganju (o deus da terra firme). Iemanjá e Aganju tiveram um filho, Orungã (deus dos ares). Apesar de viajar o mundo inteiro, Orungã não conseguia esquecer a beleza da deusa das águas.

Um dia, Orungã não conseguiu resistir e sequestrou e violou Iemanjá. Após ser violentada, o corpo de Iemanjá cresceu de forma absurda, formando vales e serras, seus seios se transformaram em duas grandes montanhas, de onde nasceram rios, de seu ventre descomunal nasceram todos os orixás. Numa outra versão do mito, contada em terras baianas, ao fugir de Orungã, os seios de Iemanjá romperam e deles surgiram todas as águas e a Baía de Todos os Santos.

Do seu ventre, fecundado por seu filho, nasceram os orixás mais temidos, os que governam os raios, as tempestades e os trovões. O mito de Iemanjá, Aganju e Orungã trata de um incesto duplo, entre dois irmãos (Iemanjá e Aganju) e entre mãe e filho (Iemanjá e Orungã). Entretanto, não é a única narrativa mítica incestuosa que envolve Iemanjá. Ela também seduziu seu filho Xangô e se for considerado que todos os orixás nasceram de seu ventre, todos aqueles que ela amou como amantes são, também, seus filhos.

Na grande maioria das sociedades, o incesto foi severamente castigado, ocultado e associado à uma tragédia,[iv] até ser proibido, o que revela o seu caráter de tabu e seu fundamento ético universais. A antropologia, a sociologia e a psicanálise se debruçaram sobre o tema. O antropólogo Lewis Morgan defendeu a ideia de que a proibição do incesto era uma forma de proteger a sociedade dos efeitos da consanguinidade. Para Havelock Ellis (médico e psicólogo) e Edward Westermarck (filósofo e sociólogo), a proibição era fruto de uma repulsa ao ato incestuoso.

Já o sociólogo Émile Durkheim argumentou que a proibição estava inserida num conjunto de regras que compunham a lei da exogamia. Em Totem e tabu (1914), Freud colocou-se contra os estudos médicos, antropológicos e sociológicos de sua época, aventando a hipótese de que a origem da proibição não estava no horror do incesto e sim no desejo a ele associado, iniciando o debate da universalidade do complexo de Édipo.

Apenas em 1949, com a publicação de As estruturas elementares do parentesco, de Claude Lévi-Strauss, o tema da proibição do incesto foi tratado fora das propostas evolucionistas ou de uma oposição entre culturalismo e universalismo. Ou seja, a proibição do incesto consumou a passagem da natureza para a cultura, tornando-se o princípio organizador da sociedade (Roudinesco, Plon, 1998, p. 372-374).

O desejo de incesto não foi recalcado em Mar morto. Amada e temida pelos homens do cais, Iemanjá só se torna amante dos homens que morrem no mar em dias de tempestade. E, sobretudo, dos que morrem salvando pessoas. Desses homens valentes, ninguém encontra os corpos, pois eles foram com Iemanjá. Esse é o caso de Guma, ele encontrou Iemanjá, e com ela viaja pelas terras de Aiocá. Contudo, o desejo de Guma não foi apenas pela mãe mítica, ele também desejou sua mãe biológica.

Todos os saveiristas diziam que Guma, apesar de seus onze anos, mas aparentando ter quinze, já era um homem e estava na hora de conhecer uma mulher, “de satisfazer aqueles desejos que o penetravam nos sonhos e o deixavam como se houvesse tomado uma surra” (Amado, 2008, p. 36). Por isso, quando sua mãe, uma desconhecida por todos do cais, chegou para conhecê-lo, Guma acreditou que era uma mulher, trazida pelo tio Francisco. Ao ver aquela mulher bonita, “um desejo violento o invade, o toma todo” (Amado, 2008, p. 39), ele só pensa em se deitar com ela e a reconhece como sua, aquela que penetrou seus nervos e perturbou seus sonhos.

Guma pensa que em seus braços, finalmente, conheceria todos os segredos e mistérios de um corpo de mulher. Quando Francisco diz que ela é sua mãe, o desejo não abandona o corpo de Guma, que se compara a Orungã e pensa em se atirar no mar num dia de temporal, para aplacar o desejo por sua verdadeira mãe e se encontrar com a única que pode ser mãe e mulher.

Guma está imerso em imagens inconscientes vinculadas à figura materna e que se apresentam projetadas na figura de Iemanjá. Em seus devaneios e de forma alucinatória, ele busca realizar seu “desejo thalássico” de reencontrar as águas uterinas de sua mãe, perdidas no momento do nascimento, buscando as águas sensuais de uma amante.

Ferenczi: o “desejo de regressão thalássica” e as pulsões de vida e de morte

Sándor Ferenczi (1873-1933)[v] foi um psicanalista talentoso. Sigmund Freud o considerava seu “discípulo preferido” e nos mais de 25 anos que conviveram, trocaram 1.200 cartas, discutindo teoria e clínica psicanalítica, além de partilharem confidências pessoais. Tal proximidade não evitou as divergências teóricas e as formas de condução da análise, culminando com o definitivo afastamento entre eles. Suas ideias foram particularmente bem recebidas na França e na Suíça.

No Brasil, sua obra completa, composta de quatro volumes, e o Diário Clínico[vi] foram publicados, pela primeira vez, apenas nos anos 1990, pela Martins Fontes Editora, traduzidos do francês. E a correspondência com Freud foi publicada pela Imago Editora, também nos anos 1990.

Em 1914, enquanto Ferenczi servia o exército, em uma unidade de hussardos (soldados de cavalaria ligeira), traduziu para o húngaro Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Sigmund Freud, publicada pela primeira vez em 1905. A obra despertou em Ferenczi algumas reflexões sobre a função do ato sexual e os desdobramentos psíquicos que o acompanham, como o sonho e as fantasias. A partir dessas inquietações iniciais, Ferenczi foi levado a refletir sobre a importância psíquica da vida intrauterina e do trauma do nascimento e sobre as pulsões de vida e de morte.

Todas essas ideias, somadas às suas experiências clínicas, foram sistematizadas em Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade,[vii] publicada originalmente em 1924. Thalassa é um nome próprio feminino de origem grega que significa “vinda do mar”. A escolha por Thalassa não é inocente, uma vez que esclarece parte da proposta ferencziana, como analisado adiante.

Enquanto ensaio, trata-se de um experimento, uma espécie de laboratório, onde Ferenczi mais cria problemas e hipóteses, numa referência múltipla de imagens e símbolos, do que propõe respostas definitivas. Todo esse processo, como alertam Camara e Herzog (2018, p. 249), está “longe de se apoiar em uma ideia transcendentalista de ‘inconsciente coletivo’, e se fundamenta em uma perspectiva radicalmente corporal de ‘inconsciente biológico’”. Freud ([1933]1994, p. 148), no obituário que escreveu sobre Ferenczi, considerou Thalassa um “pequeno livro”, sendo a “realização mais brilhante e fértil” de seu autor.

Para o fundador da psicanálise, trata-se de um texto que não poderia ser apreendido em uma só vez, fazendo-se necessário mais de uma leitura. Para aqueles que enfrentam o desafio de ler Thalassa, sabem que Freud tinha razão, pois retira o leitor de sua zona de conforto da terra firme e o coloca numa zona de suspensão aquática. Ou, como se estivesse num divã, desperta matizes próprias do inconsciente, onde a racionalidade, na maioria das vezes, é ultrapassada.

O diálogo com Três ensaios se estabelece logo pela escolha dos termos (ensaio e teoria) que compõem o título do texto de Ferenczi. Diálogo que não significa concordância com todas as ideias e posições lançadas por Freud, ao contrário, por ser inventivo e inovador, Ferenczi soube respeitar e seguir muitas propostas freudianas, ao mesmo tempo em que manteve identidade e autonomia, tanto em seus textos, como em sua atividade clínica, o que lhe rendeu a alcunha de “enfant terrible” da psicanálise.

As divergências surgem logo no início de Thalassa. Enquanto Freud ([1905]1996) defendeu o primado da zona genital como substituta dos autoerotismos precedentes (oral, anal, fálico), mesmo com a sobrevivência desses estágios anteriores, mas apenas como prazer preliminar; Ferenczi (1990) propõe uma anfimixia[viii] dos erotismos. Ou seja, não há uma superação, mas combinações de vários erotismos (cutâneo, oral e, sobretudo uretro-anal), que se deslocam de um órgão para outro, até chegar ao genital, responsável em nivelar as tensões eróticas. O termo permite abordar o corpo sexuado como expressão de vários planos da sensualidade, inclusive do psiquismo.

Ao inserir o psiquismo no corpo sexuado, Ferenczi (1990) aproximou os campos da biologia e da psicanálise. De forma ousada, sem ser reducionista e contrariando as regras do modelo científico, então vigentes, ele propôs que experiências oriundas do domínio psíquico construiriam um novo capítulo na área da biologia, assim como, noções colhidas no campo da biologia contribuiriam significativamente para o desenvolvimento da ciência do inconsciente.

Afinal não há ação ou reação na psicologia humana, que também não seja biológica. Para tal intento, Ferenczi criou o método utraquista, que consiste na utilização de conceitos de uma disciplina em outra. Com tal método, Ferenczi libertou-se da rigidez do cartesianismo científico, traçando paralelos entre a psicanálise e a biologia, entre as ciências do espírito e as ciências naturais, oferecendo, a cada uma delas, novas descobertas, com elementos que transitam livremente.

Superou, também, o grande fosso que separa, no pensamento moderno, sujeito e objeto, mente e corpo, lógica e afeto. Estava lançado, assim, os pressupostos de uma nova disciplina, não condizente com as exigências “separadoras e purificadoras da ciência clássica, e bem próxima do que atualmente entendemos por transdisciplinaridade” (Reis, 2004, p. 58-59), que Ferenczi denominou de bioanálise. Thalassa, onde o autor perseguirá o objetivo de construir uma teoria que forneça os múltiplos sentidos da genitalidade, ontogenética e filogeneticamente, é seu texto inaugural.

De acordo com a proposta bioanalítica de Ferenczi, o coito, seguido do orgasmo, possui duas funções. Biologicamente é o alívio da tensão libidinal, que se desloca por anfimixia para diversos órgãos, além do genital. No orgasmo, uma tensão que atingiu um grau elevado de intensidade se acalma de súbito, provocando um poderoso sentimento de felicidade. Assim como a libido se desloca entre os diversos órgãos, também “se desvia do órgão genital para o organismo psicofísico”, é desse movimento “que nasce a sensação de felicidade (…). A satisfação orgástica corresponde, de certo modo, à genitalização explosiva do organismo todo, à identificação total do organismo com o órgão de execução” (Ferenczi, 1990, p. 48).

Também é no ato sexual, mais especificamente em suas preliminares, que ocorre uma atração e identificação mútua entre os parceiros. Enquanto atração, o sujeito busca “soldar-se ao corpo do parceiro sexual” e a identificação age para eliminar o limite entre os egos individuais, “no ato sexual, o desejo de dar e o desejo de conservar, as tendências egoístas e as tendências libidinais, conseguem se equilibrar” (Ferenczi, 1990, p. 43 e 22). Simbolicamente, o ato sexual é o feliz reencontro com o ventre materno, representado no corpo do parceiro, ou ainda, o reencontro com a metade perdida, conforme narrado no mito dos andróginos.[ix]

Desde o nascimento, mesmo sendo obrigado a adaptar-se à realidade, o sujeito busca restabelecer o conforto e a proteção intrauterinos, movido pelo princípio do prazer. Para o pleno desenvolvimento do princípio de realidade, é necessário que renuncie essa busca, encontrando um substituto do objeto perdido, o ventre materno, no mundo da realidade. Ou seja, aos poucos, o sujeito aprende a jogar com o próprio corpo, o jogo duplo de ser o materno acolhedor e de ser criança, e assim, tornar-se independente, sob o plano libidinal, da pessoa que cuida.

A introjeção permite que uma parte da pessoa encarne a mãe e o calor intrauterino e, assim, encontrar em si mesmo as possibilidades de suporte, suficientes para que o processo de maturação e de adaptação à realidade possa se fazer (Oppenheim-Gluckman, 2014, p. 107). Mas, apenas uma parte da personalidade participa desse desenvolvimento, outra parte busca restabelecer o desejo primitivo e obtém sucesso, de modo mágico-alucinatório, por meio do sono e dos sonhos, das fantasias e da vida sexual. O ato sexual permite o retorno real, mesmo que parcial, ao útero materno, pois é um momento de suspensão, onde a ruptura dolorosa entre o ego e o ambiente pode ser superada, liquidando o trauma do nascimento.

Sobreviver à angústia do nascimento fica registrado na memória como um sucesso que o sujeito busca reencontrar, mesmo que de forma fantasiosa, repetindo situações semelhantes, “o fato de um ser humano ter conseguido sobreviver ao perigo envolvido pelo nascimento e a alegria de ter descoberto a possibilidade de existir, mesmo fora do corpo da mãe, permanecem na lembrança para sempre. É isso que incita a reproduzir periodicamente situações perigosas semelhantes, mas atenuadas, só pelo prazer de afastá-las de novo”, explica Ferenczi (1990, p. 53).

O coito é uma dessas “situações perigosas”, pois durante o ato, a respiração e os batimentos cardíacos se aceleram, gerando angústia, repetindo a luta pelo oxigênio que todo sujeito trava ao nascer, modificando sua respiração de aquática para aérea. Nesse ponto, novamente Ferenczi retorna à Freud (1926)[x], compactuando com suas ideias sobre a estreita relação entre angústia e libido. Após uma tensão penosa chega-se à satisfação orgástica, similar ao momento de prazer vivido após o nascimento e o acolhimento ao seio materno, primeiro substituto do ventre perdido.

Gozar é renascer, pois o orgasmo põe fim à angústia. Assim, o reinado do princípio do prazer é periodicamente autorizado, pois o coito seguido do orgasmo produz um sentimento global de felicidade e, ao mesmo tempo, quase completo esvanecimento da consciência, apresentando-se ao sujeito como um retorno ao acolhimento e quietude da vida intrauterina. É o que Ferenczi (1990, p. 69) denomina de “desejo de regressão thalássica”.[xi]

Reunindo os pressupostos psicanalíticos com as teorias de evolução das espécies, sobretudo de Jean-Baptiste Lamarck e Charles Darwin, numa mesma matriz genealógica, Ferenczi afirma que os primeiros seres, de quem os ancestrais humanos se originaram, viviam na água. Com a grande seca dos oceanos e rios, os seres sofreram um trauma e tiveram que se adaptar à vida terrestre, desenvolvendo órgãos competentes ao novo ambiente. O nascimento de todo ser humano repete o mesmo trauma: a vida intrauterina é aquática, depois do nascimento, o bebê adapta seu corpo para viver num ambiente sem água.

Há, nesse sentido, uma relação entre as catástrofes do planeta Terra (filogênese) e as vividas pelo ser humano (ontogênese). A mãe é, na realidade, “um símbolo e um substituto parcial do oceano perdido” (Ferenczi, 1990, p. 68). Coito e orgasmo repetem todas as catástrofes e, ao mesmo tempo, todas as lutas que a espécie travou para se adaptar aos novos modos de vida, impostos pelo ambiente modificado por tais catástrofes.

Para Goldfajn (2021, p. 108): “O coito é o tema estudado por Ferenczi em Thalassa, em suas diferentes dimensões e transformações na biologia, fisiologia, embriologia, na teoria evolutiva e na psicologia. Como contato material entre corpos, o coito, estaria exatamente no limite do encontro físico e o encontro intersubjetivo entre dois adultos. Coito e orgasmo, sono e nascimento, encenariam o desejo primitivo de retornar à matriz materna, ao corpo da mãe, ao seio materno, ao ambiente intrauterino, ao meio líquido pelo orgasmo, que por ser líquido recapitula o estado originário do mar, a matriz de origem, recapitulando também a origem oceânica de todas as espécies”.

Com tais ideias, Ferenczi aproximou-se das propostas de Otto Rank apresentadas em O trauma do nascimento ([1924]2016), escrita na mesma época que Thalassa[xii]. Nessa obra chave, de cunho psicológico, baseada em experiências clínicas e em referências mitológicas, Rank defende a hipótese de que a separação do corpo da mãe, no momento do parto (o que constitui também a perda do prazer, próprio da vida intrauterina), é um trauma biológico e, sobretudo, psíquico, na vida do indivíduo, transformando-se na fonte de todas as suas neuroses e, ao mesmo tempo, responsável pela sua cura.

Além disso, essa primeira separação biológica do corpo da mãe torna-se num protótipo para todas as separações posteriores (desmame, ida à escola, conflito edipiano, separações amorosas etc.) e, fundamentalmente, no protótipo da angústia psíquica. A mãe é o ponto de partida de todo bem-estar (situação de segurança e proteção vivida no útero) e também de toda angústia e dor (o nascimento).

Segundo Gonçalves de Castro (2016), O trauma do nascimento levou Rank a romper definitivamente com o movimento psicanalítico, porque, mesmo que retomando uma ideia lançada por Freud em A interpretação dos sonhos (1900), de que o nascimento é sempre uma fonte de angústia, Rank questionou a supremacia do complexo de Édipo e o papel do pai para a psique humana, destacando o papel da mãe e da vida intrauterina. Até então, a perspectiva que imperava na psicanálise era essencialmente masculina e patriarcal, Rank desloca esse centro para o feminino e o materno.

Mesmo deslocamento efetuado em Thalassa, afinal, para Ferenczi (1990, p. 72), a mulher é a detentora do “oceano perdido”, possuindo o mar dentro de si. Na gestação, o líquido amniótico uterino (ambiente onde todos os humanos residem os primeiros meses de suas vidas) é o “oceano introjetado no corpo materno”. Durante o ato sexual e sobretudo em seu ápice, o orgasmo, os parceiros, simbolicamente, regridem até tornarem-se feto no útero de suas mães, afirma Ferenczi, encontrando o meio aquático perdido pelo trauma do nascimento. O oceano e o útero materno se reúnem num simbolismo que o coito sintetiza, momento em que o sujeito pode reencontrar o meio acolhedor.

As ideias sobre a busca e o encontro alucinatório e simbólico com o ventre materno, proporcionado pelo ato sexual, levaram Ferenczi a refletir sobre as pulsões de vida e de morte, dialogando diretamente com as propostas de Freud, lançadas alguns anos antes em Mais-além do princípio de prazer ([1920]1996). Contudo, para Ferenczi, o ato sexual representa uma compulsão à repetição que pode curar, pois não se limita apenas à revivência do trauma, como afirmava Freud, mas também à sua superação, estruturando o indivíduo. A angústia ao nascer é acompanhada pelo feliz desfecho de ter sobrevivido ao próprio nascimento, adaptando-se ao novo ambiente com sucesso. No ato sexual, o objetivo da satisfação converte a angústia em intenso prazer.

O desejo de regressão thalássica decorre do movimento em busca do outro, que também é uma busca pela vida. Enquanto pulsão de vida individual, o outro é o corpo materno, onde o sujeito busca encontrar o prazer absoluto da onipotência, anterior ao trauma do nascimento. Já enquanto pulsão de vida da espécie, o outro é o retorno ao estado primordial marinho, antes da seca dos oceanos. O “desejo de retornar ao oceano abandonado dos tempos primitivos” (Ferenczi, 1990, p. 66) é uma força pulsional que ressurge e tem continuidade na genitalidade.

Nos dois casos, ontogenética e filogeneticamente, existe o desejo de voltar de onde se foi expulso, atravessar a catástrofe, superar o trauma e voltar ao ambiente de acolhimento, aconchego, onde as necessidades não existiam, porque eram satisfeitas antes mesmo de serem sentidas.

Contudo, o desejo de regressão não é apenas uma busca pela vida, para Ferenczi (1990, p. 78), “o orgasmo não é somente a expressão da quietude intrauterina e de uma existência prazerosa num meio mais acolhedor, mas também, daquela tranquilidade que precedia o aparecimento da vida, a quietude morta da existência inorgânica”.

A tranquilidade do orgasmo e os estados psíquicos do sono e da existência intrauterina estariam próximos de uma existência anterior ao surgimento da vida, pois, como afirma um provérbio latino, “o sono é o irmão da morte” (Ferenczi, 1990, p. 101), ou ainda, como explícito na mitologia grega, Hipnos, o sono, é irmão gêmeo de Tânatos, a morte. Nas palavras de Ferenczi (1990, p. 106), o coito seguido do orgasmo representaria uma “tendência para o repouso muito mais arcaica e primitiva ainda, o desejo pulsional da paz inorgânica, a pulsão de morte”.

Ultrapassando Freud e aproximando-se mais de Nietzsche, para Ferenczi (1990, p. 118-119), não existe uma oposição total entre pulsão de morte e pulsão de vida, “mesmo a matéria tida como ‘morta’, logo, inorgânica, contém um ‘germe de vida’. (…) imaginar todo o universo orgânico e inorgânico como uma oscilação perpétua entre pulsões de vida e pulsões de morte, em que tanto a vida quanto a morte jamais conseguiriam estabelecer sua hegemonia”. Todas as experiências vividas pelas pessoas, inclusive o ato sexual, seriam uma alternância entre pulsão de vida e pulsão de morte.

Não por acaso, na gíria francesa, o orgasmo é chamado de la petite mort, na alemã de der kleine tod e na inglesa de the little death, ou seja, a pequena morte. A expressão se refere ao período refratário que ocorre logo após o orgasmo, referindo-se à perda de consciência momentânea ou o sono que o acompanha.

Em 1957, em O erotismo, Georges Bataille (1988, p. 211), que acreditava existir uma estreita relação entre a morte e a excitação sexual, escreveu sobre essa pequena morte erótica, momento em que se ultrapassa a linha do impossível: “trata-se, sem dúvida, do desejo de morrer, mas é, ao mesmo tempo, o desejo de viver nos limites do possível e do impossível, com uma intensidade sempre maior. É o desejo de viver deixando de viver ou de morrer sem deixar de viver, o desejo de um estado extremo que talvez só Santa Teresa tenha descrito com tanta força, ao dizer: “Morro de não morrer!”[xiii] Mas a morte de não morrer não é precisamente a morte, é o estado extremo da vida; se eu morro de não morrer, é com a condição de viver: é a morte que, vivendo, eu experimento, continuando a viver”.

É exatamente esse intenso limite entre as pulsões de vida e de morte que Lívia e Guma experimentam todas as vezes que enfrentam o mar e que se encontram para o amor.

O mar e seus milagres: Lívia sob a influência de Eros

Enquanto bom saveirista, ciente das leis do cais e de seu compromisso em ajudar qualquer embarcação, mesmo em dias de tempestade, Guma aceita o desafio de orientar o navio Canavieiras na entrada da baía. No cais, todos sabem do perigo de tal empreitada, que poderia levar o saveirista à morte. Mas, Guma não tem medo, pois acredita que seu destino já está traçado: é morrer nos braços de Iemanjá, numa noite escura de tempestade, o momento mais feliz de um homem que vive do mar.

Por tal bravura, Guma ficou conhecido em todo o cais. Assim como o tio Francisco sorriu de orgulho e Rosa Palmeirão brilhou os olhos de amor (Amado, 2008, p. 71), todos no cais falavam que Iemanjá também havia admirado a coragem de Guma e que, a partir de então, ele era o seu preferido.

Guma vive no mar, sem temer a morte: é dele que tira seu sustento, é nele que ama suas mulheres e é nele que constrói suas relações familiares e de amizade. Até que conhece Lívia. A partir de então, os pensamentos de Guma sobre o amor e a morte oscilam e se confundem numa mesma angústia: ele não sabe se deseja morrer para amar Iemanjá ou se deseja viver para amar Lívia. O melhor que um marítimo fazia era não se casar, assim quando Iemanjá o chamasse, ele iria sem deixar ninguém na miséria. Sua mulher não precisaria se submeter às condições de trabalho degradantes ou se prostituir, para sustentar a família.

Era preferível ter o amor ao acaso, assim ninguém sofreria. Mas, por Lívia, quase uma menina, ainda inocente e inexperiente, “sem abc e sem história”, a mulher mais bela do cais, que veio ao seu encontro numa festa de Iemanjá (talvez enviada por ela), “com os olhos claros de água, os lábios vermelhos e seus seios ainda nascendo” (Amado, 2008, p. 88-89), Guma esquece de todo o sofrimento que amar pode trazer, só pensa em amá-la, em se afogar em suas águas. De forma altruísta, Guma não quer sacrificar a vida de Lívia, porque sabe que um dia morrerá no mar, mas também não quer morrer sem viver esse amor.

Diante desse impasse, que imobiliza Guma, Lívia, enquanto sujeito de seus desejos, assume o protagonismo. Ela também quer se afogar nas águas do amor, quer realizar seu “desejo thalássico” e Guma é seu escolhido. É ela quem o procura na festa de Iemanjá, é ela quem foge da casa dos tios (para obrigá-los a aceitar seu casamento) e é ela quem o convida para o amor, antes que os fortes ventos e a tempestade destruam o saveiro e matem os dois.

Apertando-se contra o corpo de Guma, Lívia suplica: “se tu vê que a gente vai morrer vem logo ficar com eu. É melhor.” (Amado, 2008, p. 140). Nessa noite escura, em que não havia uma estrela no céu, em que os ventos, raios e trovões eram intensos e constantes, Lívia e Guma se amam, porque nessa noite que pode ser a última, o amor tem pressa. Eles precisam se unir, precisam viver a intensidade do encontro andrógino, precisam se entregar às suas pulsões de vida, “assim morreriam depois de terem sido um do outro, das carnes terem se encontrado, dos desejos terem se aplacado. Assim poderão morrer em paz” (Amado, 2008, p. 140).

Esse misto de mar, amor e morte acompanha Lívia e Guma nas comemorações do casamento e se apresenta nos versos cantados por Maria Clara, habituada e conformada com a difícil vida no cais[xiv]. Embalada pelos versos “é doce morrer no mar” e “ele se foi a afogar”, Lívia se pergunta por que canções que falam de morte e de desgraça são cantadas num dia que deveria ser feliz e pensa em seu triste destino, ver o marido ir “diariamente a se afogar nas ondas verdes do mar” (Amado, 2008, p. 153).

Não compreendendo, nem aceitando as leis do cais, não conseguindo conviver com a iminência e a inevitabilidade da morte, Lívia idealiza planos para escolher outro destino: convenceria Guma a se mudar para as terras agrestes do sertão, fugindo da fascinação do mar, ou então, iria sempre com ele, se tornaria marítima também, conheceria todas as pedras e todos os mistérios do mar, e no dia que Iemanjá chamasse Guma, ela iria com ele. No romper da madrugada, entre os “ais de amor” (Amado, 2008, p. 154), enquanto Lívia jura que seu filho não será marítimo, viverá em terra firme e terá vida calma, Guma pensa que seu filho será seu herdeiro e dominará um saveiro melhor que ele, porque o mar é doce amigo.

Depois do nascimento do filho, Lívia e Guma chegaram a idealizar uma vida na Cidade Alta, longe do mar, de seus perigos e de seus mistérios. Mas, antes que conseguissem concretizar seu projeto, Iemanjá impôs seu desejo e chamou seu escolhido para viver com ela. Nesse aspecto, Amado dialoga, com a mesma desenvoltura, tanto com a ideia de história e tempo cíclicos, como de transgressão e ruptura. Guma acredita que seu futuro foi traçado ao nascer. Sendo filho e sobrinho de homens do mar, seu destino seria o mesmo, não haveria fuga.

Ele vive no tempo cíclico do conformismo e da dominação, uma vez que o destino se apresenta como algo insuperável e inquestionável. Guma naturaliza a vida difícil do cais, acreditando que ela não pode ser alterada. Lívia, ao contrário, tem dificuldades em aceitar as imposições do mar e acredita que o futuro é ativamente construído, estando diretamente relacionado com suas escolhas.

O tempo cíclico é confirmado: a morte chegou no mar para Guma e seu corpo não foi encontrado. Ele morreu no mar salvando outras pessoas, numa síntese de pulsão de vida e de morte. Essa é a atitude que Iemanjá mais admira, por isso, para o povo do cais, Guma agora está com ela, nas terras de Aiocá. Diante da fatalidade, Lívia novamente assume o protagonismo e a autoria de sua história. De forma inesperada e inédita para uma mulher, ela resolve conduzir o saveiro, transportar mercadorias no mar da Baía de Todos os Santos, criando uma outra alternativa, mais digna, para todas as mulheres do cais.

Lívia representa a superação da resignação das mulheres ante o destino trágico, tornando-se provedora dos meios de subsistência e existência da família. Regida por uma forte pulsão de vida, ela cria forças subversivas que alimentam a esperança de transformação e de criação de uma nova ordem social mais justa. Com essa atitude, o milagre (esperado e desejado pela professora Dulce) sai da esfera do divino e humaniza-se, sendo articulado e realizado por Lívia.

Guma está no mar, se afogou nas águas de Iemanjá, como antes havia se afogado nas águas do amor com Lívia. Para continuar vivendo dignamente, Lívia escolhe enfrentar a morte e os mistérios do mar.

*Soleni Biscouto Fressato é doutora em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autora, entre outros livros, de Novelas: espelho mágico da vida (quando a realidade se confunde com o espetáculo) (Perspectiva).

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Notas


[i] O país do carnaval de 1930, Cacau de 1933, Suor de 1934, Jubiabá de 1935, Mar morto de 1936 e Capitães da areia de 1937.

[ii] Ogã (do iorubá gã, que significa “pessoa superior”, “chefe”, “com influência” e do jeje ogã: “chefe”, “dirigente”) é o nome genérico para diversas funções masculinas (cuidar do altar dos santos, responsável pelo sacrifício de animais, tocar atabaque etc.) num terreiro de candomblé. Durante todos os trabalhos, o ogã permanece lúcido, não entrando em transe, mas mesmo assim, recebe instrução espiritual.

[iii] Ver a comunicação Salve Estrela Matutina (a emancipação da mulher e a transgressão do tempo cíclico em Mar morto), apresentada no III Seminário de Políticas Linguísticas Críticas, realizado em junho de 2023. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=snGh4EHAHhw>.

[iv] Exceto para, por exemplo, os faraós egípcios. Testes de DNA, realizados em múmias por uma equipe de pesquisadores egípcios e alemães, revelaram que no período da 18ª Dinastia (1.550 e 1.295 a.C.) a prática do incesto era bem comum. Os pais do faraó Tutancâmon, que governou entre 1.336 e 1.327 a.C., eram irmãos. Aquenáton, 1.352-1.338 a.C., pai de Tutancâmon, procriava com suas filhas. Sendo considerados criaturas divinas, os faraós poderiam ultrapassar as regras que conduziam os comportamentos das outras pessoas. Mesmo diante de muitas anomalias e doenças genéticas que se perpetuavam de uma geração a outra, os faraós preferiam manter o sangue real restrito a um pequeno grupo familiar, o que significava, também, manter o poder numa única família. In: O Globo, 20 out. 2014. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/historia/novos-estudos-reforcam-que-farao-tutancamon-foi-fruto-de-incesto-14301601>.

[v] Sendo o oitavo de doze irmãos e o filho predileto de seu pai, Ferenczi recebeu uma educação onde prevalecia o culto pela liberdade e o gosto pela literatura e filosofia. Ao escolher a área médica, destacou-se na medicina social, optando por ajudar os oprimidos, ouvir os problemas das mulheres e socorrer os marginalizados. Em 1906, apresentou um corajoso texto na Associação Médica de Budapeste, onde assumiu abertamente a defesa dos homossexuais. Sendo mais intuitivo e inventivo que Freud e outros de seus discípulos, em 1908, descobriu a existência da contratransferência. Acompanhou Freud aos Estados Unidos e à Itália, em defesa da psicanálise e, em 1910, participou ativamente da fundação da IPA (Associação Internacional da Psicanálise). Em 1919, juntamente com Otto Rank, fez uma reforma completa na técnica psicanalítica, inventando a técnica ativa e a análise mútua (Roudinesco, Plon, 1998, p. 232-5).

[vi] O Diário foi escrito em 1932 e publicado pela primeira vez em 1969, sob organização de Michael Balint. Em 1985, surgiu a versão francesa organizada por Judith Dupont. De acordo com Balint (1990), optou-se por esperar mais de trinta anos para a publicação, visando que as divergências entre Ferenczi e Freud se atenuassem e as ideias do Diário fossem mais bem recebidas.

[vii] Para este texto, foi utilizada a tradução da versão francesa (Thalassa, essai sur la théorie de la génitalité, Payot, 1979), publicada em 1990, pela Martins Fontes Editora. Thalassa é o texto menos citado de Ferenczi, inclusive em livros sobre o autor, até mesmo, Michael Balint, aluno de Ferenczi, tem reservas sobre ele (Oppenheim, 2014, p. 97), apesar de ter lido os originais e sugerido alterações (Ferenczi, 1990, p. 5).

[viii] De anfi (de um e de outro) e mixis (mistura): mistura de um e de outro. Na biologia é o termo que designa a união dos gametas masculino e feminino na reprodução (Reis, 2004, p. 59).

[ix] Em O banquete, obra escrita por Platão em 380 a.C., os convidados discursam sobre o tema do amor e sua concepção platônica, que ultrapassa a dimensão física, uma vez que é privilegiada a beleza da alma, ou seja, o amor é concebido como um sentimento possível para todos. Aristófanes contribui com a discussão, narrando o mito do andrógino, sobre a eterna busca pela metade que completa o ser humano, o que explicaria o mistério da atração universal. No início dos tempos existiam três sexos: o feminino, o masculino e o andrógino, casais completos e perfeitos com os dois sexos. Os andróginos eram seres fortes e inteligentes que, devido a essas características, ameaçavam o poder dos deuses. Para conseguir submetê-los, Zeus resolveu dividi-los, pois assim ficariam desnorteados e fracos. Desde então, as metades separadas buscam, eternamente, sua metade complementar.

[x] Ferenczi (1990, p. 44) menciona que desde suas primeiras comunicações, provavelmente se referindo às reuniões de quarta-feira, Freud defendia uma de suas teses fundamentais, a de que a neurose de angústia e as emoções do coito são da mesma natureza, sistematizada em Inibições, sintomas e angústia, de 1926.

[xi] O desejo de regressão ao útero materno é o centro da teoria da genitalidade de Ferenczi (1990, p. 54) e, como ele mesmo reconheceu, praticamente uma “obstinação”, surgindo em vários momentos de sua reflexão, antes e depois da escrita de Thalassa. Entre os textos precursores podem ser citados, O desenvolvimento do senso de realidade e seus estágios (1913), A era glacial dos perigos (1915) e Fenômenos de materialização histérica (1919). Após Thalassa, o mesmo tema acompanhou Ferenczi em, pelo menos, mais quatro ocasiões: O problema de afirmação do desprazer e Fantasias gulliverianas, ambos de 1926, A criança mal acolhida e sua pulsão de morte e Masculino e feminino, ambos de 1929.

[xii] Logo na introdução da versão alemã, Ferenczi agradece nominalmente Rank por suas pesquisas. Na tradução húngara, que foi utilizada para a versão francesa e posterior portuguesa, o nome de Rank não é mencionado, sendo substituído genericamente por “outros pesquisadores”, contudo, ao longo da obra, Rank é nominalmente citado.

[xiii] Bataille se refere ao poema Aspirações à vida eterna de Santa Teresa d’Ávila (1515-1582), também conhecido como Glosa.

[xiv] Maria Clara (filha de pescador) e o mestre de saveiro Manuel são personagens recorrentes nas obras de Amado. Eles surgiram pela primeira vez em Jubiabá (1935), seguido de Mar morto (1936), A morte e a morte de Quincas Berro d’Água (1959), Os pastores da noite (1964) e Teresa Batista cansada de guerra (1972). O leitor pode acompanhar o envelhecimento desses personagens cativantes, que não encontraram a morte no mar.

Fonte: https://aterraeredonda.com.br/mar-morto/

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