domingo, 21 de agosto de 2011

Cerimônia do adeus


 Cristina e Néstor mantinham escritório um ao lado do outro,
seja qual fosse o cargo que ocupassem
Cristina Kirchner abre sua vida em uma obra biográfica, com especial dedicação à relação com o marido, o expresidente Néstor Kirchner– Ele morreu comigo, aqui, na cama.
A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, resolveu falar sobre sua vida – e, em especial, a respeito do traumático momento da morte do seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, na manhã de 27 de outubro do ano passado.
Cristina não se pronunciou em entrevista convencional a algum dos grandes jornais com os quais seu governo tanto tem se digladiado, tais como o Clarín e o La Nación. Ela conversou com a jornalista Sandra Russo, do Página 12, e os diálogos resultaram na biografia A Presidente, História de uma Vida (Editora Sudamericana, 320 páginas, R$ 40, somente em espanhol), que – certamente não por acaso – sai a público faltando menos de três meses para o primeiro turno das eleições presidenciais, em 23 de outubro.
– Ele não morreu no hospital – continua ela, contando que o médico que atendeu Kirchner hesitou até revelar o óbito, por certo constrangido em relação à viúva presidente e porque, segundo ela própria, “ninguém queria acreditar”.
Em seguida, ainda discorrendo sobre a morte do marido, Cristina deixa escapar a ojeriza que Néstor, um líder sabidamente centralizador, tinha em relação à residência oficial de Olívos, o que pode significar uma certa repulsa pela liturgia presidencial.
– Fico com o consolo de que a morte tenha ocorrido aqui (Kirchner morreu em El Calafate, na província patagônica de Santa Cruz, onde a família costumava descansar). Eu não teria suportado que morresse em Olívos. Ele odiava Olívos. Não via a hora de voltar para cá. Amava este lugar.
Conversa de Cristina Kirchner com a jornalista Sandra Russo,
do diário Página 12, resultou na biografia
Na noite da véspera da morte dele, Kirchner e Cristina discutiram e se divertiram, riram muito. Em certo momento, beijaram-se na presença de sobrinhos. Foi um beijo que Cristina hoje vê como de despedida.
– Esse último fim de semana foi especialmente cálido, tranquilo. Não éramos de fazer demonstrações de afeto em público, diante de outras pessoas. E não me dei conta. Foi Patricio, o marido da minha sobrinha Natalia, quem me disse: tu o beijaste. Havíamos jantado com eles dois, com Patricio e Natalia. Saiu publicado que havíamos jantado com Lázaro Báez. Nunca na minha vida jantei com Lázaro. Nesse dia, eu estava escrevendo um tweet para o dia seguinte, que era o do censo. Néstor não gostava do Twitter. Ele me dizia: novamente com essa chatice? E eu respondia: deixe-me, se isso me distrai. Eu te digo alguma coisa dos teus jogos de futebol? Mas ele me ganhou no cansaço, e deixei o Twitter para o dia seguinte.
Ela relata, então, o momento em que se beijaram. Os dois, sentados no mesmo sofá, viam tevê. Apareceu na tela um aliado do casal, a quem o repórter perguntou qual dos dois preferiria como candidato presidencial. O aliado deu a entender que seria Cristina porque, na faculdade, ela costumava tirar 10, e Néstor, quatro.
– Rimos os quatro (os Kirchner e seus dois sobrinhos), e Néstor disse, entre dentes: gordo traidor! Aquilo me causou tanta graça, tanta ternura, que me estiquei até ele, até a ponta onde ele estava, e lhe dei um beijo na boca. Foi o último beijo que lhe dei. Depois, nos recolhemos para dormir, e ocorreu o que ocorreu.

Tínhamos brigas memoráveis
 Néstor Kirchner
Cristina ainda veste preto em reverência simbólica ao marido morto, quando sua viuvez repentina é um fator de popularidade praticamente irresistível como marketing para a reeleição. Na biografia, a atual presidente remonta o encontro com o parceiro de alcova, de palanque e de paço. E a emoção está em cada linha.
Diz o livro de Sandra Russo: “Quando se encontraram pela primeira vez, ela tinha 20, e ele 23. Casaram-se seis meses depois de terem se conhecido, mas isso ela não me diz. Enxuga uma lágrima que lhe caiu e fala nele sem que a voz experimente mais que um tremor. E a primeira coisa de que fala são as brigas. ‘Tínhamos brigas memoráveis’, diz, e sorri, como que reconfortada pela recordação. ‘Começamos assim, brigando. Discutíamos por tudo, por coisas que nos pareciam muito importantes e coisas que eram tolices. Mas brigamos sempre, do primeiro ao último dia (do relacionamento)’”.
Cristina parece ter necessidade de falar das brigas do casal. Ocupa boa parte do relato tratando desse assunto. As rusgas lhe despertam saudades do marido, isso fica evidente: as “peleas” eram mais que um enfrentamento, eram uma forma de comunicação, eram toda uma arte, eram uma maneira de um fazer companhia ao outro. Confrontando-se.
– Eu, quando me aborrecia, não falava com ele – diz para sua biógrafa, “em tom mordaz, de jogadora”.
E confessa: sabia que ignorá-lo era o pior que podia fazer a Néstor. A persistência no afastamento se fazia necessária para ficar caracterizado que era ela quem havia “ganhado” a briga.
– Mas me custava muito – diz a presidente. – Cheguei a ficar um dia sem falar com ele – acrescenta para Sandra, que identificou naquela frase e na expressão que a acompanhava: ali, a mulher Cristina reconhecia algo meritório.
A biógrafa, então, intervém:
– Um dia?! Um dia não é nada.
E Cristina lhe responde:
– Mas, para nós, um dia era uma eternidade. Não podíamos viver sem nos falarmos.
– Ele, às vezes, se ensimesmava, e era possível se dar conta de que estava aborrecido, pela cara que tinha – prossegue Cristina. – Como me arrebentava essa cara de bunda quando eu não sabia o que estava ocorrendo! O que está passando, eu lhe perguntava. E ele me respondia “nada”, de má vontade. Podia ser que eu lhe houvesse aborrecido, com algo meu ou com alguma situação, mas não suportava que ele me dissesse “nada”.
O fato é que os dois se acostumaram a estar juntos. Um mantinha escritório ao lado do outro seja qual fosse o cargo que ocupassem. E se chamavam permanentemente, ora para tratar de assuntos domésticos, ora para falar de política. Isso era constante, dizem as pessoas que privaram da intimidade do “Casal K”.
A PRESIDENTE, HISTÓRIA DE UMA VIDA
(Editora Sudamericna, 320 pág. R$40,00 em espanhol)

Na conversa com a biógrafa, Cristina fez silêncios curtos. Sandra acredita que ela tentava pôr em ordem o que vinha a sua mente e o jorro de emoções que isso provocava. Ora ela tossia, ora ela chorava.
Após uma pausa, a presidente argentina diz:
– O impressionante é que eu pensava nele, e o cara me chamava. Tínhamos momentos telepáticos. Nos chamávamos ao mesmo tempo e pelo mesmo motivo. E, quando estávamos juntos, às vezes nem nos falávamos. Só pelo olhar nos entendíamos. Era impressionante, sim. A conexão era impressionante.
Em seguida, provocada pela biógrafa com uma reticência, ela define o que significa “ter um interlocutor como esse”:
– É insubstituível, não há outra palavra.
E conta algo que ficou evidente desde o velório de Néstor, quando Zero Hora teve a oportunidade de acompanhar a maneira cúmplice como Cristina se relaciona com o filho, Máximo:
– A pessoa de quem sou mais próxima agora é meu filho. Mas é completamente diferente, é outra idade, são outras vivências. Temos uma relação de mãe e filho. A minha relação com Néstor foi incrível.
De todas as declarações feitas na biografia, uma tem sido especialmente explorada pela imprensa argentina neste momento em que a obra ganha as vitrinas das livrarias. Lá pelas tantas, ela demonstra um desapego ao poder que muitos olham com desconfiança. O que diz a presidente:
– Nunca quis ser candidata. Nem para presidente, nem para senadora ou para deputada (cargos que ocupou). Tiveram de me convencer sempre.
A respeito da pressão emocional própria do cargo que ocupa, ela se diz uma mulher resistente. E acentua que isso cresceu após a morte do marido.
– Desde que ele morreu, é como se houvesse se aprofundado essa tolerância à pressão.
Cristina não caiu. E tenta se manter no topo.
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leo.gerchmann@zerohora.com.br
Reportagem por LÉO GERCHMANN
Fonte: ZH on line, 21/08/2011

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