Luiz Felipe Ponde*
Na Bíblia, primogênitos foram mortos e muitos deles eram crianças inocentes, não?
Muitos leitores me perguntaram o que aquela peça kafkiana cujo título era "Páscoa" queria dizer na coluna do dia 2/4/2012.
O texto era simplesmente isto: a descrição de um ritual religioso muito
próximo dos centenas de milhares que devem ter acontecido em nossa
Pré-História.
Horror puro, mas é assim que deve ter começado toda a gama de
comportamentos que hoje assumimos como cheios de significados
espirituais. Entender a origem de algo "darwinianamente", nada tem a ver
com a "cara" que esse algo possui hoje. Vejamos o que nos diz um
especialista.
O evolucionista Stephen Jay Gould (1941-2002), num artigo de 1989 cujo
título é "The Creation Myths of Cooperstown", compara a origem mítica do
beisebol (supostamente nascido em território americano e já "pronto")
com a explicação evolucionaria do beisebol.
Gould está fazendo no texto uma metáfora do que seria uma explicação
evolucionária de um esporte. Ele narra como o beisebol "evoluiu" a
partir de comportamentos humanos casuais que na origem consistiam apenas
em bater com prazer em frutas redondas ou em cabeças com pedaços de
pau, e que a forma final aconteceu na Inglaterra e não nos EUA, muito
tempo depois.
A revolta dos americanos orgulhosos de sua mítica criação do beisebol,
com a "tese monstruosa" do evolucionista Gould, foi óbvia.
Segundo ele, o que caracteriza a diferença entre conhecer a origem
darwiniana de algo, por exemplo, a religião, e fazer mitos sobre ela, é
saber que antes de tudo o sentido que a ela damos hoje em dia (religião =
"o Bem"?) nada tem a ver com sua origem e que sua evolução deve ter
ocorrido a partir de fragmentos desconexos de comportamentos, afetos e
ideias, derivados dos subprodutos fisiológicos das mutações genéticas e
físicas que sofremos em nossa pré-história.
Cerca de 500 anos atrás praticávamos canibalismo cerebral ritualístico e
colocávamos as cabeças íntegras em posições geométricas como numa
espécie de santuário.
Achados semelhantes datados de cerca de 300 mil anos atrás, no
Paleolítico - como o que descrevo ao final do texto da semana passada -,
apontam para rituais semelhantes (ver "A Prehistory of Religion,
Shamans, Sorcerers and Saints", de Brian Hayden, Smithonian Books,
Washington, 2003).
Praticávamos canibalismo ritualístico de cérebros humanos, e crianças
sempre foram mais fáceis de serem capturadas -claro, de outros bandos.
Tirávamos os cérebros com cuidado para depois colocarmos as cabeças em
posições geométricas e com elas fazíamos algo como o que hoje chamamos
de santuário.
Semana passada foi Páscoa. Este ano, ela coincidiu com a semana que
começa o Pessach, Páscoa judaica. Quando Jesus jantava com seus
apóstolos na Quinta-Feira Santa, Ele celebrava o Pessach.
Para os judeus, essa data representa a saída da escravidão do Egito.
Para os cristãos, a Páscoa também celebra a liberdade do povo de Israel,
mas ressignificando-a como uma liberdade não só política, mas a
liberdade da alma diante das várias escravidões da vida.
Os hebreus pintaram as portas com sangue de cordeiro, seguindo a ordem
de Deus, para que o anjo da morte não matasse seus primogênitos como
mataria os dos egípcios. Esta era a última das pragas que levaria os
hebreus à liberdade.
Primogênitos seriam mortos e muitos deles eram crianças inocentes, não?
Cristãos comem o corpo e bebem o sangue de Cristo, um inocente. E "nós" o
matamos ou você duvida de qual lado você estaria na história?
Aqueles que pensam que nossos ancestrais monstruosos nada nos ensinam, se enganam.
O grau de parentesco entre a "páscoa" deles e a nossa não é tão distante
assim. Celebramos a morte de crianças (egípcias antigas), bebemos
sangue e comemos o corpo (simbolicamente) de um inocente, mas isso tudo
pra nós representa vida, liberdade.
Afinal, o que teria representado para nossos patriarcas o que eles
faziam? Seriam as crianças que eles comiam as "crianças egípcias" deles?
Ou seriam elas seus "cordeiros inocentes" por serem crianças?
Enfim, duas certezas: a "Páscoa" melhorou muito nos últimos 300 mil anos e Darwin ainda é diabólico.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista da Folha
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