Ícone do PT , Frei Betto diz que a única saída para o
partido que governa o País há 12 anos é voltar às origens e buscar a
governabilidade com os movimentos sociais.
Um mês depois de ser
reeleita, a presidente Dilma Rousseff recebeu Frei Betto e o Grupo Emaús, da
Teologia da Libertação, no Palácio do Planalto. Durante uma hora e vinte
minutos, também na presença do chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, ouviu
uma série de críticas e sugestões para que o governo continuasse “implementando
o projeto que tanto beneficia a sociedade brasileira, principalmente os mais
vulneráveis”.
A conversa, de
acordo com ele, foi ótima. “Só que, de repente, vem o Joaquim Levy com um
ajuste fiscal penalizando, sobretudo, os mais pobres. Quem assistiu ao filme Adeus, Lenin! pode fazer o seguinte
paralelo: se um cidadão brasileiro, disposto a votar na reeleição da Dilma,
tivesse entrado em agonia no início de agosto de 2014 e despertasse agora,
neste mês de março, no hospital e visse o noticiário, certamente estaria
convencido de que o Aécio havia vencido a eleição”.
Frei Betto – que,
com as comunidades eclesiais de base, ajudou a fundar o PT e, como assessor
especial do ex-presidente Lula, coordenou o programa Fome Zero – diz que o que
falta ao governo, desde 2003, é “planejamento estratégico”. Segundo ele, que é
amigo do ex-presidente Lula há mais de 30 anos e conhece a presidente Dilma
desde a infância – “somos da mesma rua em Belo Horizonte” –, em doze anos de
governo, o PT não conseguiu tirar do papel nenhuma reforma de estrutura
prometida em seus documentos originais e, ao chegar ao governo, “trocou um
projeto de Brasil por um projeto de poder, escanteou os movimentos sociais” e
ficou “refém desse Congresso, dependendo de alianças espúrias”.
“Agora, seu grande
aliado, o PMDB, se rebela e cria – com o perdão da expressão – uma cunha renana
para asfixiar o Poder Executivo”.
Qual a saída? “O PT
ser fiel às suas origens. Buscar a governabilidade pelo estreitamento de seus
vínculos com os movimentos sociais. Fora disso, tenho a impressão de que
estamos começando a assistir ao começo do fim. Pode até perdurar, mas o PT
tende a virar um arremedo do PMDB”, sentencia ele, que é autor de 60 livros,
entre eles A Mosca Azul (“uma
reflexão sobre a história do poder e a história do PT no poder”) e Calendário do Poder (“um diário do
Planalto”), ambos editados pela Rocco.
A seguir, os
principais trechos da conversa com Frei Betto, que recebeu a coluna no Convento
Santo Alberto Magno, no bairro de Perdizes, onde mora.
Como o senhor avalia o atual momento do País?
O Brasil está
vivendo um momento de crise política e econômica. Prevejo quatro anos de
governo Dilma com muita turbulência, manifestações, greves, impasses. E me
pergunto se, em 2018, o PMDB apoiará o candidato do PT. Como bom mineiro, desconfio
que não e não me surpreenderei se o PMDB lançar um candidato próprio, com apoio
do PSB e outros pequenos partidos. A questão é que tivemos 12 anos de governo
do PT que, na minha avaliação, apesar de todos os pesares – e põe pesares nisso
–, foram os melhores da nossa história republicana, sobretudo no quesito
social. Efetivamente, 36 milhões de pessoas deixaram a miséria. Hoje, os
aeroportos deixaram de ser um espaço elitista. Se vamos em um barraco de
favela, lá dentro tem TV a cores, micro-ondas, máquina de lavar, fogão,
geladeira, telefones celulares, talvez um computador e, possivelmente, no pé do
morro, um carrinho que está sendo comprado em 60, 90 prestações mensais. Porém,
essa família continua no barraco, sem saneamento, em um emprego precário, sem
acesso a saúde, educação, transporte público e segurança de qualidade. O
governo facilitou o acesso dos brasileiros aos bens pessoais, mas não aos bens
sociais.
O que faltou?
Não tivemos, em doze
anos, nenhuma reforma de estrutura, nenhuma daquelas prometidas nos documentos
originais do PT. Nem a agrária, nem a tributária, nem a política. E aí
poderíamos acrescentar nem a da educação, nem a urbana. Em suma, o que falta ao
governo – e desde 2003 – é planejamento estratégico.
Como assim?
Governa-se na base
dos efeitos pontuais, da administração de crises ocasionais, porque o PT trocou
um projeto de Brasil por um projeto de poder. Permanecer no poder se tornou
mais importante do que fazer o Brasil deslanchar para uma nação justa, livre,
soberana e igualitária. Como é que um governo que pretende desenvolver a nação
brasileira cria um ministério que eu qualifico de coral desafinado? O que tem a
ver Joaquim Levy com Miguel Rossetto? Kátia Abreu com Patrus Ananias? José
Eduardo Cardozo com George Hilton?
Em artigo publicado pouco antes das eleições, o
senhor listou 13 razões para votar na Dilma. Agora, escreveu novo artigo, A Farra Acabou, com críticas ao governo. O que mudou?
O que mudou é que,
infelizmente, aquelas 13 razões não foram abraçadas no segundo mandato de
Dilma. A presidente montou um ministério esdrúxulo, que não conseguiu nem
sequer ter um projeto de Brasil minimamente emancipatório, como era o Fome
Zero. Aliás, o próprio governo que o criou o matou, substituindo-o por um
programa compensatório chamado Bolsa Família – que é bom, mas não tem caráter
emancipatório. Todo o governo opera agora em função de um detalhe, não de um
projeto histórico, que é o ajuste fiscal. E penalizando os mais pobres, não o
capital. Todas as bases desse ajuste estão em cima da redução do
seguro-desemprego, do abono salarial, do imposto sobre o consumo. E nada em
termos das grandes heranças, dos royalties que saem do País, das grandes
transferências de dinheiro, dos brasileiros que têm dinheiro nos paraísos
fiscais. A conta vai ser paga por aqueles que já lutam com dificuldade.
O senhor quer dizer que estamos em um caminho sem
volta?
O grave do governo
do PT – tendo sido construído e consolidado pelos movimentos sociais – foi, ao
chegar ao Planalto, ter preferido assegurar sua governabilidade com o mercado e
com o Congresso e escantear os movimentos sociais. Hoje, eles são tolerados ou,
como no caso da UNE e da CUT, manipulados, invertendo o seu papel. Com isso, o
PT ficou refém desse Congresso, dependendo de alianças espúrias. Agora, o seu
grande aliado, o PMDB, se rebela, cria – com o perdão da expressão – uma cunha
renana para asfixiar o Executivo. Se alguém me pergunta “qual é a saída”? É o
PT ser fiel às suas origens. Buscar a governabilidade pelo estreitamento de seus
vínculos com os movimentos sociais. Ou seja, o segmento organizado, consciente
e politizado da nação brasileira. Fora disso, tenho a impressão de que estamos
começando a assistir ao começo do fim. Pode até perdurar, mas o PT tende a
virar um arremedo do PMDB. Creio que cabe hoje, ao governo, fazer uma
autocrítica séria.
Por meio dos movimentos sociais é que seria possível
recuperar a imagem do partido?
Exatamente. O PT
precisa sair da posição de bicho acuado em que se colocou. O partido, até hoje,
não declarou se os envolvidos no mensalão são inocentes ou culpados; o partido,
até hoje, não declarou se ele, que governa o Brasil e, portanto, a Petrobrás,
tem ou não responsabilidade na devassa que está sendo feita na maior empresa
brasileira. O partido se afastou das bases sociais. Onde estão os núcleos
populares que, nos anos 80, encantavam todas as pessoas que chegavam na zona
leste de São Paulo, em uma favela, e a dona Maria, orgulhosamente, mostrava um
barracão que era a sede do núcleo do PT? Onde está o trabalho de base, de
formação política? Embora não tenha sido militante do PT, mas como ajudei a
construir o partido por meio do trabalho pastoral, hoje me pergunto: onde estão
os líderes do PT que, aos fins de semana, voltam para as favelas e periferias?
Onde estão os líderes do PT que não tiveram um assombroso aumento de seu
patrimônio familiar durante esses anos, a ponto de não se sentirem mais à
vontade em uma assembleia de sem-teto, em uma aldeia indígena, em um fim de
semana em um quilombola? Onde estão eles? Existem. São raros. Não vou citar
nomes, mas tenho profundo respeito por militantes e dirigentes do PT que são
muito coerentes com aquele PT originário. Mas, infelizmente, eles são exceção.
Como disse recentemente a senadora Marta Suplicy, “ou
o PT muda ou acaba”.
É como já disse, o
PT tem de mudar no sentido de voltar às suas origens e às suas bases sociais.
Acabar não vai, porque tem tantos oportunistas que ingressaram no PT como rampa
de acesso às benesses do poder, que o partido tende, inclusive, a inchar de
gente que não tem nada a ver com as suas origens. Dou um exemplo: curiosamente,
coincidindo com o dia em que a presidente entrega à nação um pacote
anticorrupção, no estado do Rio um prefeito é flagrado na corrupção. O que esse
cidadão tem a ver com a história de um partido que, ao nascer, se afirmou por
três capitais: ser o partido ético na política brasileira, ser o partido dos
pobres e ser o partido que, a longo prazo, construiria uma alternativa ao País,
com uma sociedade socialista? O PT abandonou os três capitais. Esse pessoal que
não tem a ver com o PT viu que, sendo do partido, o maná cai do céu. Fico me
perguntando quantos outros exemplos não devem existir por esse Brasil afora?
Poderíamos apontar um culpado por esse rumo diferente
que o partido tomou? O ex-presidente Lula?
Jamais, na minha análise – isso é um princípio – personalizo os acontecimentos.
Porque não acredito que a história humana seja feita por meio de salvadores da
pátria. É feita de movimentos e processos sociais. É preciso que haja uma luta
interna no PT muito acirrada para que o partido seja minimamente coerente com
suas origens e propostas.
O senhor é a favor do “volta, Lula”? Ele poderia
“salvar” o governo desta atual crise?
Minha avaliação é
que Lula só não será candidato à presidência em 2018 se morrer. Fora isso,
tenho absoluta segurança de que ele será candidato. Não foi ele que me disse
isso, é apenas da minha cabeça. Mas a questão não é “com o Lula voltando, as
coisas vão se resolver”. O problema é o rumo que o partido tomou e imprimiu ao
governo do Brasil. Há coisas extremamente positivas, mas a expectativa era
muito maior. Governo se faz com luta interna, aprendi isso nos dois anos em que
estive lá. Governo é como feijão, só funciona na panela de pressão. Aquilo é um
caldeirão em fervura permanente. Mas é preciso que haja alguns segmentos dentro
do governo capazes de elaborar uma proposta estratégica a longo prazo, que
sirva de norte para as políticas. E isso não existe hoje.
O que existe?
Um pacote de
propostas pontuais. A falta de horizonte histórico no projeto do governo,
agravada pelo fim das ideologias libertárias desde a queda do muro de Berlim, é
o que explica por que o debate político hoje desceu do racional para o
emocional. É como briga de casal. Quando se perde um projeto amoroso ou da
família, emoções afloram, insultos, ofensas, sentimento de ira e vingança,
porque não se tem horizonte. Quando esse horizonte histórico existe, quando se
tem projeto estratégico, o debate democrático fica no nível da racionalidade,
não da emocionalidade. Mas essa fúria nacional que perpassa todos os ambientes
só vai terminar se houver alguma força política que aponte um projeto
histórico.
Cedo ou tarde, toda conversa ou discussão acaba tendo
um “momento quiz”. Quem era mesmo o protagonista daquele filme? Qual
time foi rebaixado no campeonato local em 86? Antes as mentes reviravam
aflitas suas gavetas atrás de respostas, hoje bastam alguns movimentos
dos dedos para encontrá-las em smartphones e tablets. Há quem se
ressinta da intromissão digital em conversas analógicas: existe prazer
em ficar quebrando a cabeça para desvendar o mistério momentâneo. É
provável que o Google acabe enterrando esse jogo social em alguns anos –
entre outras coisas.
Como não fui abençoado com a melhor das
memórias – salvo a peculiar memória inconsciente que funciona quando
escutamos os pacientes –, considero uma bênção ter essa espécie de HD
externo portátil. A nuvem, que acessamos com esses dispositivos, é um
repositório de dados virtualmente infinito. Lá, estão guardados para
acesso imediato informações de todas as espécies, de simples números de
telefone a textos clássicos, passando por imagens, vídeos, músicas,
podcasts, e-mails, bases de dados.
Em As Tecnologias da
Inteligência, o filósofo Pierre Lévy compara o surgimento dos meios
digitais à invenção da escrita, em termos do impacto sobre a humanidade.
Se ele tem razão só o tempo dirá, mas não há dúvida de que está em
curso uma transformação importante na forma com que lidamos com o saber.
A lógica linear inaugurada pela escrita, que possibilitou o registro e,
portanto, a invenção do tempo e da história, vai dando espaço para a
lógica fragmentada, instantânea, efêmera das redes do mundo digital.
Estudos
têm demonstrado que retemos cada vez menos dados na memória com o
crescente uso desses dispositivos. Uma porque somos inundados por uma
quantidade cada vez maior de informações, das mais importantes às mais
banais, e tudo ao mesmo tempo. Outra porque o cérebro sabe que pode
muito facilmente encontrá-las, não tem mais por que armazenar tanta
coisa. Fala-se em perda de memória e de outras capacidades, mas o que
esses estudos revelam é a forma como nos adaptamos, às vezes com
assustadora plasticidade, ao mundo artificial que começamos a criar
milhões de anos atrás.
Deparar-se com essas transformações
eventualmente nos deixa desnorteados, pois elas têm também efeitos sobre
como nos pensamos e constituímos como indivíduos. Nossa subjetividade,
que temos como algo íntimo e imutável, se forma em grande parte a partir
do que vem de fora de nós. Deparar-nos com lógicas estranhas às que
originalmente nos constituíram pode gerar estranhamento, angústia,
resistências. Sobretudo em relação às gerações mais novas, nas quais é
visível como essas tecnologias influenciam capacidades cognitivas e
modos de ser. Os mais catastróficos temem o fim dos tempos, o retorno à
barbárie – é o fim do saber e da memória, é o fim da história!
Concordo
com Lévy, que não dá muita fé aos presságios apocalípticos. Mas em algo
eles têm razão: é possível que estejamos vivendo o fim dos nossos
tempos, da forma como os (e nos) conhecemos. Porém, assim como a escrita
não substituiu, mas sim se somou à oralidade – ela foi o primeiro HD
externo da humanidade! –, também a lógica dos tempos digitais não
substituirá as que a antecederam. A coexistência das três, no entanto,
constitui algo novo, cujos efeitos apenas iniciamos a entrever.
A
nostalgia dos tempos “melhores” e as visões catastróficas do futuro que
muitas vezes nos afetam são formas de nos protegermos da angústia
causada pelo desconhecido. São porém uma tentativa pouco eficaz de
evitar mudanças que já estão em um curso impossível de reverter. Já que
não voltaremos às eras pré-digitais, gourmetizadas pelas distorções e
enganos que caracterizam a memória humana, mais vale fazer um esforço
para encarar o porvir mais despidos de preconceitos. Quem sabe assim
possamos ir aos poucos entendendo – e aprimorando – esse mundo que está
se desenhando?
Usina recicladora dos afetos permanentes, ela se torna ingrediente milagroso
Ninguém
encanta escrevendo sobre o que não sente. O David Coimbra sempre
escreveu maravilhosamente, mas quando parecia impossível melhorar,
descobrimos que é possível.
Se nos dermos ao deleite de reler
suas crônicas do último ano, perceberemos que as contemporâneas,
políticas ou não, são ótimas, mas as melhores são aquelas que envolvem
reminiscências, onde predomina, como era inevitável, o efeito catártico
da distância. Esse é o benefício dos anos sabáticos na depuração dos
sentimentos.
E tudo simplesmente porque a revisão amorosa das
nossas experiências de vida é enriquecida pela saudade, essa poderosa
usina recicladora dos afetos permanentes. É esse o ingrediente milagroso
que nos faz mais carentes, mas também enternece a nossa memória e traz
os nossos sensores afetivos para a flor da pele.
Quando vivi nos
EUA, senti a necessidade visceral de escrever para aquelas pessoas de
quem, acabara de descobrir, gostava mais do que tinha tido o cuidado de
anunciar, e aquilo de repente me parecera um imperdoável desleixo
emocional. Se um paciente me lembrava algum amigo, canalizava o afeto
reprimido, e cuidava dele como se cuida de um ente amado. E como
carência afetiva é um mal cosmopolita, nunca me faltou um receptor
disponível.
Foi assim que me aproximei do Mr. Collis, um velho
plantador de milho de Minnesota que fora internado para tratar de um
tumor de pulmão aparentemente precoce. Pedi a um colega para assumir o
caso dele, e nunca expliquei a nenhum dos dois que eu precisava proteger
a saudade que evocava aquela cabeça idêntica à do meu pai.
Compartilhei
o entusiasmo com que lhe fora anunciada a perspectiva de cura e me
condoí quando o meu chefe anunciou, sem preâmbulos, que infelizmente
estava frustrado porque a doença estava disseminada e aquele nódulo
pulmonar, de aparência inocente, era, na realidade, a ponta do iceberg
de um câncer avançado.
Depois que o quarto esvaziou porque todos
debandaram com aquela pressa de quem foge da impotência, ficamos sós, e
ele implorou que eu desse um jeito de protelar a sua morte até depois do
Natal, porque se não, a volta extemporânea do filho, envolvido num
projeto milionário na Tailândia, arruinaria sua brilhante carreira de
jovem engenheiro.
Ele sabia que eu não tinha como ajudá-lo. Eu
também. Mas nos prometemos. E como dois seres apátridas, ficamos um
tempo de mãos dadas, cada um administrando a sua saudade. Esse
sentimento imenso e único, que sempre aponta para casa. Não importa a
distância.
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* J. J. Camargo é cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre
Cid Gomes no plenário da Câmara pouco antes de ser demitido do Ministério da Educação
Se o sistema político tentar se blindar contra
as polarizações existentes nas ruas, situação pode atingir cores ainda
mais dramáticas, diz filósofo
O sistema político entrou em pane. A franja parlamentar
que se costuma chamar de oposição, liderada pelo PSDB, foi inteiramente
atropelada pela oposição que foi às ruas. O PT não lidera o governo que
elegeu. O PMDB se divide hoje em três ou quatro ajuntamentos que não se
entendem e operam de maneira independente e descoordenada. O PP
simplesmente implodiu e os escombros serão recolhidos por algum cacique
regional e pelo PSD, que tem dois ministros e uma bancada na Câmara que
só costuma entregar metade de seus votos ao governo. Isso para falar
apenas dos maiores partidos do País.
Qualquer governo nunca é rocha sólida, é sempre cheio de furos
e fraturas por onde se infiltram viscosidades várias. Acontece que está
difícil de ver a rocha. Os centros de comando se multiplicaram e estão
operando de maneira bastante independente. Só a política econômica
parece estar sob relativo controle, ainda que sob permanente ataque de
todos os lados. De qualquer maneira, é um controle de tipo
motoniveladora e tesoura e não efetiva coordenação.
Uma situação como essa não pode e não deve ser caracterizada
apenas como uma crise. É uma crise muito grave, que pode levar o País a
uma situação de paralisia ou de regressão por um longo período. É a
primeira grande crise em situação de estabilidade da história recente do
País.
A estabilidade que se teve nos 20 anos que vão desde o
impeachment de Collor até junho de 2013 foi pontuada por momentos de
crise. Mas, em termos de gravidade, nenhuma crise chega perto da que se
vive agora, com a conjunção de crise de governabilidade, crise
econômica, crise hídrica e de energia, crise do sistema partidário.
A crise do sistema partidário é sintoma do fosso entre sistema
político e sociedade. Essa crise de representação esteve no centro das
revoltas de junho, onde forças políticas opostas ocuparam a mesma rua ao
mesmo tempo. A polarização da eleição presidencial de 2014 refletiu,
ainda que de maneira limitada, um princípio de organização dessas
polarizações sociais reais, que estavam até ali bloqueadas pelo sistema
político. Mas essa polarização não se consubstanciou em bancadas de
situação e de oposição correspondentes, não encontrou expressão adequada
no interior do sistema político.
O pouco mais pouco menos da metade do eleitorado que votou em
Dilma Rousseff não se sente representado pela megamaioria de apoio ao
governo, que embute a verdadeira, real e efetiva oposição ao próprio
governo. O mesmo vale para o pouco mais pouco menos da metade do
eleitorado que não votou em Dilma Rousseff: não se sente representado
pela franja oposicionista, que não tem nenhum outro projeto a não ser
manter o condomínio do mesmo jeito, só mudando o síndico. O único
político (de oposição, ressalte-se) que ousou tomar um microfone na
Avenida Paulista em 15 de março foi impedido de falar pelas vaias.
Um outro efeito decisivo do junho de 2013 pode ser visto na
Operação Lava Jato. Foi a conjunção do clamor das ruas com uma longa
preparação de órgãos judiciais e de investigação que conseguiu superar
os bloqueios escandalosos que o sistema político impôs a operações
anteriores de mesma magnitude. Em 2010, por exemplo, o Superior Tribunal
de Justiça bloqueou a Operação Castelo de Areia, precursora da atual
Lava Jato. Com isso, foi adiada em cinco anos a nossa “Operação Mãos
Limpas”, aquela que mudou para sempre a política da Itália nos anos
1990. Foi perdida mais uma chance de alçar o modo de operação do sistema
político a um novo e superior patamar, em um momento econômico ainda
relativamente favorável àquela altura.
Diante do risco muito concreto de enfrentarem não apenas o fim
de suas carreiras políticas, mas a prisão, grupos inteiros dentro dos
partidos se organizaram com o objetivo único e primordial da autodefesa,
fragmentando ainda mais um sistema já perto do inadministrável.
Situação que é um obstáculo quase intransponível a qualquer projeto de
reorganização do sistema político com base em acordos estritamente
partidários. Porque o aprofundamento das investigações da Lava Jato vai
ter o efeito de desorganizar ainda mais um cenário partidário já muito
desarrumado.
Do lado da sociedade, o efeito pode ser o do crescimento de
uma negação abstrata da política, de uma rejeição da política enquanto
tal. É o caldo de cultura perfeito para a formação de um despolitizado
“que se vayan todos”, nos moldes da Argentina de 2001. Esse abismo está
posto diante do País e não pode ser ignorado.
Qualquer reconstrução da governabilidade nos moldes
tradicionais do peemedebismo do sistema político - ou, para lembrar o
eufemismo que ficou consagrado, o “presidencialismo de coalizão” - vai
ser bombardeada por quatro longos anos pelas ruas e pelo oportunismo
partidário cabível. Mesmo que a desvalorização do câmbio acabe tendo
efeitos econômicos positivos no horizonte de um ou dois anos. Mas pode
ser que um governo assim consiga sobreviver.
Ocorre que uma reorganização como essa não depende apenas do
governo, mas também da oposição. Do contrário, a crise não vai sequer se
estabilizar. A reorganização nesses moldes depende de um balé
coreografado entre governo e forças que se disponham a liderar uma
frente oposicionista efetiva, que dê voz real à oposição presente na
sociedade. Para que isso aconteça, forças partidárias de oposição terão
de se perfilar no sentido das ruas, sem recuar nem mesmo diante da
bandeira do impeachment, por exemplo - que até agora não foi aceita de
maneira inequívoca por nenhuma liderança política de peso. O fato de a
maioria dos que foram às ruas no dia 15 de março não ser favorável ao
impeachment não significa que o tema saia da pauta.
Congregando o conjunto das forças de oposição presentes nas
ruas em toda a sua diversidade, uma frente como essa teria o potencial
de atrair uma bancada parlamentar representativa, capaz de expressar no
interior sistema político a real polarização existente na sociedade
entre situação e oposição, e não a encenação patética a que se assiste
há quase dez anos. De qualquer maneira, se seguida, essa linha de ação
teria de ser executada de maneira hábil e cuidadosa, dado o rechaço
generalizado da política e dos políticos que emergiu desde junho de
2013.
Não sendo esse o caminho trilhado, pelo menos duas outras
possibilidades se abrem. Na primeira delas, o sistema partidário
continua desconectado das diferentes forças sociais que irromperam desde
2013. Nesse caso, o sistema político uma vez mais dará as costas às
ruas, em toda a diversidade de aspirações presentes nos diferentes
protestos. As forças que sustentam o movimento pelo impeachment vão
recrudescer e buscar em outsiders do sistema político a expressão de sua
insatisfação de base. Essa é a alternativa Joaquim Barbosa, comparável a
uma experiência como a de Silvio Berlusconi na Itália. Depois da
“Operação Mãos Limpas” e da ausência de uma efetiva reorganização
estrutural, o sistema político italiano entrou em colapso e o rechaço
generalizado da política e dos políticos só encontrou expressão em
Berlusconi.
A segunda e mais improvável possibilidade é a formação de uma
frente ampla em torno de uma reorganização do sistema político em novos
moldes. A improbabilidade dessa via é tanto maior quanto mais profunda é
a incompreensão do significado do junho de 2013. A raiva social
liberada ali, a agressividade cotidiana entre vizinhos, colegas de
trabalho e mesmo em círculos de amigos não vai voltar para a garrafa só
porque se alcançou um novo acordo com o PMDB - qual PMDB, aliás -, ou
porque a franja oposicionista resolveu “estudar a possibilidade” de
pedido de impeachment.
Ainda não é suficientemente clara a consciência da gravidade
da crise atual. Nem ficou ainda evidente que nenhuma força partidária
irá se beneficiar do caos. Se se quiser uma imagem: ainda não ficou
claro que a situação se assemelha a uma conjunção do momento
pós-impeachment de Collor com o início do segundo mandato de FHC, em
1999.
Mas é apenas uma imagem. Porque, ao contrário desses dois
outros momentos, hoje não se pode falar sequer em acordos estritamente
partidários, dada a fragilidade em que se encontram os partidos. E a
construção de um real programa de governo teria de se dar em bases que
não sejam ditadas nem dirigidas por nenhuma força política em
particular, mas resultado de um efetivo acordo negociado. Para não falar
no fato de que o país que viveu vinte anos de relativa estabilidade, os
padrões de vida melhoraram e as expectativas de diminuição de
desigualdades, efetivação de direitos e de melhoria dos serviços
públicos fincaram raízes profundas na sociedade.
Importa ter claro que essas possibilidades hoje visíveis
evidentemente não se equivalem nem significam uma efetiva superação da
crise. Se o sistema político uma vez mais optar por se blindar contra as
polarizações existentes nas ruas o resultado será o prolongamento da
crise por outros meios, em versões até mais dramáticas, inclusive.
Porque o pior da crise ainda está por vir. A Lava Jato ainda
não fez todo o estrago que tem para fazer. A recessão econômica ainda
não mostrou seus dentes. O desemprego ainda não chegou a seu pior
momento nem a inflação atingiu seu pico destrutivo. Os racionamentos de
água e de energia ainda não se tornaram oficiais. Os protestos de rua
ainda não são cotidianos.
A longa e paquidérmica redemocratização brasileira, de 1979 a
2013, foi feita com base em um grande acordo que teve pelo menos três
momentos. A década de 1980 foi marcada pela formação de um “Centrão”
político para a superação do autoritarismo, uma garantia contra o risco
de “guinadas bruscas” do quadro político. Na década de 1990, esse
Centrão foi dirigido e direcionado para a produção de uma estabilização
econômica e política, superando a paralisia e o caos da década anterior.
Na década de 2000, sem alterar essa mesma lógica de gerenciamento do
sistema político, a estabilização alcançada foi posta a serviço de uma
melhoria geral dos padrões de vida sem aumento das desigualdades.
A crise atual mostra a obsolescência desse acordão típico da
redemocratização e a necessidade de uma democratização da democracia, de
uma efetiva democratização do sistema político. O ambiente para isso é
ruim, evidentemente. Mas é o que se tem.
Qualquer realinhamento tem de ser feito quanto antes. Não se
pode esperar que a múltipla crise que enfrentamos atinja seu momento
mais destruidor. Do contrário, o que se verá é uma situação de caos
social, econômico e político como só a década de 1980 foi capaz de
produzir.
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* MARCOS NOBRE É PROFESSOR DE FILOSOFIA DA UNICAMP E PESQUISADOR DO CEBRAP Fonte: O Estadão online, acesso 28/03/2015
Mário Cláudio tem praticado assiduamente a biografia nos seus romances: não existem um sem o outro, defende nelson garrido.
Charles Dogson, aliás Lewis Carroll, e Alice Lidell, aliás "a do livro". Em O Fotógrafo e a Rapariga,
Mário Cláudio recua até à Inglaterra do século XIX para reconstituir
uma das mais prodigiosas ligações da vida ao romance e do romance
à vida
– e assim encerra uma trilogia.
ComO Fotógrafo e a Rapariga, Mário Cláudio conclui uma trilogia iniciada com Boa Noite, Senhor Soares (Dom Quixote, 2008) e retomada em Retrato de Rapaz
(Dom Quixote, 2014). Qualquer uma destas ficções se fixa na
problemática da diferença de idades entre personagens centrais. Se, no
primeiro, o autor ficciona o semi-heterónimo pessoano Bernardo Soares,
cruzando-o com dados históricos e biográficos do próprio Pessoa, em Retrato de Rapaz
executa um quadro de época que representa figuras reais, dotando-as de
elementos romanescos baseados em dados historiográficos e da biografia. O
mesmo paradigma está presente em O Fotógrafo e a Rapariga. Nele,
Mário Cláudio efabula a relação entre o matemático, académico e clérigo
Charles Dodgson, celebrizado com o pseudónimo Lewis Carroll, e Alice
Lidell, “a do livro”, como diz aquela que esteve na origem das ficções
de Carroll.
Os seis
capítulos da novela são balizados por dois momentos paralelos à acção
nuclear da obra. Numa espécie de prólogo na primeira pessoa, Alice
começa por evocar um passado nunca completamente enterrado. É a
oportunidade para o confrontar com a fatuidade baça do seu presente
ancião, em que parece perdida num mundo de ritualismos e compromissos
sociais que a ultrapassaram e desiludiram. A conclusão de O Fotógrafo e a Rapariga
regressa à primeira pessoa, mas a de Carroll, real e figurativamente
só, a bordo de um comboio, que é um comboio fantasma pois alberga todos
os espectros desta criatura atormentada pelo demónio de uma sexualidade
conturbada.
O Fotógrafo e a Rapariga desenvolve com enorme
subtileza um tema particularmente atreito a equívocos e logros. A
substância narrativa da novela, perturbantemente lírica, consegue
equilibrar os diversos vectores em causa, sem que os seus esforços
soçobrem numa tentativa demasiado histriónica de traduzir um caso
complexo e patológico. A veia malsã de Carroll, sem ser camuflada, não
constitui um padrão demasiado berrante na narrativa, que entretece a
pulsação errática e desordenada da jovem com o caos interior do
escritor-fotógrafo. O que não deve fazer pensar num resultado asséptico
ou insípido. Pelo contrário. O subsolo da novela é, todo ele, uma camada
tensa e reactiva, sob a qual se vai “ora ocultado a materialidade, ora
desprendendo a fantasmagoria”. E em que inocência e perversidade não são
dogmas que imobilizem a escrita.
Mário Cláudio falou, numa crónica (recolhida em O Eixo da Bússola,
Quasi Edições, 2007), da “safra de prosseguir na escrita de livros e
livros, mais oriundos da cadência da respiração do que obedientes a um
projecto de carreira”. Podia comentar? Sim, reconheço-me
nisso. É a ideia de que uma carreira, para mim, não é alguma coisa
vigiável. Não se deve talhar uma carreira em função daquilo que é a
ressonância exterior do nosso trabalho. Em função das reacções do
público, se vende muito ou se vende pouco, se interessa a este ou
àquele, ao editor. São razões que acabam por penalizar o próprio autor.
Acho que se, de facto, houver obediência a uma razão interior, em que as
coisas saiam de dentro para fora e não resultem de fora para dentro, aí
teremos, com certeza, maior hipótese de acertar no alvo. E o alvo é
isto: a nossa coerência, a nossa identidade, aquilo que nós somos,
independentemente do que os outros querem, ou que nos forçam a ser.
Falou de identidade. Quais acha que são os traços da sua identidade enquanto escritor? São
vários. Eu reconheço-me naquilo que tem sido, normalmente, apontado
como mais identitário, e é um certo formalismo, em termos linguísticos,
um barroquismo de estrutura. E isso obedece a um paradigma dual, entre o
barroco e o clássico. Eu estarei no paradigma barroco, e não tenho
qualquer problema em me sentir lá. Há também uma certa inscrição num
Norte mítico, que não é só o Norte de Portugal, é também o Norte da
Europa, uma escrita mais atlântica do que mediterrânica, se quiser,
embora com algum apetite da solaridade mediterrânica. Tudo isso são
elementos identificadores. Para além dessa tendência para especular com
aquilo a que poderíamos chamar, genericamente, o humano. O humano
sobretudo numa vertente biográfica. Humanos autênticos, humanos
históricos, que passaram por cá, e que eu gosto de ler de acordo com os
meus padrões de inteligibilidade. Com os meus padrões de sensibilidade,
independentemente daquilo que poderá fazer parte das biografias oficiais
mais ou menos canónicas.
No seguimento do que diz, acredita que tem alguma importância, para o estilo do autor, o local de onde ele provém? Acho
que sim. Sem dúvida. Um autor que renegue as suas origens, ou o faz de
forma muito viva, optando por outras raízes, por outra área de inserção,
outro nicho, ou… E não faltam exemplos de autores que fizeram isso.
Logo em Portugal temos um caso paradigmático, que não foi propriamente
um abandono das raízes, mas foi uma leitura das raízes da portugalidade à
luz daquilo que foi a experiência parisiense. É o caso, por exemplo, do
Eça de Queirós. Portanto, aí as coisas estariam certas, seriam
absolutamente legítimas e compreensíveis. Mas quando há, digamos, uma
estabilidade da raiz, quando a raiz não se altera facilmente, quando
algum nomadismo e certa errância temporal não afectam o sedentarismo de
base, aí, sim, deve-se abraçar essa dimensão sedentária e lidar com ela
de uma forma apaixonada e comprometida. Estou a lembrar-me, por exemplo,
do caso da Agustina, que tem um universo claramente português,
dificilmente entendível fora de Portugal – e daí que ela seja uma autora
tão pouco traduzida, apesar de o merecer. Estou a pensar no Aquilino
Ribeiro, a quem aconteceu a mesma coisa. Estou a pensar num galês, John
Cowper Powys, que é um grande génio da ficção, e que praticamente não é
conhecido fora do País de Gales. Portanto, são figuras importantes, que
abraçaram as suas raízes de uma forma tão profunda, e com tanta coragem,
que a partir de certa altura se lhes tornou indiferente serem lidos, no
sentido mais amplo da palavra, fora do terreno onde essas raízes se
desenvolvem.
E para Mário Cláudio, qual é a marca de ser do Porto? O Porto aparece em muitos dos meus trabalhos. N’ A Quinta das Virtudes, no Camilo Broca, para além das crónicas sobre o Porto que publiquei, e até num livro dedicado à cidade, chamado O Meu Porto.
Portanto está, sem dúvida, muito presente. E está presente também, não
só como uma paisagem que eu vivi, mas como uma raiz que eu assumi.
Porque a minha família está aqui radicada há muitos anos. E é curioso
que é uma família que tinha raízes noutros lugares da Europa, na
Irlanda, em França e Castela, predominantemente, e que veio para aqui,
que se misturou e criou aqui um clã. E isso também é abraçado naquilo
que eu faço, portanto a dimensão da cidade é, para mim, intransponível.
O aspecto barroco, de que falou antes, tem alguma coisa que ver com isso? Não
tenho dúvida. É bom que fale nisso, porque eu acho que nós somos
condicionados pelo lugar onde vivemos. Seria absolutamente impossível,
falando de grandes escritores, pensar num Lampedusa fora da Sicília.
Seria impossível pensar nas irmãs Brontë sem ser naquela dimensão de
interior cemiterial britânico do século XIX. Ou pensar em Tennessee
Williams sem pensar em Nova Orleães. Até é impossível pensar em Proust
sem pensar em Paris. Temos aqui, de facto, uma identidade, e os autores
que pretendem escrever para fora disso obtêm produtos muito artificiais,
coisas um pouco plásticas. Às vezes, por uma ânsia de produzir alguma
coisa que esteja à la page internacionalmente, o que resulta é uma ganga. Uma espécie de blue jeans, de blue jeans universais,
que toda a gente reconhece, que toda a gente identifica, mas que não
pertencem, afinal, a parte nenhuma. E nós sabemos que os blue jeans estão em toda a parte, até no mundo mais pobre.
Concorda
que a inserção da biografia no romance, como a pratica Mário Cláudio, é
um elemento pouco habitual na ficção actual? A que atribui essa
presença na sua obra? Eu acho que em todos os romances há um
elemento biográfico. Não creio que seja possível superar isso. Até acho
mais: os grandes romances são sempre romances biográficos. Tenho de
falar dos grandes… daqueles que eu considero grandes romances. Guerra e Paz é um romance biográfico, de certa maneira; o Amor de Perdição é um romance biográfico, de uma outra maneira; Em Busca do Tempo Perdido é um romance biográfico, ainda de uma outra maneira. O Homem sem Qualidades
é outro romance biográfico. Portanto, os grandes romances da literatura
ocidental e que obedecem àquilo que é a tradição do romance francês do
século XIX, primeiro romântico, depois realista e naturalista, são
produtos muito ligados a lugares. Resultam da vivência dos respectivos
autores nesses lugares. Quando isso desaparece, desaparece muita da
autenticidade do romance, uma vez mais. Portanto, o elemento biográfico é
tão forte no romance como o elemento romance é forte na biografia. Não é
possível escrever uma biografia sem romance…
Mas é verdade que nem todos os autores vão por aí… Claro
que não, claro que não. Pelo menos, afoitamente não terão ido, mas isso
acaba por se manifestar de alguma forma. Mais uma vez, se pensar nos
autores portugueses modernos, do século XX, desde os neo-realistas, até
mesmo autores posteriores que pretenderam reagir contra o neo-realismo…
Se pensar, por exemplo, no Finisterra, do Carlos de Oliveira, ou numa A Sibila,
da Agustina, ou até nos próprios romances do Cardoso Pires, vai
encontrar uma atmosfera que foi existencialmente vivenciada por eles. O
mesmo terá acontecido com o Vergílio Ferreira, da Aparição, da Estrela Polar.
Em que medida se distingue o que Mário Cláudio fez em obras como Amadeu, Camilo Broca, ou Peregrinação de Barnabé das Índias, do que fez com Tiago Veiga (que surge em Boa Noite, Senhor Soares, de passagem), ou com António Nobre? A
minha tendência é sempre pensar mais naquilo que une esses vários
trabalhos do que naquilo que os distingue. E aquilo que eu acho que os
une é o que eu gosto mais de ver reconhecido no meu trabalho, uma
coerência. Houve uma vez um crítico, que eu respeito muito, e que disse,
a propósito de um romance meu, que não havia grande coerência nas
coisas que eu escrevia. Foi a maior afronta que me puderam fazer, porque
a coerência é, realmente, o valor por que eu tenho lutado mais ao longo
do tempo. E há, de facto, um encadeamento de situações em tudo aquilo
que eu faço. Provavelmente, o número três será identificativo desse
encadeamento. Se as pessoas pensarem em tríades, provavelmente
encontrarão esse encadeamento de uma forma mais visível. Mas eu não
posso abandonar a ideia de que tudo aquilo que eu faço tem um passado e,
eventualmente, um futuro. Um passado, na medida em que aquilo que eu
estou a escrever hoje está contido no que estava lá atrás; e muitas
vezes o que eu estou a escrever agora surge-me já como um primeiro
degrau de um conjunto, normalmente de três, de outros degraus que me vão
surgir no futuro em termos de programa de trabalho.
A
propósito, como vê a figura de António Nobre, a nível da edição da obra e
da recepção do poeta na actualidade? Acha que se faz e fez tudo o que
se poderia fazer pelo poeta do Só, que Mário Cláudio editou (Alicerces, Correspondência com Cândida Ramos e sobre o qual fez uma Fotobiografia)? Não,
há muita coisa que ainda se pode fazer. Para já, o António Nobre é um
autor muito mais lido a Norte do que a Sul. Ao contrário do que acontece
com o Cesário Verde. Nós vivemos sempre essa dicotomia: o Nobre a
Norte, o Cesário a Sul; o Camilo a Norte, o Eça a Sul. Isso
provavelmente terá raízes antigas. São questões que têm mais que ver com
a sociologia da literatura e da leitura do que propriamente com a
teoria literária. E essas disciplinas, infelizmente, têm sido muito
pouco estudadas entre nós. Mas acho que valia a pena. Há autores que têm
uma inscrição regional muito grande, embora não sejam regionalistas; e
há outros autores que têm uma dimensão nacional, ou que podem ter, e que
acabam por ficar circunscritos a uma certa região. É o caso, por
exemplo, do Teixeira-Gomes. E, no primeiro caso, poderíamos pensar num
homem que está hoje completamente esquecido, mas que continua a ter uma
grande bolsa de leitores no Alentejo, que é o Brito Camacho. Ou, aqui a
Norte, o Guerra Junqueiro, que tem uma outra bolsa de grandes leitores
em Trás-os-Montes, mas que não sai dali. E ainda jovens; tem mesmo
leitores jovens. Esses fenómenos deveriam ser estudados com algum
cuidado, mas não vejo que se lhes preste muita atenção. Eu acho que se
pode ainda fazer muito pelo António Nobre. O que me interessa nele é,
para além dessa inscrição a Norte, desse mundo setentrional que ele
declinou de uma forma notável, também o carácter extraordinariamente
inovador de uma poesia que, na altura, foi considerada absolutamente
monstruosa, porque era mais prosa do que poesia, e que antecipou muito
do que viria a ser a poesia do futuro. Eu acho que, quanto a isso, não
preciso de dizer mais nada, porque o próprio Fernando Pessoa reconheceu
quanto a poesia portuguesa devia à lição do António Nobre. Depois, o
António Nobre é também um mistério, como acontece, aqui a Norte, com
outros da mesma estirpe. Porque se trata de um homem muito pouco
aculturado. Leu pouco, não era propriamente um poeta intelectual, como
foi, indiscutivelmente, o Pessoa. Mas, apesar de tudo, inovou
profundamente a linguagem poética portuguesa, antecipou coisas que
apareceriam noutros países. Por exemplo, a introdução da toponímia no
discurso poético, como fizeram os americanos da geração do Pound. E de
uma forma muito natural, quase infantil. Mas continua a ser desprezado,
sobretudo através do descaso a que foi votado o rasto que ele deixou. A
casa onde ele morreu… que está a cair de podre, e não tem ninguém que
lhe deite a mão. E era preciso que isso acontecesse, e que fosse a
Câmara a fazê-lo. Porque, justamente, aqui na Câmara Municipal do Porto,
existe todo o espólio, riquíssimo, do António Nobre, que está metido em
gavetões e que ninguém vê. E podia ficar ali, criar-se, inclusivamente,
um pólo equivalente à Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.
Parece-lhe que existe, entre nós, um défice de biografias escritas por ficcionistas? Eu
ainda fui testemunha de uma época em que a biografia não era
praticamente praticada em Portugal. Havia umas vagas biografias. De
escritores, havia uma colecção chamada A Obra e o Homem, da
Arcádia, que tinha biografias de alguns autores. Mas as grandes figuras
históricas, ou eram biografadas por académicos, para uso académico, ou
não tinham expressão em termos de livraria. A partir de certa altura,
começou a haver um interesse pela biografia, que já vinha de longe. O
Camilo Castelo Branco manifestou algum interesse, embora tivesse
romanceado, em várias biografias, como a do Marquês de Pombal. Ou o
Aquilino Ribeiro. E depois, é preciso dizê-lo, muito do labor biográfico
feito em Portugal deve-se à Agustina Bessa-Luís. Não só a biografia de
figuras, mas a biografia de situações. Situações históricas. Por
exemplo, o período do 25 de Abril, com As Pessoas Felizes, ou com Os Meninos de Ouro, são, de alguma forma, biografias, ou até estudos históricos, de uma fase. Como o Sebastião José
foi uma biografia do pombalismo, mais até do que uma biografia do
próprio Marquês de Pombal. A partir de certa altura começaram, a surgir,
e com um grande público, biografias de grandes figuras históricas,
sobretudo do século XX: Salazar, Humberto Delgado… Levadas a cabo por
historiadores, com critérios de grande escrúpulo, histórico, mas não são
propriamente exemplares em termos literários. Como encontramos na
tradição britânica, com nomes como Peter Ackroyd, ou [Ricard] Ellman,
que são muito importantes no mundo da biografia, mas também são, eles
próprios, grandes autores literariamente válidos pelo seu próprio
direito. Isso, não temos, de facto.
Porque será? Não
sei, não faço ideia. Há aqui esta impressão de que a biografia é para
os cientistas da História, e o resto é para os outros. Eu devo dizer que
acho que dei algum contributo, ao editar uma biografia, a do Tiago
Veiga, que pouca gente terá lido, porque é muito grande e as pessoas são
muito preguiçosas. Era uma biografia escrita com critérios da biografia
como modelo literário.
Parece-lhe que o tema desta novela, O Fotógrafo e a Rapariga –
a aproximação do fotógrafo Charles Dodgson/Lewis Carrol a Alice Lidell,
“Alice, a do livro”, como ela diz de forma tão pungente –, é
particularmente espinhoso? É um tema muito arriscado. Tão
arriscado como isto: levanta uma questão que tem a ver com duas palavras
com as quais nós temos grande dificuldade em conviver quando estão
ligadas, sexualidade infantil. As crianças têm sexo, e têm uma
sexualidade. No entanto, continua a haver um sinal vermelho quando as
pessoas falam na sexualidade das crianças. Porque aquilo que aconteceu à
Alice, se é que aconteceu alguma coisa, ou pelo menos do ponto de vista
mental, ou platónico, por parte do Lewis Carroll, podia ter sido mais
bem entendido se, na época, houvesse a ideia de que as crianças não são
anjos. Mas ainda hoje dizer isso é problemático. É um risco que se
corre. Aquela menina não sabia, de todo, nada sobre a sexualidade
humana, sou o primeiro a reconhecê-lo; mas tinha a intuição de que há
manobras de sedução de uma criança relativamente a um adulto. Seja qual
for o tipo da sedução. Sedução afectiva. Repare nisto: a fotografia que
está na capa do meu livro [que reproduz um retrato de Alice Sidell,
tirado por Carroll] é a capa de uma miúda que está a seduzir. Já sabemos
que não é uma sedução sexual. Mas a pergunta que se faz é sempre essa:
onde é que acaba a sexualidade e começa o afecto? E isso é um tema tabu.
Não se pode especular muito.
Mas Mário Cláudio correu esse risco… Corro
o risco de chamar a atenção para um aspecto que faz parte do humano.
Nós sabemos, por exemplo, qualquer pessoa pode verificar isso, que os
escritos sobre a sexualidade infantil do Kinsey – o grande sexólogo –
nunca foram publicados. Continuam secretos. E eu não sei se isso é bom
para as crianças. Não sei se isso é capaz de defender as crianças
daquilo que é um crime hediondo, que é a pedofilia. Se calhar, o efeito é
o contrário. Por isso é que eu convidei o Daniel Sampaio para fazer a
apresentação deste livro, e ele aceitou imediatamente. Porque nos pode
iluminar relativamente a uma paisagem em que nós andamos completamente
às escuras, aos tropeções. E, sobretudo, a lutar com os nossos fantasmas
e com os nossos medos. E é isso que me preocupa. Que as questões da
pedofilia tenham suscitado o pânico que suscitaram, legitimamente, mas
que haja uma vulgata, em termos de comunicação social, daquilo que é a
pedofilia. Sobretudo, alertando as pessoas para que a maior parte dos
casos ocorrem na família.
O Fotógrafo e a Rapariga encerra uma trilogia, após Boa Noite, Senhor Soares e Retrato de Rapaz.
Além da diferença de idade (Bernardo Soares e António; Leonardo e
Salai; Lewis Carroll e Alice), que outros pontos de contacto poderíamos
detectar? A presença de uma arte: a escrita, a pintura/escultura, a
fotografia, desde logo… Sim, a diferença de idades. E as
épocas, que são diferentes. Começou numa época mais próxima de nós,
continuou numa época mais recuada e concluiu numa intermédia. Acho que é
fundamentalmente isso: a dificuldade de diálogo entre pessoas que
pertencem a gerações diferentes. Um sobressalto que paira sobre esse
diálogo e que tem várias formas de expressão. E também, em qualquer
destes casos, eu suponho que haja vários itinerários de solidão. Tanto a
solidão do Sr. Bernardo Soares, que vê aquele rapaz com simpatia, mas
que, no fundo, não significa nada para ele. Ele é um homem solitário e
continua a ser solitário. O rapaz não consegue erigir naquela figura uma
imagem paternal, porque é alguém muito distante. E faz o seu percurso
apenas admirando de longe. No caso do Leonardo e do Salai, essa solidão é
patente, num caso e noutro. Acaba por ser um diálogo de tontos, de
pessoas que não chegam a funcionar. E no caso de Alice é mais do que
patente. Desde logo, o itinerário do Lewis Carroll é de profunda
solidão. É um homem que tem de viver com as suas pulsões horríveis e que
tem de as administrar de uma forma ou de outra. Quanto a mim, ele
administrou-as suprimindo-as. Não cedendo a elas, mas deixando sinais,
aqui e além, de que o que se tratava era disso. E ela foi uma menina que
foi triste no resto da vida. E eu tive o cuidado de dizer isso: por
todos os motivos. E sobretudo por este: é que ficou conhecida para todo o
sempre como “A Alice do livro”. Nunca teve propriamente uma
individualidade. Casou com um tipo endinheirado, que era um desportista,
e que não tinha interesses idênticos aos dela. E ela teve de arrastar
essa solidão, porque era uma mulher inteligente, capaz, sensível, e que,
no fundo, nunca se desprendeu daquela ligação com o Lewis Carroll até
ao fim da vida.
A respeito de Lewis Carroll, falou das pulsões dessa conturbada vida interior dele. Isso ainda é um pouco escamoteado, não é? Não,
isso tem sido abordado, e às vezes tem-no sido desastrosamente. Aquilo
que é mais desastroso é dizer que a relação do Lewis Carroll com a Alice
era uma relação pedófila. Não era. Ele era um pedófilo, mas esta
relação não era de pedofilia. Ele era um pedófilo que eu tenho a certeza
quase absoluta que nunca praticou um acto de pedofilia. E não o fez
porque tinha elevados valores morais, por um lado, mas, sobretudo,
porque era um clérigo… Eu acho que as épocas, no fundo, acabam por ser
todas iguais. Se ele quisesse prevaricar, tê-lo-ia feito, como fizeram
muitos ao longo dos tempos. Era um pedófilo que estava ligado a uma
Igreja, a anglicana, mas que se susteve e que viveu esse drama de uma
forma pungente. E é preciso também pensar nisso. Esse homem fez um
percurso infinito de solidão. Qual é a alternativa a esse percurso de
solidão? Só há uma, é a terapia. É fazer uma terapia para que desapareça
a solidão, desaparecendo a pulsão. Mas como é que isso se consegue,
numa época em que nem sequer havia entendimento desse tipo de problemas?
Provavelmente, ele sublimou através da literatura… Justamente.
Sublimou através da literatura. Da literatura e da fotografia,
deixando, de vez em quando, sobretudo nos diários, indicações de qual
era o problema. Porque, além das meninas que ele fotografou nuas –
fotografou várias meninas nuas, todas pré-púberes –, também fotografou
rapazinhos. E há uma entrada no diário que diz assim: “Eu também
fotografo rapazinhos, mas gosto muito mais de fotografar meninas, porque
os rapazes têm sempre qualquer coisa a mais." Isto é uma confissão.
Porque se o ingrediente não fosse erótico, tanto lhe fazia fotografar
meninas como meninos. Mas havia ali uma erotização que o fazia sentir-se
atraído mais por um sexo do que pelo outro. Portanto, há aí um elemento
claramente sexual. Que ele suprimiu, que ele anulou.
Qual dos livros desta sua trilogia envolveu mais pesquisa? De que tipo de pesquisa estamos a falar? Acho que foi o Retrato de Rapaz.
Aí tive de ler muito mais, porque há muita coisa sobre Leonardo. Há
muitas biografias sobre todos eles, sobre a menina, sobre o Lewis
Carroll, mas não há nenhuma biografia sobre o Salai. Eu não conhecia.
Tive de lá ir. Estive em Vinci, na terra de Leonardo, durante uns
tempos. Estive na Biblioteca Ambrosiana, em Milão, por causa dos códices
do Leonardo, que estavam disponíveis na altura, e eu pude consultar.
Foi uma coisa fabulosa, e aprendi muito, entretanto, sobre o Leonardo.
Mais entre páginas do que nas páginas. Foi o que exigiu uma pesquisa
mais aturada. Como é uma figura muito tratada, eu tinha de encontrar uma
área de inventiva que não tivesse sido tocada. E isso não é muito
fácil.
Em O Fotógrafo e a Rapariga, existirá, de parte a parte, de Carroll e de Alice, mais malícia, ou mais inocência? Ou ambas? Ou nenhuma? Eu
acho que mais inocência dos dois lados. Não vejo que haja malícia do
lado dele. Acredito que haja na Alice, não aquela malícia ligada à
sexualidade, em que estamos habituados a pensar, mas outro tipo de
malícia. O que é que ela queria? Ela queria seduzi-lo para que ele lhe
contasse histórias. Queria atenção, que ele lhe escrevesse histórias.
Que a transformasse em heroína, que lhe comprasse bolos… E há uma
malícia das crianças para isso, não vale a pena estarmos a escamotear as
coisas… Não são anjos. Há crianças más e boas, como há adultos bons e
maus. Só que ninguém o diz. E essa estandardização da criança e do
adulto é que é um risco para a criança, e é capaz de ser também um risco
para o adulto. É isso que torna determinadas relações entre adultos e
crianças algo perigoso.
“Tenho interesse por histórias sobre monstros”. É como o
documentarista americano Andrew Jarecki justificou para a “Folha” seu
interesse em realizar a série documental da HBO “The Jinx: A Vida e As
Mortes de Robert Durst”, exibido por seis domingos consecutivos até o
último dia 16 nos EUA e ainda sem previsão de estreia no Brasil.
Para começar, “jinx” significa “mau-agouro”. Não seria
necessariamente a primeira caracterização a vir à mente ao falar de
Durst, um milionário americano, herdeiro de uma das mais famílias mais
ricas de Nova York, suspeito de de três assassinatos –sua primeira
mulher, uma amiga e um vizinho, encontrado esquartejado, que o
protagonista de Jarecki afirmou ter matado em legítima defesa.
A nova versão de Durst para os três crimes foi reservada
para o “grand finale” de “The Jinx”, que o leitor pode assistir no
YouTube. “Matei todos eles, claro”, o ouvimos dizer. Detalhe: não o fez
durante uma entrevista formal para a câmera de Jarecki. A frase foi
captada num desabafo solitário no banheiro, em abril de 2012, quando
Durst esquecera estar portando um microfone ainda ligado. Falar alto
sozinho era apenas uma das marcas registradas de seu comportamento para
lá de idiossincrático.
Momentos antes, pressionado por Jarecki com uma descoberta
que o incriminaria, negara mais uma vez todas as acusações. Na véspera
da estreia deste episódio final, Durst foi parar atrás das grades.
Deixemos de lado a questão criminal. Parece secundária,
por sua vez, a eventual discussão quanto à fronteira entre jornalismo
investigativo e entretenimento que levantaria “The Jinx”. A série de
Jarecki, do qual assisti apenas trechos disponibilizados na internet, me
parece representar sobretudo um prato cheio para um debate ético.
A obsessão do cineasta por Durst é antiga. Em 2010,
Jarecki realizara uma versão ficcional de sua história em “Entre
Segredos e Mentiras”, estrelado por Ryan Gosling e Kirsten Dunst. Foi
após assisti-lo que Durst procurou o diretor para oferecer-lhe sua
versão. Quem procura, acha.
Ainda assim, cabe a pergunta: quais os limites na relação
entre um documentarista e seu personagem? Não existe um pacto de
confiança mútua no respeito a regras mínimas, como por exemplo a
utilização na obra tão somente de registros consensual e voluntariamente
feitos?
Para Andrew Jarecki, parece que não. Contra os “monstros”,
vale tudo. “The Jinx” nisto segue de perto o documentário que o
celebrizou, “Na Captura dos Friedmans” (2003, disponível em dvd),
premiado no Sundance e indicado ao Oscar.
Os Friedmans são uma família de classe média de Long
Island dilacerada, a partir de 1987, pela acusação de pedofilia contra
Arnold, o pai, e Jesse, um dos filhos. Algumas das imagens do confuso e
traumático processo originam-se da câmera de outro dos filhos, David.
Registros eminentemente privados pois familiares tornam-se assim
públicos. Para utilizá-los, certamente pesou o fato de Jarecki ter dito a
eles que acreditava na inocência dos dois, segundo uma das repórteres
que investigou o caso, Debbie Nathan, entrevistada no filme.
“Na Captura dos Friedmans” não externa igual certeza. A
ambiguidade se expressa já no título. Sim, há revelações que colocam em
xeque tanto os métodos policiais quanto o depoimento de alguns dentre as
possíveis vítimas.
Mas, como afirmou em resenha da época Kenneth Turan do Los
Angeles Times, “em algum ponto do processo, Jarecki decidiu estruturar o
projeto a partir de sua recusa como cineasta a dizer se ele acreditava
que os Friedmans eram culpados ou não. E é com esta pose de neutralidade
que começam os problemas do filme”.
Assim como aconteceu comigo, um amigo que acompanhou nos
EUA a celeuma provocada pelos desdobramentos finais de “The Jinx”
lembrou do contraste entre os posicionamentos éticos frente a seus
protagonistas de Andrew Jarecki e do cineasta polonês Krzysztof
Kiewslowski (1941-1996). Antes de sua consagração mundial em 1989 com a
telessérie ficcional “Decálogo”, Kieslowski ingressou no cinema
realizando belos e originais documentários curtos, aos quais o É Tudo
Verdade dedicou uma pioneira retrospectiva no Brasil em 2007.
Após uma década e meia e duas dezenas de obras
não-ficcionais, Kieslowski entrou em crise frente ao gênero. Pouco antes
de sua morte tão precoce, ele explicou numa entrevista a Stanislaw
Zawislinski: “Nós, os documentaristas, acreditávamos que tinhamos o
direito de interferir na vida de outras pessoas. Hoje sei que não temos
este direito. Há um limite, além do qual pode-se alterar a vida da
pessoa filmada, se um nível suficiente de discrição não é mantido. Em
algum momento eu tive medo das possíveis consequências de um
desimportante –do ponto de vista de alguns- documentário”. Posso
imaginar quão estranho este questionamento deve parecer a Andrew
Jarecki.
--------------
* Documentarista.
Fonte: Valor Econômico online, 27/03/2015
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Nas últimas duas colunas, falei de Jerusalém e da Turquia. Agora,
estava decidida a mudar o foco, quando deparei com um pequeno livro de
Slavoj Zizek recém-publicado em Portugal, "O Islão é Charlie?", e decidi
completar a trilogia temática.
Para um dos mais polêmicos pensadores da
atualidade, é preciso ganhar coragem para refletir sobre os
acontecimentos no calor da hora. Logo depois do massacre ocorrido nas
instalações do jornal "Charlie Hebdo", em Paris, Zizek publicou artigos
em diversos jornais convocando todos à reflexão. Esperar as coisas
acalmarem não nos leva mais para perto da verdade, dizia ele. Ao
contrário, normaliza a situação. E o que ele menos quer, como filósofo, é
uma situação normalizada. Zizek, intelectual controverso, crítico
ferrenho do neoliberalismo, busca nessas suas "considerações blasfemas
sobre o Islã e a modernidade", as perguntas certas para um momento de
comoção e solidariedade mundiais.
É claro que, em primeiro lugar, o
ataque deve ser condenado - e sem nenhuma ressalva obscura, do tipo: "A
verdade é que Charlie Hebdo provocou e humilhou os muçulmanos". Mas logo
em seguida devemos pensar de forma mais ampla, entendê-lo dentro do
contexto do mundo de hoje e também, como propõe Zizek, de forma
histórica e interpretativa. "Charlie Hebdo" não foi um mero ato de
horror passageiro, "seguiu uma agenda religiosa e política bem
definida". Não podemos deixar de ser "implacáveis na análise desse
padrão", mas tampouco podemos sucumbir à islamofobia cega. Por isso, a
reflexão é tão importante, para entender como Ocidente e Oriente estão
mergulhados no mesmo contexto moderno. "O conflito entre a
permissividade liberal e o fundamentalismo é, em última instância, um
falso conflito", afirma.
Para falar do fundamentalismo religioso de hoje
é preciso falar também, de forma crítica, de democracia liberal. Dizer
que os jihadistas do Isis são medievais é ignorar o contexto em que
surgiram. Se, por um lado, os fundamentalistas muçulmanos costumam
considerar que o Ocidente começou a ir para o mau caminho com a
secularização da sociedade, representada pela Revolução Francesa, por
outro lado, a ironia disso tudo é que "devemos olhar para a França
revolucionária se quisermos compreender a origem da ideologia e da
violência do Estado Islâmico".
Segundo o pensador Abul Ala Maududi,
criador da expressão Estado Islâmico, a Revolução Francesa ofereceu a
promessa de um Estado fundado num conjunto de princípios, por oposição a
um Estado assente numa nação ou num povo. No entanto, esse potencial
não vingou na França e teve que esperar pelo surgimento de um Estado
Islâmico para se concretizar. O cidadão universal, separado da
comunidade, da nação ou da história, seria, segundo Maududi, o eixo da
cidadania do Islã.
Trata-se, portanto, de um fenômeno moderno na sua
concepção e contemporâneo na sua forma. A globalização está por toda
parte, e é por isso que, em vez de pensar o Isis como um caso de
resistência extrema à modernização, "devemos antes considerá-lo um caso
de modernização pervertida". O Isis possui uma propaganda muito bem
organizada em termos de internet, embora suas práticas contemporâneas
sejam utilizadas em prol de uma ideologia ultraconservadora no que diz
respeito a educação, sexualidade, gênero. Por um lado, o Isis condena a
permissividade do Ocidente, por outro, transmite decapitações, atos de
escravatura sexual, violações em grupo, tortura, tudo admitido e
justificado segundo seus princípios.
Transita por vários tempos,
portanto. É ultraconservador na moral, moderno na concepção e
contemporâneo na forma. Por isso, depois de analisar sua atualidade,
Zizek se propõe a um breve mergulho nos arquivos do Islã, tentando
entender de uma perspectiva interpretativa, com seu olhar de
psicanalista lacaniano, as origens da terceira religião do Livro.
O
judaísmo, a primeira delas, é a religião da genealogia, da sucessão de
gerações. O cristianismo também segue uma genealogia paterna (quando o
filho morre na cruz, isso significa que o pai também morre). Em
contraste com essas duas, o Islã exclui Deus do domínio da lógica
paterna: Alá não é um pai, nem sequer simbólico. Deus é único, não
nasceu nem gera criaturas. É por isso que o fato de Maomé ser órfão
ganha tanta importância. Para o Islã, Deus atua nos momentos de
suspensão, de falha da função paterna, confirmando o "deserto
genealógico entre o Homem e Deus". Isso se explica pela sua escolha, a
da linhagem da escrava Agar, abandonada por Abraão, pai biológico de
Ismael, mantendo a distância entre pai e Deus, "mantendo Deus no domínio
do Impossível".
Voltemos, então, ao Gênesis. Sara, mulher de Abraão,
não conseguia lhe dar filhos. Por isso, entrega sua escrava Agar ao
marido, para que ele lhe faça um filho que será criado por ela. Quando
soube que estava grávida, Agar desprezou Sara, que, por sua vez, a
humilhou. Agar fugiu para o deserto, mas acabou seguindo a voz do anjo
do Senhor e voltou para Sara. Deu à luz o filho que Abraão chamou de
Ismael. No entanto, por milagre, depois de uma visita de Deus, Sara
acabou engravidando de Abraão. Seu filho ganhou o nome de Isaac.
Ciumenta, exigiu que Abraão expulsasse Agar e seu filho, que, segundo
ela, nunca seria herdeiro ao lado de Isaac.
Embora contrariado, Abraão
os expulsou, depois de ouvir de Deus que não se preocupasse: de Isaac
sairia a estirpe que teria seu nome, mas o filho da escrava também seria
pai de um grande povo. Daí a origem dos hebreus e dos árabes, irmãos no
início, primos até hoje.
Segundo Zizek, "Isaac versus Ismael equivale
ao pai simbólico (Em Nome do Pai) versus o pai biológico (racial), a
origem através do nome e do espírito versus a origem através da
transmissão substancial da vida, filho da mulher livre versus filho da
escrava". Talvez seja a orfandade que explique a falta de
institucionalização inerente do Islã. Trata-se de uma religião que não
se institucionaliza, como o cristianismo e sua igreja. Em realidade, a
Igreja Islâmica é o próprio Estado Islâmico. É o chefe de Estado quem
nomeia e mais alta autoridade religiosa, que manda construir as grandes
mesquitas, que supervisiona a educação religiosa, que exerce a censura e
controla a moralidade da cultura.
É interessante observar que a
pré-história do Islã, com Agar, a mãe de todos os árabes, não é
mencionada no "Alcorão". Mas é a escolha da vidente independente de
Deus, no lugar da dona de casa Sara, que nos dá a pista da insuficiência
de um monoteísmo extremamente masculino, "a irmandade da qual as
mulheres são excluídas e segundo a qual têm de ficar tapadas".
No
"Alcorão", temos a justificativa do corpo tapado da mulher. O próprio
Maomé duvidava da natureza divina de suas visões e, porque não queria
passar a vida como o louco de Meca, decidiu se atirar de um penhasco.
Foi nesse momento que a voz do anjo Gabriel ressurgiu. Em desespero,
Maomé voltou para casa e pediu ajuda para Kadidja, a sua primeira
mulher, que teve uma ideia para confirmar se a voz era mesmo do anjo.
Quando Maomé voltou a vê-lo, Kadidja lhe disse para se sentar na sua
coxa esquerda e lhe perguntou: "Consegues vê-lo?" "Sim." "Então vira-te e
senta-te na minha coxa direita". Maomé continua a ver Gabriel. Então
Kadidja ordenou que ele se sentasse ao seu colo, depois revelou seu
corpo e tirou o véu. Então, Maomé deixou de ter a visão, e Kadidja
atestou: "Alegra-te e abre o teu coração, é um anjo e não um Satanás".
Por meio da sua exibição provocadora, Kadidja demonstra a verdade.
Então, questiona Zizek, por que "a presença da mulher no Islã é tão
traumática, um escândalo ontológico de tal ordem que ela tem que estar
coberta?" A mulher é uma ameaça por representar a indecidibilidade da
verdade. Ao cobri-la com véu, cria-se a ilusão de que a verdade feminina
está por baixo dele. Nisso residiria o escândalo oculto do Islã, o fato
de que só a mulher pode garantir a verdade e, por esse motivo, tem que
usar o véu.
Quando a mulher não corresponde ao comportamento exigido,
seu ato pode ser condenado com a morte. Portanto, uma escolha é sempre,
como afirma Zizek, uma metaescolha. A atitude liberal diz que as
mulheres podem usar o véu se for por livre e espontânea vontade e não
como imposição dos maridos. Mas se elas o usam por escolha pessoal o
significado do uso do véu muda por completo: "deixa de ser um sinal da
sua pertença à comunidade muçulmana e passa a ser uma expressão da sua
individualidade idiossincrática".
Isso significa que a liberdade de
escolha, no sentido ocidental de tolerância multicultural, só pode advir
"como resultado do processo extremamente violento de arrancar alguém do
seu mundo/vida particular, de cortar as raízes a alguém".
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* Tatiana Salem
Levy, doutora em letras e escritora,. E-mail: tatianalevy@gmail.com