“Tenho interesse por histórias sobre monstros”. É como o
documentarista americano Andrew Jarecki justificou para a “Folha” seu
interesse em realizar a série documental da HBO “The Jinx: A Vida e As
Mortes de Robert Durst”, exibido por seis domingos consecutivos até o
último dia 16 nos EUA e ainda sem previsão de estreia no Brasil.
Para começar, “jinx” significa “mau-agouro”. Não seria
necessariamente a primeira caracterização a vir à mente ao falar de
Durst, um milionário americano, herdeiro de uma das mais famílias mais
ricas de Nova York, suspeito de de três assassinatos –sua primeira
mulher, uma amiga e um vizinho, encontrado esquartejado, que o
protagonista de Jarecki afirmou ter matado em legítima defesa.
A nova versão de Durst para os três crimes foi reservada
para o “grand finale” de “The Jinx”, que o leitor pode assistir no
YouTube. “Matei todos eles, claro”, o ouvimos dizer. Detalhe: não o fez
durante uma entrevista formal para a câmera de Jarecki. A frase foi
captada num desabafo solitário no banheiro, em abril de 2012, quando
Durst esquecera estar portando um microfone ainda ligado. Falar alto
sozinho era apenas uma das marcas registradas de seu comportamento para
lá de idiossincrático.
Momentos antes, pressionado por Jarecki com uma descoberta
que o incriminaria, negara mais uma vez todas as acusações. Na véspera
da estreia deste episódio final, Durst foi parar atrás das grades.
Deixemos de lado a questão criminal. Parece secundária,
por sua vez, a eventual discussão quanto à fronteira entre jornalismo
investigativo e entretenimento que levantaria “The Jinx”. A série de
Jarecki, do qual assisti apenas trechos disponibilizados na internet, me
parece representar sobretudo um prato cheio para um debate ético.
A obsessão do cineasta por Durst é antiga. Em 2010,
Jarecki realizara uma versão ficcional de sua história em “Entre
Segredos e Mentiras”, estrelado por Ryan Gosling e Kirsten Dunst. Foi
após assisti-lo que Durst procurou o diretor para oferecer-lhe sua
versão. Quem procura, acha.
Ainda assim, cabe a pergunta: quais os limites na relação
entre um documentarista e seu personagem? Não existe um pacto de
confiança mútua no respeito a regras mínimas, como por exemplo a
utilização na obra tão somente de registros consensual e voluntariamente
feitos?
Para Andrew Jarecki, parece que não. Contra os “monstros”,
vale tudo. “The Jinx” nisto segue de perto o documentário que o
celebrizou, “Na Captura dos Friedmans” (2003, disponível em dvd),
premiado no Sundance e indicado ao Oscar.
Os Friedmans são uma família de classe média de Long
Island dilacerada, a partir de 1987, pela acusação de pedofilia contra
Arnold, o pai, e Jesse, um dos filhos. Algumas das imagens do confuso e
traumático processo originam-se da câmera de outro dos filhos, David.
Registros eminentemente privados pois familiares tornam-se assim
públicos. Para utilizá-los, certamente pesou o fato de Jarecki ter dito a
eles que acreditava na inocência dos dois, segundo uma das repórteres
que investigou o caso, Debbie Nathan, entrevistada no filme.
“Na Captura dos Friedmans” não externa igual certeza. A
ambiguidade se expressa já no título. Sim, há revelações que colocam em
xeque tanto os métodos policiais quanto o depoimento de alguns dentre as
possíveis vítimas.
Mas, como afirmou em resenha da época Kenneth Turan do Los
Angeles Times, “em algum ponto do processo, Jarecki decidiu estruturar o
projeto a partir de sua recusa como cineasta a dizer se ele acreditava
que os Friedmans eram culpados ou não. E é com esta pose de neutralidade
que começam os problemas do filme”.
Assim como aconteceu comigo, um amigo que acompanhou nos
EUA a celeuma provocada pelos desdobramentos finais de “The Jinx”
lembrou do contraste entre os posicionamentos éticos frente a seus
protagonistas de Andrew Jarecki e do cineasta polonês Krzysztof
Kiewslowski (1941-1996). Antes de sua consagração mundial em 1989 com a
telessérie ficcional “Decálogo”, Kieslowski ingressou no cinema
realizando belos e originais documentários curtos, aos quais o É Tudo
Verdade dedicou uma pioneira retrospectiva no Brasil em 2007.
Após uma década e meia e duas dezenas de obras
não-ficcionais, Kieslowski entrou em crise frente ao gênero. Pouco antes
de sua morte tão precoce, ele explicou numa entrevista a Stanislaw
Zawislinski: “Nós, os documentaristas, acreditávamos que tinhamos o
direito de interferir na vida de outras pessoas. Hoje sei que não temos
este direito. Há um limite, além do qual pode-se alterar a vida da
pessoa filmada, se um nível suficiente de discrição não é mantido. Em
algum momento eu tive medo das possíveis consequências de um
desimportante –do ponto de vista de alguns- documentário”. Posso
imaginar quão estranho este questionamento deve parecer a Andrew
Jarecki.
--------------
* Documentarista.
Fonte: Valor Econômico online, 27/03/2015
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