Juremir Machado da Silva*
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- Minha avó lhe adora.
O "lhe" foi definitivo. Como o "seu". Por que estou dizendo tudo isso novamente? Porque me aconteceu algo digno de nota. Uma conversa proveitosa. Um encontro imprevisto que me fez passar horas refletindo. Foram poucas frases trocadas e muito tempo de maturação do conteúdo desse diálogo improvável. Vou contar tudo. Eu estava no ônibus, linha São Caetano, vindo para o Centro. Tinha um livro aberto sobre os joelhos e o celular na mão direita. Por um momento, contudo, fiquei meio perdido.
Meus pensamentos estavam longe, entre Palomas e Paris. Confesso que não me lembro bem se mais em Paris ou mais em Palomas. Creio que, por alguma razão, estava fazendo um balanço de algumas escolhas que fiz na vida. Por que escolhi a França e não os Estados Unidos para estudar? Os americanos me convidaram para visitar os Estados Unidos, queriam que estudasse inglês e acenavam com uma bolsa para eu ficar alguns anos por lá. Por que eu me tornei colorado e não gremista? Não me arrependo, mas sou pós-moderno, adoro as questões proibidas: se treinadores e jogadores mudam o tempo todo de clube, por que os torcedores não mudam também? Se as pessoas trocam de parceiros sexuais, de amores, de religião e de sexo, por que não trocam de time? Não, eu não pensava nisso.
Pensava, com certeza, na minha condição de escritor ilhado, marcado para morrer à míngua pela mídia que faz a lei da cultura no país por causa das minhas críticas, ironias e provocações. Enfim, essas coisas que assaltam a cabeça da gente dentro de um ônibus. Aí entrou uma senhora, cabelos muito brancos, sentou-se ao meu lado, pois eu estava num daqueles bancos vagos reservados a idosos ou portadores de necessidades especiais, e, sem mais nem menos, completou, isso mesmo, completou, como se estivesse conversando comigo desde o início da minha longa divagação sobre o passado, o presente e o futuro.
- É, mas precisa mostrar a bunda.
- Como?
- É preciso saber a hora de botar a funda de fora.
- De que a senhora está falando?
- Eu te leio... - as vovós não me chamam de senhor.
- Lê?
- Sim. Estou lendo agora os teus pensamentos.
- Ah, bom!
- Sim, Juremir, estou lendo. O mais importante na vida é não deixar passar a hora de botar a bunda de fora.
- Não deixar o cavalo passar encilhado.
- Isso é ditado de velho, meu caro cronista. Os tempos são outros. Pensa bem no que eu estou te dizendo...
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* Sociólogo. Prof. universitário. Escritor. Tradutor. Cronista do Correio do Povo.
juremir@correiodopovo.com.br
Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/Impresso/?Ano=117&Numero=339&Caderno=0&Noticia=460379
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