Tatiana Salem Levy*
Nas últimas duas colunas, falei de Jerusalém e da Turquia. Agora,
estava decidida a mudar o foco, quando deparei com um pequeno livro de
Slavoj Zizek recém-publicado em Portugal, "O Islão é Charlie?", e decidi
completar a trilogia temática.
Para um dos mais polêmicos pensadores da
atualidade, é preciso ganhar coragem para refletir sobre os
acontecimentos no calor da hora. Logo depois do massacre ocorrido nas
instalações do jornal "Charlie Hebdo", em Paris, Zizek publicou artigos
em diversos jornais convocando todos à reflexão. Esperar as coisas
acalmarem não nos leva mais para perto da verdade, dizia ele. Ao
contrário, normaliza a situação. E o que ele menos quer, como filósofo, é
uma situação normalizada. Zizek, intelectual controverso, crítico
ferrenho do neoliberalismo, busca nessas suas "considerações blasfemas
sobre o Islã e a modernidade", as perguntas certas para um momento de
comoção e solidariedade mundiais.
É claro que, em primeiro lugar, o
ataque deve ser condenado - e sem nenhuma ressalva obscura, do tipo: "A
verdade é que Charlie Hebdo provocou e humilhou os muçulmanos". Mas logo
em seguida devemos pensar de forma mais ampla, entendê-lo dentro do
contexto do mundo de hoje e também, como propõe Zizek, de forma
histórica e interpretativa. "Charlie Hebdo" não foi um mero ato de
horror passageiro, "seguiu uma agenda religiosa e política bem
definida". Não podemos deixar de ser "implacáveis na análise desse
padrão", mas tampouco podemos sucumbir à islamofobia cega. Por isso, a
reflexão é tão importante, para entender como Ocidente e Oriente estão
mergulhados no mesmo contexto moderno. "O conflito entre a
permissividade liberal e o fundamentalismo é, em última instância, um
falso conflito", afirma.
Para falar do fundamentalismo religioso de hoje
é preciso falar também, de forma crítica, de democracia liberal. Dizer
que os jihadistas do Isis são medievais é ignorar o contexto em que
surgiram. Se, por um lado, os fundamentalistas muçulmanos costumam
considerar que o Ocidente começou a ir para o mau caminho com a
secularização da sociedade, representada pela Revolução Francesa, por
outro lado, a ironia disso tudo é que "devemos olhar para a França
revolucionária se quisermos compreender a origem da ideologia e da
violência do Estado Islâmico".
Segundo o pensador Abul Ala Maududi,
criador da expressão Estado Islâmico, a Revolução Francesa ofereceu a
promessa de um Estado fundado num conjunto de princípios, por oposição a
um Estado assente numa nação ou num povo. No entanto, esse potencial
não vingou na França e teve que esperar pelo surgimento de um Estado
Islâmico para se concretizar. O cidadão universal, separado da
comunidade, da nação ou da história, seria, segundo Maududi, o eixo da
cidadania do Islã.
Trata-se, portanto, de um fenômeno moderno na sua
concepção e contemporâneo na sua forma. A globalização está por toda
parte, e é por isso que, em vez de pensar o Isis como um caso de
resistência extrema à modernização, "devemos antes considerá-lo um caso
de modernização pervertida". O Isis possui uma propaganda muito bem
organizada em termos de internet, embora suas práticas contemporâneas
sejam utilizadas em prol de uma ideologia ultraconservadora no que diz
respeito a educação, sexualidade, gênero. Por um lado, o Isis condena a
permissividade do Ocidente, por outro, transmite decapitações, atos de
escravatura sexual, violações em grupo, tortura, tudo admitido e
justificado segundo seus princípios.
Transita por vários tempos,
portanto. É ultraconservador na moral, moderno na concepção e
contemporâneo na forma. Por isso, depois de analisar sua atualidade,
Zizek se propõe a um breve mergulho nos arquivos do Islã, tentando
entender de uma perspectiva interpretativa, com seu olhar de
psicanalista lacaniano, as origens da terceira religião do Livro.
O
judaísmo, a primeira delas, é a religião da genealogia, da sucessão de
gerações. O cristianismo também segue uma genealogia paterna (quando o
filho morre na cruz, isso significa que o pai também morre). Em
contraste com essas duas, o Islã exclui Deus do domínio da lógica
paterna: Alá não é um pai, nem sequer simbólico. Deus é único, não
nasceu nem gera criaturas. É por isso que o fato de Maomé ser órfão
ganha tanta importância. Para o Islã, Deus atua nos momentos de
suspensão, de falha da função paterna, confirmando o "deserto
genealógico entre o Homem e Deus". Isso se explica pela sua escolha, a
da linhagem da escrava Agar, abandonada por Abraão, pai biológico de
Ismael, mantendo a distância entre pai e Deus, "mantendo Deus no domínio
do Impossível".
Voltemos, então, ao Gênesis. Sara, mulher de Abraão,
não conseguia lhe dar filhos. Por isso, entrega sua escrava Agar ao
marido, para que ele lhe faça um filho que será criado por ela. Quando
soube que estava grávida, Agar desprezou Sara, que, por sua vez, a
humilhou. Agar fugiu para o deserto, mas acabou seguindo a voz do anjo
do Senhor e voltou para Sara. Deu à luz o filho que Abraão chamou de
Ismael. No entanto, por milagre, depois de uma visita de Deus, Sara
acabou engravidando de Abraão. Seu filho ganhou o nome de Isaac.
Ciumenta, exigiu que Abraão expulsasse Agar e seu filho, que, segundo
ela, nunca seria herdeiro ao lado de Isaac.
Embora contrariado, Abraão
os expulsou, depois de ouvir de Deus que não se preocupasse: de Isaac
sairia a estirpe que teria seu nome, mas o filho da escrava também seria
pai de um grande povo. Daí a origem dos hebreus e dos árabes, irmãos no
início, primos até hoje.
Segundo Zizek, "Isaac versus Ismael equivale
ao pai simbólico (Em Nome do Pai) versus o pai biológico (racial), a
origem através do nome e do espírito versus a origem através da
transmissão substancial da vida, filho da mulher livre versus filho da
escrava". Talvez seja a orfandade que explique a falta de
institucionalização inerente do Islã. Trata-se de uma religião que não
se institucionaliza, como o cristianismo e sua igreja. Em realidade, a
Igreja Islâmica é o próprio Estado Islâmico. É o chefe de Estado quem
nomeia e mais alta autoridade religiosa, que manda construir as grandes
mesquitas, que supervisiona a educação religiosa, que exerce a censura e
controla a moralidade da cultura.
É interessante observar que a
pré-história do Islã, com Agar, a mãe de todos os árabes, não é
mencionada no "Alcorão". Mas é a escolha da vidente independente de
Deus, no lugar da dona de casa Sara, que nos dá a pista da insuficiência
de um monoteísmo extremamente masculino, "a irmandade da qual as
mulheres são excluídas e segundo a qual têm de ficar tapadas".
No
"Alcorão", temos a justificativa do corpo tapado da mulher. O próprio
Maomé duvidava da natureza divina de suas visões e, porque não queria
passar a vida como o louco de Meca, decidiu se atirar de um penhasco.
Foi nesse momento que a voz do anjo Gabriel ressurgiu. Em desespero,
Maomé voltou para casa e pediu ajuda para Kadidja, a sua primeira
mulher, que teve uma ideia para confirmar se a voz era mesmo do anjo.
Quando Maomé voltou a vê-lo, Kadidja lhe disse para se sentar na sua
coxa esquerda e lhe perguntou: "Consegues vê-lo?" "Sim." "Então vira-te e
senta-te na minha coxa direita". Maomé continua a ver Gabriel. Então
Kadidja ordenou que ele se sentasse ao seu colo, depois revelou seu
corpo e tirou o véu. Então, Maomé deixou de ter a visão, e Kadidja
atestou: "Alegra-te e abre o teu coração, é um anjo e não um Satanás".
Por meio da sua exibição provocadora, Kadidja demonstra a verdade.
Então, questiona Zizek, por que "a presença da mulher no Islã é tão
traumática, um escândalo ontológico de tal ordem que ela tem que estar
coberta?" A mulher é uma ameaça por representar a indecidibilidade da
verdade. Ao cobri-la com véu, cria-se a ilusão de que a verdade feminina
está por baixo dele. Nisso residiria o escândalo oculto do Islã, o fato
de que só a mulher pode garantir a verdade e, por esse motivo, tem que
usar o véu.
Quando a mulher não corresponde ao comportamento exigido,
seu ato pode ser condenado com a morte. Portanto, uma escolha é sempre,
como afirma Zizek, uma metaescolha. A atitude liberal diz que as
mulheres podem usar o véu se for por livre e espontânea vontade e não
como imposição dos maridos. Mas se elas o usam por escolha pessoal o
significado do uso do véu muda por completo: "deixa de ser um sinal da
sua pertença à comunidade muçulmana e passa a ser uma expressão da sua
individualidade idiossincrática".
Isso significa que a liberdade de
escolha, no sentido ocidental de tolerância multicultural, só pode advir
"como resultado do processo extremamente violento de arrancar alguém do
seu mundo/vida particular, de cortar as raízes a alguém".
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* Tatiana Salem
Levy, doutora em letras e escritora,. E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 27/03/2015
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