Nunca subestime o poder de pessoas estúpidas em grandes grupos
Um aluno um dia me perguntou o que eu achava do homem: naturalmente
bom mas pervertido pela sociedade, na linha do “bom selvagem” de
Rousseau, ou esta desgraça mesmo que vemos por aí, em estado natural? Na
realidade, não acho nem uma coisa nem outra. Acho que temos todos
imensos potenciais para o bem e para o mal, para o divino e a barbárie.
Cabe a nós, que trabalhamos com o estudo da sociedade e em particular
das instituições, pensar o que faz a balança pender mais para um lado ou
para outro. Pois deixando de lado alguns traumas e deformações
individuais, domínio dos psiquiatras, aqui nos interessa a misteriosa
bestialidade coletiva de grandes grupos sociais.
"Acho que temos todos
imensos potenciais
para o bem
e para o mal,
para o divino
e a barbárie."
Muitos dizem que a solução está na educação e na cultura. Tenho
minhas dúvidas, pois sou de família polonesa, e vi refletido nas
angústias dos meus pais o que tinham vivido frente ao nazismo. Ninguém
irá pensar que os alemães eram um povo de baixo nível educacional ou
cultural. E no entanto, com que entusiasmo vestiram as botas e as
camisas negras ou marrons, com que elevado sentimento de dever cumprido
matavam pessoas por serem diferentes, por um critério real ou
imaginário. Cerca de 50% dos médicos alemães aderiram ao partido
nazista. Isto é que é realmente preocupante. Estupidez é uma doença que
pega.
Poder dar vazão ao que há de mais podre dentro de nós, de mais escuro
em termos de ódio contido, de mais baixo em termos humanos, em nome de
elevadas aspirações éticas, parece ser muito satisfatório. Os nazistas
agiam em nome da pureza da raça. E erguiam bem alto a bandeira do “Gott mit uns”,
Deus está conosco. Tornar-se de certa maneira o braço executivo da
cólera divina parece ser profundamente agradável. Há gente disposta a
morrer por esta satisfação.
Quem não leu O Martelo da Feiticeira, manual de
interrogatório dos inquisidores católicos perdeu uma importante fonte de
conhecimento sobre os nossos lados escuros. O manual recomenda, por
exemplo, que os religiosos encarregados de torturar as possíveis
feiticeiras as torturassem nuas, pois se tornam mais frágeis, e de
costas para os torturadores, pois a era tal a perversidade destas
mulheres que de frente para os torturadores poderiam comovê-los com suas
súplicas e expressões de desespero. Eram religiosos, e o faziam em nome
de Cristo.
Somos hoje mais civilizados? Sinto-me profundamente abalado, chocado,
pelo bárbaro assassinato dos jornalistas do Charlie Hebdo, em Paris,
por profissionais da morte que matam em nome de Deus, e que claramente
mostraram nos seus gritos que se sentiam como justiceiros que haviam
cumprido o seu dever. São monstros? Se fossem, seria muito mais simples
compreender e prevenir. Mas são seres humanos em torno dos quais se
construiu uma muralha de valores que os protege de qualquer crítica. Se
sentem pertencentes a uma comunidade que os apoia e recompensa, ou seja,
praticam a barbárie em nome do bem. Podemos matar os terroristas, mas
transformar a dinâmica que os forma é bem mais complexo.
Podemos tratar um psicopata, e proteger a sociedade dos riscos individuais. E uma sociedade doente? Quem não viu Os fantasmas de Abu-Ghraib, veja, é profundamente instrutivo. O documentário é montado a partir de selfies e
de filmagens por celular de práticas de tortura no Iraque por jovens
americanos, contra supostos inimigos. Tortura praticada no Iraque em
nome da defesa dos direitos humanos, por um exército invasor, e por
funcionários de empresas privadas de segurança terceirizadas para esta
tarefa. Estes jovens são monstros? As imagens das torturas e dos
risonhos rapazes circulam em todo o mundo islâmico. Com que impacto e
efeito multiplicador?
Hoje temos tortura sistemática aplicada pelo sistema repressivo
(Mossad, Shin Bet e outros) em Israel. Em Guantánamo quando os
prisioneiros tentam morrer para escapar ao sofrimento se lhes introduz à
força alimento pelo nariz ou pelo anus, tudo em nome do bem, como em
nome de Deus os fanáticos do ISIS decapitam prisioneiros ou os do Boko
Haram raptam crianças.
A maldade não está essencialmente nas pessoas, mas nos sistemas de
organização social que a transformam em ódio coletivo e organizam a sua
expressão em nome da justiça, de Deus, da pátria, da pureza racial ou o
que seja.
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* Ladislau Dowbor, formado em economia política pela Universidade de
Lausanne, Suiça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de
Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é
professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e
administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas
agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias
organizações do sistema “S” (Sebrae e outros). Atua como Conselheiro no Instituto Polis, CENPEC, IDEC, Instituto Paulo Freire, Conselho da Cidade de São Paulo e outras instituições.
Créditos da foto: Stephen Melkisethian / Flickr
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