sexta-feira, 27 de março de 2015

“The Jinx“, Kieslowski e a Ética


“Tenho interesse por histórias sobre monstros”. É como o documentarista americano Andrew Jarecki justificou para a “Folha” seu interesse em realizar a série documental da HBO “The Jinx: A Vida e As Mortes de Robert Durst”, exibido por seis domingos consecutivos até o último dia 16 nos EUA e ainda sem previsão de estreia no Brasil. 

Para começar,  “jinx” significa “mau-agouro”. Não seria necessariamente a primeira caracterização a vir à mente ao falar de Durst, um milionário americano, herdeiro de uma das mais famílias mais ricas de Nova York, suspeito de de três assassinatos –sua primeira mulher, uma amiga e um vizinho, encontrado esquartejado, que o protagonista de Jarecki afirmou ter matado em legítima defesa.

A nova versão de Durst para os três crimes foi reservada para o “grand finale” de “The Jinx”, que o leitor pode assistir no YouTube. “Matei todos eles, claro”, o ouvimos dizer. Detalhe: não o fez durante uma entrevista formal para a câmera de Jarecki. A frase foi captada num desabafo solitário no banheiro, em abril de 2012, quando Durst esquecera estar portando um microfone ainda ligado. Falar alto sozinho era apenas uma das marcas registradas de seu comportamento para lá de idiossincrático.

Momentos antes, pressionado por Jarecki com uma descoberta que o incriminaria, negara mais uma vez todas as acusações. Na véspera da estreia deste episódio final, Durst foi parar atrás das grades.

Deixemos de lado a questão criminal. Parece secundária, por sua vez, a eventual discussão quanto à fronteira entre jornalismo investigativo e entretenimento que levantaria “The Jinx”. A série de Jarecki, do qual assisti apenas trechos disponibilizados na internet, me parece representar sobretudo um prato cheio para um debate ético.

A obsessão do cineasta por Durst é antiga. Em 2010, Jarecki realizara uma versão ficcional de sua história em “Entre Segredos e Mentiras”, estrelado por Ryan Gosling e Kirsten Dunst. Foi após assisti-lo que Durst procurou o diretor para oferecer-lhe sua versão. Quem procura, acha.

Ainda assim, cabe a pergunta: quais os limites na relação entre um documentarista e seu personagem? Não existe um pacto de confiança mútua no respeito a regras mínimas, como por exemplo a utilização na obra tão somente de registros consensual e voluntariamente feitos?

Para Andrew Jarecki, parece que não. Contra os “monstros”, vale tudo. “The Jinx” nisto segue de perto o documentário que o celebrizou, “Na Captura dos Friedmans” (2003, disponível em dvd), premiado no Sundance e indicado ao Oscar.

Os Friedmans são uma família de classe média de Long Island dilacerada, a partir de 1987,  pela acusação de pedofilia contra Arnold, o pai, e Jesse, um dos filhos. Algumas das imagens do confuso e traumático processo originam-se da câmera de outro dos filhos, David. Registros eminentemente privados pois familiares tornam-se assim públicos. Para utilizá-los, certamente pesou o fato de Jarecki ter dito a eles que acreditava na inocência dos dois, segundo uma das repórteres que investigou o caso, Debbie Nathan, entrevistada no filme.

“Na Captura dos Friedmans” não externa igual certeza. A ambiguidade se expressa já no título. Sim, há revelações que colocam em xeque tanto os métodos policiais quanto o depoimento de alguns dentre as possíveis vítimas. 

Mas, como afirmou em resenha da época Kenneth Turan do Los Angeles Times, “em algum ponto do processo, Jarecki decidiu estruturar o projeto a partir de sua recusa como cineasta a dizer se ele acreditava que os Friedmans eram culpados ou não. E é com esta pose de neutralidade que começam os problemas do filme”.

Assim como aconteceu comigo, um amigo que acompanhou nos EUA a celeuma provocada pelos desdobramentos finais de “The Jinx” lembrou do contraste entre os posicionamentos éticos frente a seus protagonistas de Andrew Jarecki e do cineasta polonês Krzysztof Kiewslowski (1941-1996). Antes de sua consagração mundial em 1989 com a telessérie ficcional “Decálogo”, Kieslowski ingressou no cinema realizando belos e originais documentários curtos, aos quais o É Tudo Verdade dedicou uma pioneira retrospectiva no Brasil em 2007.

Após uma década e meia e duas dezenas de obras não-ficcionais, Kieslowski entrou em crise frente ao gênero. Pouco antes de sua morte tão precoce, ele explicou numa entrevista a Stanislaw Zawislinski: “Nós, os documentaristas, acreditávamos que tinhamos o direito de interferir na vida de outras pessoas. Hoje sei que não temos este direito. Há um limite, além do qual pode-se alterar a vida da pessoa filmada, se um nível suficiente de discrição não é mantido. Em algum momento eu tive medo das possíveis consequências de um desimportante –do ponto de vista de alguns- documentário”. Posso imaginar quão estranho este questionamento deve parecer a Andrew Jarecki.
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 * Documentarista.
Fonte: Valor Econômico online, 27/03/2015
Imagem da Internet
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