segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Mohamed Mbougar Sarr: “Nem sempre a raiva produz bons livros”

Ana Elisa Faria 06 de Outubro de 2024

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Sensação da Flip 2024, escritor senegalês premiado com o Goncourt, fã de Guimarães Rosa e Roberto Bolaño, reflete sobre o ofício da escrita, colonialismo e similaridades literárias entre América Latina e África

O primeiro contato do senegalês Mohamed Mbougar Sarr com a literatura se deu ainda na infância, mas não do modo mais “comum”, folheando as páginas de um livro infantil. Foi por meio das vozes, das histórias retiradas dos contos da cultura sererê, do Senegal, transmitidas pelas mulheres da família — avó, mãe, tias — que, mesmo sem saber ler, narravam ficções de um mundo vasto e misterioso. Nesse terreno fértil, suas primeiras raízes literárias se fincaram.

Hoje, aos 34 anos, vive na França e tem quatro obras publicadas, entre elas “A Mais Recôndita Memória dos Homens” (Fósforo, 2023), pela qual recebeu, em 2021, o prêmio Goncourt, a mais alta honraria francesa das letras — distinção dada pela primeira vez a um autor da África subsaariana.

O romance acompanha um jovem escritor, Diégane Latyr Faye, que descobre um livro mítico de 1938 chamado “O Labirinto do Inumano”, assinado pelo enigmático T.C. Elimane, que desapareceu sem deixar pistas após uma acusação de plágio por parte do meio literário francês. Aficionado, Faye vai atrás desse homem, o “Rimbaud negro”, enfrentando todo tipo de tragédia, como o colonialismo e o holocausto.

Para Sarr, o dever central de um escritor é com a própria literatura. Mesmo que no mundo ao redor pululem injustiças sociais e dilemas políticos, ele acredita que, para transformar indignação em arte, é preciso mais do que apenas fúria. “Talvez seja triste ouvir isso, mas a raiva não é suficiente”, diz. A verdadeira literatura, em sua visão, surge da busca incansável pela melhor forma literária, aquela capaz de traduzir sentimentos complexos em narrativas que ressoem além.

Como escritor, e até como leitor, é necessário colocar os bons livros em primeiro lugar

O olhar de Sarr para a história e a política não se limita às feridas abertas pelo colonialismo. De acordo com ele, o continente africano abriga infinitas histórias, e narrar temas diversos que transcendam o passado colonial é, em si, um ato de resistência, além de afirmar que a África não começa nem termina com a colonização.

O autor, que também escreveu “Terra Silenciada” (2023) e “Homens de Verdade” (2022), ambos da editora Malê, fala que encontra na América Latina uma espécie de espelho literário. Admirador do mineiro João Guimarães Rosa e fã do chileno Roberto Bolaño, Sarr vê na escrita latino-americana uma conexão íntima com a própria busca pela forma, especialmente na presença marcante da oralidade — por onde se iniciou, afinal — e na maneira como espaço e tempo são moldados nas narrativas.

Um dos principais nomes da programação da Festa Internacional Literária de Paraty, que ocorre em 2024 entre 9 e 13 de outubro, Mohamed Mbougar Sarr falou a Gama, na entrevista que você lê abaixo, sobre o ofício da escrita, referências, ironias do meio e solidão.

  • G |Como a literatura entrou na sua vida?

    Mohamed Mbougar Sarr |

    Eu era muito jovem, e o meu primeiro contato não foi com a literatura da maneira mais comum como a conhecemos. Começou com a literatura oral, por meio de contos e histórias da minha cultura, a cultura sererê, do Senegal, narrados por pessoas que, naquela época, não sabiam ler: minha avó, minha mãe, minhas tias, as mulheres da minha família. Teve início ali e, depois, aprendi a ler e a escrever. Considero os contos como o ponto de partida da minha relação com a literatura.

  • G |Você já disse que a literatura começa com sentimentos de perda e solidão. Em “A Mais Recôndita Memória dos Homens”, há uma frase que sintetiza esse pensamento e afirma que o destino de um escritor e sua obra é a solidão. No entanto, seu livro alcançou muita gente, viajou o planeta. Você se sente menos solitário agora?

    MMS |

    Costumo dizer isso porque o livro já não me pertence mais e, quando você escreve, tem a companhia dos personagens. Mas, depois de escrever, por um curto período, você não está sozinho, há os leitores e o livro ainda está próximo de você. Porém, após um ano, dois, agora três anos, o livro está mais distante, foi embora. Mas o livro não está sozinho, ele ainda tem leitores ao redor do mundo. Eu é que fico um pouco de lado, fico observando o livro viajar e encontrar leitores. É uma cena bonita de se ver, é um destino muito bonito para o livro. De alguma maneira, sou um completo estranho a esse fenômeno, mesmo que seja lindo e que eu goste de observá-lo. No momento, estou tentando encontrar a solidão necessária para escrever outra coisa. Esse é o destino de todo escritor: você vai de uma solidão a outra, e as solidões não necessariamente são as mesmas. Estou quase nesse estado de solidão, preciso começar a escrever de novo. Mas tudo isso acontecerá depois do Brasil e do grande prazer que eu terei ao encontrar os leitores brasileiros.

  • G |O livro também dialoga com a literatura e o ofício da escrita. Qual é o papel de um escritor no mundo contemporâneo, sobretudo quando lidamos com legados coloniais?

    MMS |

    Quem escreve não pode ignorar as questões políticas da sociedade onde vive. Com isso em mente, acredito que todo escritor deve saber que seu primeiro dever é com a literatura. A oportunidade de expressar os problemas e a complexidade de uma situação passa pela melhor forma literária que o escritor ou a escritora encontrar. Talvez seja triste ouvir isso, mas a raiva não é suficiente. É preciso encontrar a melhor forma literária possível para expressar um sentimento, mesmo que esse sentimento seja a raiva. Ainda assim, nem sempre a raiva produz bons livros. Como escritor, e até como leitor, é necessário colocar os bons livros em primeiro lugar. Isso não significa que os livros estão separados das situações sociais e políticas, mas eu coloco a literatura em primeiro lugar. A minha experiência de vida é moldada pela história colonial porque, sim, sou senegalês, sou africano. Moro na França, e a situação política aqui é difícil. A extrema-direita está crescendo muito, muito, muito. Eu sei disso, faz parte da minha vida. Mas quando se trata da escrita, tento encontrar a melhor forma literária possível. E sei que a melhor forma literária possível vai expressar, muito naturalmente, o que sinto no mundo.

  • G |Como os jovens escritores africanos estão redescobrindo ou reinventando a história da África em suas narrativas? E como isso difere das gerações anteriores?

    MMS |

    As gerações anteriores tiveram que lidar de forma direta com a opressão colonial, não havia muita escolha. Escritores como o camaronês Mongo Beti, [o ganense Kwame] Nkrumah ou [o malinês] Yambo Ouologuem tiveram que se expressar diretamente sobre essa situação. Sentimos isso nas obras desses autores. Não podemos repetir os livros que eles trouxeram, temos de encontrar algo diferente para contar. O continente africano está cheio de histórias maravilhosas e nem todas estão ligadas à situação colonial. E é um  gesto político contar histórias que nem sempre estão ligadas ao colonialismo. Isso mostra ao mundo que temos outras coisas para dizer, novas histórias para contar. Nosso continente não começou com o colonialismo e não terminou com ele. Um dos gestos mais políticos agora para um escritor africano é encontrar outras histórias. E essas histórias também são altamente políticas. Você não é obrigado a lutar diretamente e a expressar em todos os seus livros que o seu continente foi dominado. Mas, se quiser fazer isso, precisa saber o que já foi escrito, ler muito e conhecer o que seus antecessores fizeram.

O continente africano está cheio de histórias maravilhosas e nem todas estão ligadas à situação colonial

  • G |A América Latina também está representada em “A Mais Recôndita Memória dos Homens”, na ambientação de parte do livro, e na “relação” do protagonista com os escritores argentinos Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato. As literaturas latino-americana e africana se conectam de alguma forma?

    MMS |

    Sim, elas estão ligadas pela história, pela geografia, de certa forma, e pela experiência do colonialismo. Obviamente, as experiências são diferentes, cada continente é um, mas é possível encontrar um diálogo entre as pessoas e as culturas e, também, entre os escritores. Como escritor, sou muito impressionado e influenciado por autores latino-americanos porque eu me encontro na maneira como eles contam histórias e expressam experiências e visões de mundo, na forma como a oralidade está presente, no jeito de falar sobre espaço e tempo. Contar uma história não é apenas contar uma história, é encontrar uma forma para ela. Um dos melhores exemplos dessas relações é a admiração que um escritor congolês chamado Sony Labou Tansi tinha por Gabriel García Márquez. Labou Tansi costumava dizer que, sem García Márquez, não teria escrito nada. García Márquez, quando perguntado quem seria o pai do realismo mágico, costumava dizer: “Não sou eu, é um escritor haitiano chamado Jacques Stephen Alexis”. Há esse tipo de círculo: Labou Tansi admirando García Márquez, García Márquez admirando Stephen Alexis — que eu também admiro — e Stephen Alexis vindo da África, mas sendo ao mesmo tempo do Haiti, portanto, do espaço caribenho. Precisamos encontrar esse tipo de relação porque são experiências próximas, assim como os sonhos e os sonhos políticos.

  • G |Por falar em América Latina: o escritor chileno Roberto Bolaño já foi descrito por você como “um mestre da escrita”. Qual foi o seu primeiro contato com a obra dele? O que mais o encanta no seu trabalho?

    MMS |

    Conheci Bolaño quando tinha 22 ou 23 anos e estudava literatura e filosofia em Paris. Um amigo me deu um exemplar de “2666”, comecei a ler e nunca mais parei. Por três meses, tudo o que eu lia era Bolaño. Foi fascinante porque as histórias que ele contava nos livros eram próximas ao que eu vivia naquela época: jovens escritores tentando encontrar o seu caminho, em busca da verdade por meio da literatura, vivendo em outros países e tentando construir amizades bonitas. Era, de certa forma, a minha história. Ao mesmo tempo, estava tentando escrever sobre o malinês Yambo Ouologuem, que teve uma trajetória estranha e triste, mas interessante. Ele escreveu um livro, que foi celebrado, e, ao ser acusado de plágio, desapareceu. A história de Ouologuem era similar às histórias que eu lia nos livros do Bolaño, com o [personagem] Archimboldi, de “2666”, com a Cesárea Tinajero, em “Os Detetives Selvagens”. Bolaño mudou o meu ponto de vista sobre literatura e leitura. Eu tinha a sensação de que ele entendia profundamente o que eu estava vivendo, a solidão e o desejo de escrever algo belo e verdadeiro. Por isso Bolaño é tão importante para mim.

  • G |Da literatura brasileira, o que você conhece?

    MMS |

    Amo “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. É um dos maiores livros já escritos, por muitos motivos. Começa como um conto, com um personagem, o Riobaldo, contando uma história. E a história não tem um começo, e poderia não ter fim, ela poderia ter continuado por milhares e milhares de páginas. E é muito impressionante ter essa energia na narrativa, na técnica narrativa, e tanto poder nas cenas que ele desenvolveu sobre Deus e o mal, sobre o amor, sobre a guerra e sobre toda a bela geografia do sertão. É uma obra-prima completa. Tenho muita admiração por Clarice Lispector. O que ela faz é diferente do que eu estou tentando fazer na literatura, mas a respeito muito, e todos os seus livros sempre me deixam cheio de perguntas. Posso citar também Machado de Assis. Atualmente, estou lendo “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Tem ainda o Alberto Mussa, Jorge Amado, Chico Buarque. Li também a filósofa Djamila Ribeiro, que é bastante conhecida na França, e estou interessado no que ela vem fazendo. Não li Conceição Evaristo, mas gostaria de ler um dia.

  • G |Na Flip, você vai participar de uma mesa com o escritor Jeferson Tenório que, em “O Avesso da Pele”, trata de assuntos que você aborda nos seus livros, sobretudo em “Homens de Verdade”, como violência, memória, identidade, negritude, masculinidade e homofobia. É possível traçar um paralelo entre as duas obras?

    MMS |

    Estou lendo Jeferson Tenório também. Temos muitos temas em comum, e acho que será interessante discutir sobre masculinidade, exclusão e a maneira como os homens, e os homens negros, especificamente, têm de lidar com todas essas questões e sobre o que significa ser um homem de verdade.

O trabalho do escritor é ser fiel ao seu desejo, à sua paixão, à sua raiva

  • G |Em 2021, você ganhou o Goncourt, prêmio literário de maior prestígio na França. Em “A Mais Recôndita Memória dos Homens”, há uma ironia em relação a prêmios do tipo. Como você o recebeu e como funciona essa dualidade?

    MMS |

    Há uma ironia nisso tudo porque no livro eu zombo desse tipo de prêmio de maneira muito forte. E, veja, aconteceu comigo. Mas isso só significa que os livros são coisas vivas e você pode usá-los para a ironia, porém, eles podem se vingar. E foi exatamente o que aconteceu. Estou muito feliz, no entanto, a dualidade existe. Tento lembrar que meu caso é, por enquanto, uma exceção. Não posso, a partir da minha situação única, fazer um discurso para todos os escritores africanos. Para a maioria, a situação é a da marginalidade. Não é porque eu ganhei o Goncourt que essa situação mudou. Tento ver o que aconteceu comigo como algo pessoal e bonito, mas gostaria que acontecesse cada vez mais com outros africanos. Tudo isso me ensinou também que você tem de ser verdadeiro e fiel à sua voz interior. Se eu tivesse medo de escrever esse livro por não querer que ele fosse considerado irônico demais pelo meio francês, se eu quisesse que o meio me visse bem, que me visse como um escritor muito sábio, acho que teria sido um fracasso e uma vergonha para mim. A conclusão é que a escrita não é matemática, não dá para calcular ou tentar criar estratégias para ganhar um prêmio. O trabalho do escritor é ser fiel ao seu desejo, à sua paixão, à sua raiva — e encontrar, para tudo isso, uma boa forma no livro.

  • G |Após a leitura de “A Mais Recôndita Memória dos Homens”, o compositor, cantor e escritor Chico Buarque elogiou o livro e disse não saber como voltaria a escrever novamente. Há algum escritor que tenha gerado em você essa mesma reação?

    MMS |

    Fiquei profundamente honrado. Quando leio Chico Buarque, é sempre uma alegria. Ao mesmo tempo, é estranho ter pessoas como ele elogiando o meu livro. Bons livros, obras-primas, sempre geram esse sentimento em escritores. Penso que, como escritor, a primeira qualidade em relação a outros livros deve ser a capacidade de admirar e ter a humildade de simplesmente reconhecer que alguns livros são tão grandes que você sente que não conseguiria escrevê-los. E tudo o que você precisa fazer é lê-los. Toda vez que leio alguns livros, de autores como Bolaño, Lispector e Guimarães Rosa, tenho o mesmo sentimento. Por isso que escrever é interessante: todos esses grandes escritores também tiveram a mesma reação quando leram outros livros. A história da literatura é simplesmente a história de livros paralisando escritores e escritores elogiando livros que os paralisaram, dizendo “como posso escrever algo depois disso?”. E, apesar disso, os escritores continuam a escrever e seguem escrevendo bons livros, que paralisarão outros escritores, de outras gerações. Essa é uma história antiga e bela da nossa arte.

    Produto

    A Mais Recôndita Memória dos Homen
    Mohamed Mbougar Sarr (tradução: Diogo Cardoso)
    Fósforo
    400 páginas

    Fonte:  https://gamarevista.uol.com.br/semana/qual-o-papel-da-literatura-na-sua-vida/mohamed-mbougar/

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