Ella Lingens, numa
foto de registo da Gestapo de Viena, em outubro de 1942. Embora "ariana de
raça pura
"foi levada para Auschwitz por esconder judeus; como médica, foi
obrigada a trabalhar ao lado de Mengele,
o "Anjo da Morte", e
testemunhou algumas das atrocidades
por este praticadas. Faleceu em 2002 /
D.R.
Tinha um futuro
promissor à sua frente. Ella Lingens fora uma das alunas mais brilhantes da
Faculdade de Medicina, casara com um colega e tinha um filho de caracóis louros
que estava a aprender a balbuciar "mamã". Acabou
em Auschwitz, a trabalhar sob as ordens do "Anjo da
Morte", Josef Mengele. No dia em que passam 70 anos da libertação dos
prisioneiros, e para assinalar um acontecimento histórico, o Expresso
disponibiliza online um texto publicado
originalmente a 28 de janeiro de 1995.
Ella
Lingens era admirada nos cafés de Viena pelas suas convicções sociais-democratas,
andar emancipado e provocante, e fascinantes olhos azuis. Quando escondeu, no
andar onde morava, judeus perseguidos pelos nacionais-socialistas e os ajudou a
sair do país, não sabia que uma cadeia de infortúnios e denúncias a levaria ao
pior pesadelo da sua vida.
Como
prisioneira em Auschwitz, teve de trabalhar sob as ordens do "Anjo da
Morte", Josef Mengele, um médico tão brilhante como diabólico, que
distribuía chocolates pelas crianças judias e ciganas, antes de as submeter a
experiências e torturas atrozes ou de as conduzir pessoalmente para as câmaras
de gás, no seu descapotável verde.
Agora,
aos 87 anos, meio século depois da libertação de Auschwitz, Ella conserva ainda
a determinação e a vontade de viver que a salvaram da morte. A sua figura
frágil, encolhida num enorme cadeirão, domina suavemente o ambiente da casa
rústica onde mora, nos arredores de Viena.
Ella
Lingens foi obrigada a escolher entre a vida e a morte dos seus doentes,
"como se fosse Deus", pois não podia desperdiçar medicamentos
escassos, em casos que pareciam irreversíveis. "A quem dar os
medicamentos, a uma mãe com muitos filhos ou a uma rapariga nova?" - tinha
de perguntar a si mesma. "A quem administrar uma injecção, a um velho que,
em qualquer caso, vai morrer, ou dividi-la por dois jovens?"
Ella
Lingens era catalogada pelos burocratas do Terceiro Reich como "uma ariana
de raça pura", o que lhe permitiu esconder os seus amigos judeus sem que
desconfiassem dela. Na "Noite de Cristal", em Novembro de 1938,
quando os judeus foram espancados nas ruas, as suas casas e lojas destruídas e
os seus livros queimados, alguém tocou à porta do andar onde moravam os
Lingens. Era o engenheiro Wiesenfeld, que chegou de pijama, a tremer, para se
refugiar em casa deles, trazendo na mão uma escova de dentes.
Pela
janela chegava um ruído insuportável, de vidros a estilhaçarem-se, bramidos e
gritos das hordas nazis, e o engenheiro Wiesenfeld disse-lhes:
"Invejo-vos." "Porquê?" - perguntou Ella. "Porque
vocês não são judeus". O refugiado ficou três semanas e foram chegando
"mais e mais". Finalmente, o andar estava tão cheio, conta Ella,
"que o meu marido e eu fomos morar para o hotel".
Foram
meses de tensão trágica, e por vezes absurda. Erika, uma jovem de 19 anos, a
última judia que esconderam, fê-los passar o susto de vida deles, quando, farta
da rotina da vida clandestina, de estar fechada e de apanhar calor, resolveu
tomar banho de sol nua, no parapeito da janela do "atelier" onde
moravam os Lingens. Os alunos de um liceu que ficava em frente do edifício
pensaram que se tratava de uma louca suicida e chamaram a polícia. "Não
nos descobriram por milagre" conta Lingens. Antes que os homens de
uniforme forçassem a porta do andar, chegou uma amiga da família,
"completamente ariana", que convenceu a polícia de que fora ela que
estivera a tomar banho de sol.
Mas
Ella confiou demais na sorte e continuou a arranjar documentos falsos para que
os perseguidos pudessem partir para o exílio, acabando por ser denunciada à
Gestapo.
Médica
à força
Chegou a Auschwitz no fim do Inverno de 1942. Aí começou, pela primeira vez, a praticar medicina, no barracão das prisioneiras alemãs e austríacas doentes. Trabalhou às ordens de vários médicos, o último dos quais foi Mengele. Recorda o Dr. Rohde, um SS, que, para suportar as escolhas de vítimas para as câmaras de gás, no pavilhão dos doentes ou no cais da estação de caminho-de-ferro, "se embebedava até quase ficar inconsciente".
Não
havia camas suficientes e os doentes dormiam aos três e aos quatro nos beliches.
Havia piolhos, epidemias de febre tifóide e grassava uma doença contagiosa
causada pela desnutrição, que perfurava a pele até aos ossos. "A minha
vida lá era como se me tivesse oferecido hoje como voluntária para combater uma
epidemia no Bangladesh ou no Ruanda, um trabalho esgotante, para ajudar as
pessoas, sem saber o que acontecia ao lado", diz Lingens.
Na
pior época da epidemia de febre tifóide, Lingens tinha a seu cargo 750 doentes.
"Foi justamente Mengele, que dividia o seu tempo entre as experiências
brutais com gémeos e anões e o trabalho de organização sanitária, que travou a
epidemia." Evacuou os 1500 doentes de um barracão e mandou-os para as
câmaras de gás. Desinfectou a sala vazia, mandou mudar os lençóis e outros
doentes, desinfectados e despiolhados, foram transferidos para o barracão.
Depois desinfectaram o pavilhão vazio e assim sucessivamente. "Realmente
travou a epidemia, mas não lhe passou pela ideia chegar ao mesmo resultado sem
assassinar 1500 pessoas", comenta Lingens.
Nos
pavilhões de judeus e ciganos, as pessoas não chegavam a morrer das epidemias.
Eram assassinadas. As mulheres grávidas eram enviadas para as câmaras de gás,
assim como os doentes e os sem forças para os trabalhos forçados. Foram muitas
as mães que preferiram asfixiar os seus bebés, para os poupar à morte em mãos
alheias, porque a maioria dos recém-nascidos eram afogados pelos guardas SS.
Recordações
angustiantes
Auschwitz foi a experiência central da vida de Lingens, e os fantasmas das pessoas que conheceu na fábrica da morte acompanhá-la-ão até ao fim dos seus dias. Havia médicos pouco escrupulosos que exigiam que os doentes com malária lhes dessem a sua porção de pão, a troco de quinino. E houve mulheres que se transformaram em prostitutas no bordel de Auschwitz, porque assim tinham direito a uma melhor ração alimentar, a um duche diário e a uma habitação mais confortável.
Ainda
hoje é assombrada pelo fantasma da fome, ou pelo da jovem que não pôde ajudar,
porque recebera 25 chicotadas e fora obrigada a ficar de pé durante três dias e
três noites, com água fria até à cintura. Era o castigo para os que se atreviam
a fazer amor em Auschwitz e eram surpreendidos. Como também não consegue
esquecer o grito colectivo de 100 pessoas encerradas nas câmaras de gás e, "após
15 minutos", o silêncio absoluto. "Outra vez os gritos, depois o
silêncio, uma, duas, três vezes."
Numa
noite, Ella Lingens e as suas companheiras contaram 60 viagens de um camião
carregado de cadáveres, das câmaras de gás até aos crematórios. Depois começava
a sair fumo pelas chaminés e o cheiro inconfundível dos corpos queimados
espalhava-se por todo o campo de Auschwitz.
Enquanto
centenas de milhares de pessoas se transformavam em cinzas, Mengele continuava
as experiências como um possesso,no seu pavilhão de horrores, uma antecâmara da
morte. Sessenta pares de gémeos foram abertos pelo seu bisturi e, de todos
eles, só sobreviveram sete pares.
O
"Anjo da Morte" era para Lingens "um cínico incrível", com
uma inteligência superior à do resto dos médicos SS, que tinha a preocupação de
fazer com que os irmãos morressem à mesma hora, pela mesma causa. Assim podia
comparar os órgãos, que enviava depois, conservados, para o Instituto de
Biologia Genética de Berlim, em pacotes com a inscrição "Urgente, Material
de Guerra".
Mengele
achava que as condições do campo eram más e introduziu, inclusive, algumas
melhorias, mas "assassinava a sangue-frio, sem nenhuns problemas de
consciência". Olhava com orgulho os "dossiers" com os resultados
das suas investigações e só lamentava que, no futuro, pudessem cair"nas
mãos dos bolchevistas".
Ella
Lingens teve a sorte de não ser colocada no Pavilhão das Experiências, porque
não teria resistido. Para experimentar métodos de reanimação em pessoas
congeladas, Mengele baixava a temperatura do corpo das vítimas até aos limites
da paragem cardíaca, e depois tentava aquecê-las com cobertores ou cobrindo-as
com mulheres nuas.
Dava
só água do mar a beber aos prisioneiros, até morrerem de sede, para comprovar a
resistência do ser humano em caso de naufrágio. Os esqueletos das pessoas com
anomalias eram enviados como troféus para a colecção da Reichsuniversitât, em
Berlim. Ligava o peito das mulheres que tinham acabado de parir, proibindo-as
de amamentar os filhos, para determinar quanto tempo os recém-nascidos podiam
viver sem se alimentarem.
Os
médicos e os "outros"
Um dia, Mengele chamou Ella Lingens o seu gabinete e disse-lhe que tinha uma informação decerto surpreendente para ela. "Sabia que no seu pavilhão há relações entre lésbicas?" perguntou. "Claro que eu sabia", lembra a prisioneira. "E não faz nada para o impedir?" insistiu. "Era uma situação impossível, fechavam mulheres jovens durante anos num ambiente onde não havia nada que pudessem amar, uma criança, um animal, um flor, era tudo tão asqueroso que qualquer ser humano se degradava", lembra Lingens.
Noutra
ocasião, o carniceiro de luvas brancas e botas de cabedal perguntou-lhe as
razões por que a tinham enviado para Auschwitz. Lingens respondeu que fora
denunciada por ter ajudado a tirar judeus do país. "Como é que se pode ser
tão imbecil ao ponto de pensar que isso é possível?" Ella atreveu-se a
responder que havia casos em que tinham conseguido, com dinheiro.
"Naturalmente que vendemos judeus", respondeu Mengele. "Seríamos
estúpidos se o não fizéssemos."
"Não
tinha razões para ter medo de Mengele", diz Lingens. Para ele havia duas
categorias de pessoas, "os médicos e os outros". Mengele representava
as duas caras de Mefistófeles. No meio dos corpos raquíticos e humilhados dos
prisioneiros, era um homem bem parecido, elegante, impecável, de uma cortesia
imperturbável para com as suas vítimas. Tão depressa salvava um judeu, porque
era médico, como atirava um recém-nascido para o lume, porque chorava demais,
com a mesma indiferença. Lingens não conseguia suportar Auschwitz, e pediu para
ser transferida para o campo de concentração de Dachau, outro inferno; mas se
algum dia a libertassem, ficaria mais perto de casa, para regressar. Mengele
não queria que ela saísse de Auschwitz, mas perante os rogos da prisioneira,
aprovou o pedido com indiferença. "Não quero entravar o seu caminho para a
felicidade", disse-lhe, como se Dachau fosse um paraíso.
Em
Auschwitz, Ella Lingens perdeu a dignidade, passou fome e frio. Regressou a
Viena com o cabelo todo branco e foi um dos momentos mais duros da sua vida.
"Soube que o meu marido, julgando-me morta, tinha casado com outra, o meu
irmão tinha morrido, combatendo ao lado da Resistência, na Jugoslávia, a casa
dos meus pais fora bombardeada. O meu filho não me reconheceu e os meus
vestidos...", diz com um olhar fixo e um suspiro, "...estavam comidos
pelas traças".
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Tradução
de Maria do Carmo Cary
Texto originalmente publicado no Expresso a 28 de janeiro de 1995, por ocasião do 50º aniversário da libertação de Auschwitz
Texto originalmente publicado no Expresso a 28 de janeiro de 1995, por ocasião do 50º aniversário da libertação de Auschwitz
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