Muniz Sodré*
Há notícias cuja ressonância no foro público dos debates é maior em vias
colaterais do que nas suítes convencionais dadas pela própria mídia. É o caso
da declaração feita pelo papa Francisco sobre a palmada eventualmente aplicada
pelos pais no processo de educação de seus filhos. Houve algum estranhamento
quanto à posição do Sumo Pontífice com referência a dois aspectos: o primeiro é
que a imposição de um castigo físico parece algo regressivo quando se considera
a modernização das relações parentais, e o segundo é que o papa estaria
propriamente fora da esfera religiosa, opinando onde não lhe cabe.
Mas há um problema de fundo na fala do pontífice. Para começar, é preciso
tornar semanticamente claro que “palmada” não equivale a uma punição corporal
capaz de ferir a dignidade de uma pessoa, e sim um gesto mecânico destinado a
criar certo tipo de ordem na vida cotidiana da família. Claro, esse gesto foi
progressivamente proscrito pela pedagogia do século passado, junto com a ideia
de que qualquer punição é incompatível com o processo educativo eficaz.
Só que a opinião do papa, sem tom normativo, lança alguma dúvida sobre a
condenação do gesto ou, ao menos, sobre a neutralidade de muitos pais e
pedagogos diante desse tópico que, aparentemente pequeno, integra o rol de
questões importantes no transe da crise moral da família ou da paternidade.
O fato é que o assunto não prosperou tal e qual no noticiário, mas
reapareceu tematizado no problema da “disciplina”. Assim é que, logo depois da
divulgação de uma pesquisa da Fundação Lemann pelo programa Fantástico, da Rede Globo, o colunista de
educação Antônio Gois trouxe a público um boletim da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com um dado considerado
“alarmante” sobre o tema:
“Dentre os 33 países comparados na Pesquisa
Internacional sobre Ensino e Aprendizagem de 2013, o Brasil foi, disparado,
onde os professores mais relataram ter 10% ou mais de estudantes indisciplinados.
Dois terços de nossos docentes disseram vivenciar esse problema em sala de
aula” (O Globo, 2/3/2015).
Elogio da disciplina
Evidentemente, o problema não é exclusivo do Brasil e apresenta números
diferentes, mas constantes, em 65 nações comparadas, tais como Chile, México,
Argentina, Tunísia, Dinamarca, Croácia, Noruega e Japão. A solução, se é que
existe, não é nada simples, mas a convicção da OCDE é que se faz necessário
“criar uma cultura de responsabilidade compartilhada com impactos positivos no
envolvimento do estudante com a escola e em seu comportamento”. Para isso, é
preciso envolver alunos, pais, funcionários e professores nas decisões
escolares.
A “palmada” sugerida pelo papa é, no fundo, uma pequena metáfora para o
envolvimento mais responsável de educadores (primeiramente pais, em seguida
professores) no processo de formação de crianças e adolescentes após o que uns
poucos autores chamam de “falência dos métodos educativos libertários que
caracterizam a pedagogia desde os anos 60”. Para esses, liberdade não implica
só independência nem arbítrio, mas a busca de um equilíbrio entre controle e
confiança, intransigência e amor. Em outras palavras, seria preciso
reencontrar, pela coragem da severidade, a virtude sufocada pela moralidade
triunfante do mercado.
Claro, sempre houve pais ausentes, indiferentes, autoritários, drogados ou
então condições sociais degradadas que tornam os filhos incapazes de amar e
trabalhar. Por outro lado, nunca houve educação sem o exercício de uma forma
disciplinar, isto é, a capacidade de dizer “não”, o que pode implicar conflitos
pedagógicos, mas igualmente a possibilidade de crescer na “morte simbólica dos
pais”.
Mas agora, no vazio aberto pelo enfraquecimento da autoridade parental e das
estruturas pedagógicas, entram o consumo desenfreado, a mídia e as drogas. Às
vezes, podem ser lidos como sinônimos. O consumismo conseguiu afirmar-se como
uma relação social que produz seres autocomplacentes ou narcisistas; a mídia,
agora uma realidade virtual ao alcance de todos, como um tipo de contato sem
afeto; a droga, como uma endemia de crescimento. A indisciplina e a violência
resultantes são cúmplices da permissividade parental e pedagógica.
A “palmada” do papa Francisco pode ser lida nesse quadro como um elogio da
disciplina. Não é uma simples posição moralista, mas uma intervenção
propriamente “religiosa” contra a marcha coletiva para o afundamento no pântano
do caráter desfibrado.
----------------------
* Muniz Sodré é jornalista e escritor,
professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed841_a_palmada_do_papa_francisco
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário