domingo, 21 de agosto de 2011

Rubem Alves & Moacyr Scliar

Rubem Alves – Felicidade, felicidade... Primeiro, a palavra é grande demais e o sentimento, pleno demais: dizer “eu sou feliz”, seria possível? Felicidade é grande demais para se realizar. O Riboaldo, em determinado momento diz que felicidade “só em raros momentos de distração”. A gente agarra aquele momento, mas ele escorrega e vai embora tão rápido, tão rápido, que é uma tristeza. É uma tristeza que assim seja. A minha área não é das enfermidades físicas. Vejo somente as coisas que podem ser vistas com a alma. Quando a alma sofre, ela sofre, porque sofre? Nem sempre sabemos bem por quê. Eu não sei por que a alma sofre e, quando sofre, mergulha-se em um estado completo de sofrimento metafísico. Eu sofro. Por que sofro? Estou deprimido. Por que estou deprimido? Por que razão a gente sofre muitas vezes sem causa aparente? Nem sempre sabemos. Nem sempre se sabe. O Browning dizia que a gente vai tranquilamente andando pela rua e de repente um pôr do sol de novo... E estamos perdidos. Só de pensar o que o pôr do sol traz... Porque o pôr do sol é metafórico. Nós e a nossa alma ficamos enfermos de metáforas ao ver o pôr do sol, porque ele é metafórico. A metáfora da beleza e da finitude da vida. Que coisa interessante pensar que a metáfora possa, em certos momentos, nos trazer a enfermidade da alma.

Moacyr Scliar – Isso que o Rubem comenta é algo curioso porque nos remete ao nosso outro lado que é o da literatura. A metáfora é a matéria-prima da literatura. Mas existe uma relação curiosa entre metáfora e doença que foi muito bem expressa em um livro da escritora norte-americana Susan Sontag , A doença como metáfora. Na realidade, não se tratava de um livro, mas de um artigo publicado no The New York Review of Books. Nesse artigo, ela analisou, digamos, o significado imaginário das doenças. Trabalhou com duas doenças, a tuberculose e o câncer, depois acrescentou ainda uma terceira: a AIDS. A autora mostra como essas doenças tinham grande significado simbólico. Aquela coisa de ver a tuberculose como castigo ao mesmo tempo em que também era uma oportunidade de elevação do espírito, fazendo o doente viver emoções intensas. Trabalhei um tempo com pessoas tuberculosas e essa imagem realmente existia. A imagem de que o tuberculoso vivia em frenesi era, até certo ponto, compreensível, porque a tuberculose acometia pessoas jovens em uma época em que tal doença era mortal, incurável. Castro Alves é um bom exemplo. Morreu jovem dessa doença, aos vinte e poucos anos. Era a excitação da vida versus a proximidade da morte.

(...)
Rubem Alves – Gosto de usar metáforas. Talvez por ter formação teológica, ainda que não acredite nas entidades teológicas. Assim, prefiro trabalhar com metáforas. Vou usar a seguinte metáfora: corpo e alma são instrumento musical e música. O corpo é o hardware, o instrumento, é o violino, a alma, a música que o violino toca. Pode-se ter um instrumento maravilhoso como o do Mike Tyson, que é um instrumento perfeito, mas que não toca nada. E pode-se ter um instrumento extremamente frágil, um violino com uma corda só, e tocar uma coisa fantástica naquele instrumento tão pobre! Produz-se beleza. Às vezes, o instrumento produz beleza, a doença produz beleza. Liszt comentava que Chopin estava sendo destruído pela tuberculose, mas era como se a doença atingisse sua alma. Aquela doença o tornava melancólico. Era uma doença que atingia a alma. Os Noturnos de Chopin são de uma melancolia, de uma tristeza, e penso que tudo aquilo tinha a ver, de alguma maneira, com a sua alma. Ela estava tocada pela doença de um modo criativo, produzindo beleza.

Moacyr Scliar – (...) É exatamente no começo da Modernidade que surge a anatomia. Mais tarde surge o conceito cartesiano da máquina corporal, o organismo sendo comparado a uma máquina. Mas Descartes não prescindia da noção de alma. A alma era algo incorporado ao corpo. Era “the ghost in the machine”, na expressão do filósofo Gilberto Ryle , o fantasma na máquina. Mas, obviamente, é muito mais fácil lidar com a máquina corporal, consertar a máquina corporal, um conceito que a medicina seguiu durante muito tempo e continua seguindo. É mais simples do que se preocupa com a alma, algo que a maioria das pessoas realmente não entendia e deixava para os teólogos, sacerdotes e místicos.

Rubem Alves – Mas a ideia da máquina é muito atraente, não acham? Porque se quebramos uma perna, vamos ao mecânico, e, se tudo fosse simples assim, o mecânico e suas ferramentas bastariam, mas quando lidamos com a alma... O que é isso? Uma entidade? Por onde desliza? Um dos problemas discutidos pelos filósofos antigos era como fazer a conexão entre a coisa material e a espiritual. Há um grande mistério. Um mistério como o dos talentos. Um músico como Nelson Freire , fisicamente muito parecido comigo, nascido na mesma cidade que eu – Boa Esperança, em Minas Gerais – , mas tem um negócio dentro dele... Alma? Não sei. Mas sei que não é matéria. Disso eu tenho certeza. Essa coisa faz com que ele se assente ao piano... E aí o piano adquire alma, o mundo adquire alma, e faz com que todas as almas fiquem irmanadas na beleza que ele produz. Sobre isso eu não sei dizer. Estou pensando em criar um outro tipo de professor, um professor de espantos!

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Rubem Alves – Espantos porque certas coisas são tão espantosas, tão espantosas como a questão da alma. Quer algo mais espantoso do que isso?

(...)

Rubem Alves – Eu estava pensando ontem sobre isso e me lembrei de várias doenças da alma. Até escrevi um livrinho sobre essas doenças da alma. Elas são os sete pecados capitais: a gula, a luxúria, a inveja, a preguiça, a avareza, a ira e a soberba. A gula é uma doença; a luxúria, uma doença... Contudo, quando a doença é do corpo, nós não somos culpados por ela, mas as doenças da alma são pecados e nós é que somos culpados por aquela atitude, conduta, sentimento. Por isso, penso que há sim doenças da alma, e quando tomamos consciência dela sofremos uma dor chamada culpa. A culpa é uma doença da alma, o sentimento da culpa é uma doença da alma. Para isso existem os padres, pastores, pais e mães de santos, chamas e às vezes psicanalistas. Ferbem afirma que a função do psicanalista é parecida com a função do padre, que perdoa os pecados, retirando um peso das costas do indivíduo: o peso da culpa que se chama confessionário. O protestante não tem o confessionário e tem de se resolver diretamente com Deus. E isso, para o protestante, é uma desgraça, enquanto o confessionário para os católicos é uma felicidade. O indivíduo vai ao confessionário e sai dele absolvido. Vá, meu filho, diz o padre, e seus pecados estão perdoados. Então tudo fica bem, tudo está bem. É
Preciso que tenhamos pessoas que nos ajudem com nossas culpas. Talvez essa seja a função da terapia, da psicanálise. “Vai... tua fé te curou.”

Notas do Blog.

- Robert Browning (7 Maio 1812 – 12 Dezembro 1889) Poeta inglês. Camberwell, Londres. Inglaterra.

- Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque – 28 de dezembro de 2004) foi uma famosa escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

- Franz Liszt (pronuncia-se Lisst), em húngaro Liszt Ferenc, (Doborján, Reino da Hungria, 22 de outubro de 1811 — Bayreuth, 31 de julho de 1886) foi um compositor e pianista teuto-húngaro do Romantismo

- Frédéric François Chopin também chamado Fryderyk Franciszek Chopin (Żelazowa Wola, 1 de Março de 1810[1] — Paris, 17 de Outubro de 1849) foi um pianista polaco[2] e compositor para piano da era romântica. É amplamente conhecido como um dos maiores compositores para piano e um dos pianistas mais importantes da história.[3] Sua técnica refinada e sua elaboração harmônica vêm sendo comparadas historicamente com as de outros gênios da música, como Mozart e Beethoven, assim como sua duradoura influência na música até os dias de hoje.

- René Descartes (La Haye en Touraine, 31 de março de 1596 — Estocolmo, 11 de fevereiro de 1650[1]) foi um filósofo, físico e matemático francês[1]. Durante a Idade Moderna também era conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius.
- Gilbert Ryle ( Brighton , 19 de agosto de 1900 - Oxford , 06 de outubro de 1976 ) foi um filósofo , um representante da escola filosófica de Oxford.
- Nelson Freire (Boa Esperança de Minas, 18 de outubro de 1944) é um pianista brasileiro reconhecido internacionalmente.
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Do Livro: Rubem Alves & Moacir Scliar – conversam sobre o corpo e a alma – uma abordagem médico-literária, Ed. Saberes, 2011, págs.22 a 33
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