Roberto DaMatta*
Demóstenes perdeu o pai aos 7 anos. Sua herança foi
roubada por tutores. Abriu um processo, os ladrões recorreram, ele
perdeu. Menino, Demóstenes assistiu a um julgamento no qual um orador
brilhante mudou a opinião pública. Demóstenes invejou sua glória e ficou
impressionado com o poder da palavra. Pensou, então, em ser um grande
orador, mas o sonho parecia impossível, pois, como o rei George VI da
vida e da fita, era gago. Corajoso, Demóstenes foi à luta. Curou a
gaguez declamando poemas diante do mar, contra o vento; forçando-se a
falar (como fazem alguns políticos) com pedras na boca. Graças a esse
extenuante treinamento, Demóstenes foi o maior orador da Grécia.
Como um democrata, dedicou sua vida à defesa de uma Atenas ameaçada
por Filipe II, da Macedônia, pai do não menos hollywoodiano Alexandre, o
Grande. Demóstenes escreveu inúmeros discursos e alguns roteiros com o
objetivo de conclamar os atenienses, mas Filipe II venceu.
No ano 335 a.C., Demóstenes foi condenado por facilitar a fuga de um
ministro de Alexandre de Atenas. Recebeu uma boa grana, mas como não
estava em Brasília, foi preso mas conseguiu fugir, exilando-se em Atenas
por um longo período. Na Grécia antiga, os oradores não tinham
imunidade.
Após a morte de Alexandre, Demóstenes volta do exílio e retoma a vida
pública. Alia-se imediatamente à revolta contra o ditador macedônio
Antípatro, mas perde. Exila-se no templo de Poseidon, faz algumas
palestras a peso de ouro para alguns mercadores, mas vendo-se cercado
pelos soldados do inimigo, Demóstenes termina com a própria vida tomando
veneno.
Em 322 antes de Cristo, os políticos se suicidavam quando cometiam
malfeitos. No Brasil, apenas Vargas perpetrou o gesto extremo de um
suicídio de honra. Neste mundo cada vez mais ambíguo no qual tentamos
viver, essa sensibilidade com a moral coletiva só tem ocorrido no Japão,
que os políticos e os financistas de Wall Street dizem ser um país
exótico...
* * * *
John Winthorp (1588-1649) chegou à América com a intenção de
construir uma comunidade utópica - uma nova Jerusalém numa "nova"
Inglaterra. Aprendi isso com o Robert Bellah do livro Habits of the
Heart (Hábitos do Coração). Nele, há uma recapitulação desse messianismo
fundado em princípios mais do que em santos e pessoas, como é o caso
ibérico e brasileiro.
John Winthrop foi o primeiro governador eleito da Colônia da Baía de
Massachusetts. Seu objetivo não era enriquecer, mas criar uma comunidade
na qual a prosperidade sinalizasse aprovação divina e, por isso, o seu
exemplo como homem público merece ser relembrado nestes tempos de Brasil
que se torna uma sociedade de massa, mas que ainda tem uma vida pública
entupida de leis, mas carente de ética.
Durante os seus 12 mandatos como governador, Winthrop foi exemplar e
inovador. Moderação e um bom senso extraordinário caracterizam sua
administração. Conta-se que durante um inverno particularmente longo e
rigoroso a lenha de Winthrop era roubada por um vizinho pobre. O
governador mandou chamá-lo e declarou que, devido à severidade do
inverno e de suas necessidades, ele tinha permissão para apanhar toda a
lenha que precisasse durante aquela temporada. Com isso, dizia Winthrop a
seus amigos, ele havia curado o homem do roubo.
* * * * *
Alguns dos nossos políticos têm dupla personalidade, mas como eu
tentei mostrar em Carnavais, Malandros e Heróis, o Brasil tem uma
duplicidade de raiz. Ele é feito de leis universais (válidas para todos)
mas, tal como o barqueiro napolitano de Max Weber, nós não podemos
cobrar dos parentes, cobramos menos dos amigos, cobramos demasiado dos
desconhecidos, e cobramos estupidamente (com a devida comissão para
pessoas e partido) quando o passageiro é o governo. Dois pesos e medidas
levados ao extremo acabam em despotismo (os nossos fazem apenas
"malfeitos" e são blindados); destitui de ética a impessoalidade do que é
público. Até hoje não admitimos que um "homem público" simplesmente não
tenha "vida privada" porque ele não é gerente de coisas sem dono; é -
isso sim - um administrador do que pertence à sua coletividade. É falsa
essa apropriação do público pelo privado, porque os eleitos não são
donos de coisa nenhuma; são simplesmente responsáveis pelo que é de
todos. O problema é que vemos como anomalia um traço de um Brasil que
até hoje não quer saber se é um país de família, um clube de compadres e
amigos - ou um sistema de instituições públicas. O governador Winthrop
não leu Hirschman, mas soube domar a paixão do roubo, transformando-a em
interesse. Aceitou a necessidade e, regulando o furto, tornou o oculto
em algo aberto, domesticável e virtuoso. Nós preferimos legislar
negativamente e assim transformamos costumes em crime.
É impossível deter as Cachoeiras de desejos, sobretudo quando são
proibidos por lei, mas aceitos placidamente pelos costumes da terra,
como a amizade e a malandragem. Essas coisas que viciam, como disse um
deputado mineiro que construiu um castelo feudal. E, mais que isso, a
certeza de que o governo tem muito mais do que pode administrar.
Principalmente quando se sabe que aquilo que é de todos (ainda) não é de
ninguém. Como prender bandidos num país onde mentir em causa própria é
um princípio constitutivo do sistema legal?
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* Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão
Fonte: Estadão on line, 11/04/2012
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