Marcos Nobre*
Cid Gomes no plenário da Câmara pouco antes de ser demitido do Ministério da Educação
Se o sistema político tentar se blindar contra as polarizações existentes nas ruas, situação pode atingir cores ainda mais dramáticas, diz filósofo
O sistema político entrou em pane. A franja parlamentar
que se costuma chamar de oposição, liderada pelo PSDB, foi inteiramente
atropelada pela oposição que foi às ruas. O PT não lidera o governo que
elegeu. O PMDB se divide hoje em três ou quatro ajuntamentos que não se
entendem e operam de maneira independente e descoordenada. O PP
simplesmente implodiu e os escombros serão recolhidos por algum cacique
regional e pelo PSD, que tem dois ministros e uma bancada na Câmara que
só costuma entregar metade de seus votos ao governo. Isso para falar
apenas dos maiores partidos do País.
Qualquer governo nunca é rocha sólida, é sempre cheio de furos
e fraturas por onde se infiltram viscosidades várias. Acontece que está
difícil de ver a rocha. Os centros de comando se multiplicaram e estão
operando de maneira bastante independente. Só a política econômica
parece estar sob relativo controle, ainda que sob permanente ataque de
todos os lados. De qualquer maneira, é um controle de tipo
motoniveladora e tesoura e não efetiva coordenação.
Uma situação como essa não pode e não deve ser caracterizada
apenas como uma crise. É uma crise muito grave, que pode levar o País a
uma situação de paralisia ou de regressão por um longo período. É a
primeira grande crise em situação de estabilidade da história recente do
País.
A estabilidade que se teve nos 20 anos que vão desde o
impeachment de Collor até junho de 2013 foi pontuada por momentos de
crise. Mas, em termos de gravidade, nenhuma crise chega perto da que se
vive agora, com a conjunção de crise de governabilidade, crise
econômica, crise hídrica e de energia, crise do sistema partidário.
A crise do sistema partidário é sintoma do fosso entre sistema
político e sociedade. Essa crise de representação esteve no centro das
revoltas de junho, onde forças políticas opostas ocuparam a mesma rua ao
mesmo tempo. A polarização da eleição presidencial de 2014 refletiu,
ainda que de maneira limitada, um princípio de organização dessas
polarizações sociais reais, que estavam até ali bloqueadas pelo sistema
político. Mas essa polarização não se consubstanciou em bancadas de
situação e de oposição correspondentes, não encontrou expressão adequada
no interior do sistema político.
O pouco mais pouco menos da metade do eleitorado que votou em
Dilma Rousseff não se sente representado pela megamaioria de apoio ao
governo, que embute a verdadeira, real e efetiva oposição ao próprio
governo. O mesmo vale para o pouco mais pouco menos da metade do
eleitorado que não votou em Dilma Rousseff: não se sente representado
pela franja oposicionista, que não tem nenhum outro projeto a não ser
manter o condomínio do mesmo jeito, só mudando o síndico. O único
político (de oposição, ressalte-se) que ousou tomar um microfone na
Avenida Paulista em 15 de março foi impedido de falar pelas vaias.
Um outro efeito decisivo do junho de 2013 pode ser visto na
Operação Lava Jato. Foi a conjunção do clamor das ruas com uma longa
preparação de órgãos judiciais e de investigação que conseguiu superar
os bloqueios escandalosos que o sistema político impôs a operações
anteriores de mesma magnitude. Em 2010, por exemplo, o Superior Tribunal
de Justiça bloqueou a Operação Castelo de Areia, precursora da atual
Lava Jato. Com isso, foi adiada em cinco anos a nossa “Operação Mãos
Limpas”, aquela que mudou para sempre a política da Itália nos anos
1990. Foi perdida mais uma chance de alçar o modo de operação do sistema
político a um novo e superior patamar, em um momento econômico ainda
relativamente favorável àquela altura.
Diante do risco muito concreto de enfrentarem não apenas o fim
de suas carreiras políticas, mas a prisão, grupos inteiros dentro dos
partidos se organizaram com o objetivo único e primordial da autodefesa,
fragmentando ainda mais um sistema já perto do inadministrável.
Situação que é um obstáculo quase intransponível a qualquer projeto de
reorganização do sistema político com base em acordos estritamente
partidários. Porque o aprofundamento das investigações da Lava Jato vai
ter o efeito de desorganizar ainda mais um cenário partidário já muito
desarrumado.
Do lado da sociedade, o efeito pode ser o do crescimento de
uma negação abstrata da política, de uma rejeição da política enquanto
tal. É o caldo de cultura perfeito para a formação de um despolitizado
“que se vayan todos”, nos moldes da Argentina de 2001. Esse abismo está
posto diante do País e não pode ser ignorado.
Qualquer reconstrução da governabilidade nos moldes
tradicionais do peemedebismo do sistema político - ou, para lembrar o
eufemismo que ficou consagrado, o “presidencialismo de coalizão” - vai
ser bombardeada por quatro longos anos pelas ruas e pelo oportunismo
partidário cabível. Mesmo que a desvalorização do câmbio acabe tendo
efeitos econômicos positivos no horizonte de um ou dois anos. Mas pode
ser que um governo assim consiga sobreviver.
Ocorre que uma reorganização como essa não depende apenas do
governo, mas também da oposição. Do contrário, a crise não vai sequer se
estabilizar. A reorganização nesses moldes depende de um balé
coreografado entre governo e forças que se disponham a liderar uma
frente oposicionista efetiva, que dê voz real à oposição presente na
sociedade. Para que isso aconteça, forças partidárias de oposição terão
de se perfilar no sentido das ruas, sem recuar nem mesmo diante da
bandeira do impeachment, por exemplo - que até agora não foi aceita de
maneira inequívoca por nenhuma liderança política de peso. O fato de a
maioria dos que foram às ruas no dia 15 de março não ser favorável ao
impeachment não significa que o tema saia da pauta.
Congregando o conjunto das forças de oposição presentes nas
ruas em toda a sua diversidade, uma frente como essa teria o potencial
de atrair uma bancada parlamentar representativa, capaz de expressar no
interior sistema político a real polarização existente na sociedade
entre situação e oposição, e não a encenação patética a que se assiste
há quase dez anos. De qualquer maneira, se seguida, essa linha de ação
teria de ser executada de maneira hábil e cuidadosa, dado o rechaço
generalizado da política e dos políticos que emergiu desde junho de
2013.
Não sendo esse o caminho trilhado, pelo menos duas outras
possibilidades se abrem. Na primeira delas, o sistema partidário
continua desconectado das diferentes forças sociais que irromperam desde
2013. Nesse caso, o sistema político uma vez mais dará as costas às
ruas, em toda a diversidade de aspirações presentes nos diferentes
protestos. As forças que sustentam o movimento pelo impeachment vão
recrudescer e buscar em outsiders do sistema político a expressão de sua
insatisfação de base. Essa é a alternativa Joaquim Barbosa, comparável a
uma experiência como a de Silvio Berlusconi na Itália. Depois da
“Operação Mãos Limpas” e da ausência de uma efetiva reorganização
estrutural, o sistema político italiano entrou em colapso e o rechaço
generalizado da política e dos políticos só encontrou expressão em
Berlusconi.
A segunda e mais improvável possibilidade é a formação de uma
frente ampla em torno de uma reorganização do sistema político em novos
moldes. A improbabilidade dessa via é tanto maior quanto mais profunda é
a incompreensão do significado do junho de 2013. A raiva social
liberada ali, a agressividade cotidiana entre vizinhos, colegas de
trabalho e mesmo em círculos de amigos não vai voltar para a garrafa só
porque se alcançou um novo acordo com o PMDB - qual PMDB, aliás -, ou
porque a franja oposicionista resolveu “estudar a possibilidade” de
pedido de impeachment.
Ainda não é suficientemente clara a consciência da gravidade
da crise atual. Nem ficou ainda evidente que nenhuma força partidária
irá se beneficiar do caos. Se se quiser uma imagem: ainda não ficou
claro que a situação se assemelha a uma conjunção do momento
pós-impeachment de Collor com o início do segundo mandato de FHC, em
1999.
Mas é apenas uma imagem. Porque, ao contrário desses dois
outros momentos, hoje não se pode falar sequer em acordos estritamente
partidários, dada a fragilidade em que se encontram os partidos. E a
construção de um real programa de governo teria de se dar em bases que
não sejam ditadas nem dirigidas por nenhuma força política em
particular, mas resultado de um efetivo acordo negociado. Para não falar
no fato de que o país que viveu vinte anos de relativa estabilidade, os
padrões de vida melhoraram e as expectativas de diminuição de
desigualdades, efetivação de direitos e de melhoria dos serviços
públicos fincaram raízes profundas na sociedade.
Importa ter claro que essas possibilidades hoje visíveis
evidentemente não se equivalem nem significam uma efetiva superação da
crise. Se o sistema político uma vez mais optar por se blindar contra as
polarizações existentes nas ruas o resultado será o prolongamento da
crise por outros meios, em versões até mais dramáticas, inclusive.
Porque o pior da crise ainda está por vir. A Lava Jato ainda
não fez todo o estrago que tem para fazer. A recessão econômica ainda
não mostrou seus dentes. O desemprego ainda não chegou a seu pior
momento nem a inflação atingiu seu pico destrutivo. Os racionamentos de
água e de energia ainda não se tornaram oficiais. Os protestos de rua
ainda não são cotidianos.
A longa e paquidérmica redemocratização brasileira, de 1979 a
2013, foi feita com base em um grande acordo que teve pelo menos três
momentos. A década de 1980 foi marcada pela formação de um “Centrão”
político para a superação do autoritarismo, uma garantia contra o risco
de “guinadas bruscas” do quadro político. Na década de 1990, esse
Centrão foi dirigido e direcionado para a produção de uma estabilização
econômica e política, superando a paralisia e o caos da década anterior.
Na década de 2000, sem alterar essa mesma lógica de gerenciamento do
sistema político, a estabilização alcançada foi posta a serviço de uma
melhoria geral dos padrões de vida sem aumento das desigualdades.
A crise atual mostra a obsolescência desse acordão típico da
redemocratização e a necessidade de uma democratização da democracia, de
uma efetiva democratização do sistema político. O ambiente para isso é
ruim, evidentemente. Mas é o que se tem.
Qualquer realinhamento tem de ser feito quanto antes. Não se
pode esperar que a múltipla crise que enfrentamos atinja seu momento
mais destruidor. Do contrário, o que se verá é uma situação de caos
social, econômico e político como só a década de 1980 foi capaz de
produzir.
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* MARCOS NOBRE É PROFESSOR DE FILOSOFIA DA UNICAMP E PESQUISADOR DO CEBRAPFonte: O Estadão online, acesso 28/03/2015
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