quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A modinha das bactérias

NINA HORTA*


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Já tínhamos os inspetores da moda e
do sexo e da comida, agora nos
 arranjaram os da limpeza
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Pode ser paranoia, mas vai saber. Na última coluna comentei o esvaziamento do assunto "comida" como modinha. E é claro que já estamos inventando uma nova. A casa e a eliminação das bactérias.
Lembram-se dos programas da tarde na TV? Giravam em torno de moldes, babadores, aventais com bolsos, caixinhas e sabonetes pintados. Agora sintonizei um canal para ver cozinheiras brasileiras e dei com moças dubladas ensinando a fazer cabideiros com mil borboletas e laços. Vestimenta para os fogões, processadores, de preferência com a saínha bem rodada.
Por acaso outro programa me prendeu a atenção na TV inglesa. São duas mulheres numa ambulância que socorrem casas sujas. A casa que vi era a de um homem que ficava brincando com autorama e há mais de 20 anos não limpava nada.
A casa era coberta por uma crosta de sujeira impermeável. Pois elas vão lá com seus operários, álcool, esfregam e o pior: nos mostram em tamanho grande as milhares de bactérias nojentas que estão no sofá e em todos os cantos à espreita para nos matarem. Filme de terror perde. Já tínhamos os inspetores da moda e do sexo e da comida, agora nos arranjaram os da limpeza.
Lembram-se do doutor Bactéria, aqui no Fantástico? Apareceu agora na GNT uma moça que ensina a pôr ordem na casa. Ontem assisti a um Saia Justa, com o tema de limpeza. Quem é mais sujo, o homem ou a mulher?
Era uma pergunta extraída de uma leitura do livro de Laura Kipnis. Não foi traduzido ainda, "a coisa feminina" (The Female Thing: Dirt, Envy, Sex, Vulnerability, ed. Vintage). Um dos capítulos trata de como as mulheres se sentem mais responsáveis e mais vulneráveis à sujeira. E o ímpeto da limpeza viria para fazer desaparecer emoções subterrâneas não desejadas. E a autora se pergunta "Dá para varrer ou esfregar até fazer desaparecer uma condição existencial?"
A relação de limpeza com pureza seria uma das mentiras da humanidade e nós limpamos e nos queixamos da sujeira dos homens, quando já foi o oposto. Nós sujas, e os homens tentando livrar-se de nossa sujeira com ritos, banhos...
Se o homem é sujo, (pornografia, piadas sujas, cueca no chão, privada com tampa aberta) as mulheres terão de passar o resto da vida limpando a sujeira deles? Ou reclamando dela? O que há por trás disso?
Através da história a mulher sempre foi considerada mais suja do que o homem, por causa de seus orifícios, enquanto o homem tem o corpo mais fechado. A menstruação é tida como suja e perigosa em muitas culturas. Muitas mães impedem visitas de mulheres menstruadas para que não sequem seu leite.
Se a mulher é contaminada e contamina, o seu papel social de faxineira é mais ou menos óbvio. Não sou psicóloga, nem "óga" nenhuma.
Só tenho medo de uma modinha de "abaixo à contaminação", com obrigações sabor morango e bichinho horrendo nas lupas, bichinhos que sempre estiveram onde estão, desde o começo do mundo.
E mais medo ainda, só agora me dei conta, de que talvez a Presidenta já esteja atacada de faxina compulsiva e o Chico atrás de uma mulher sem orifícios! Atenção!
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* Nina Horta, cozinheira e escritora, é proprietária do buffet Ginger. Estudou educação na USP. Na Folha escreve semanalmente sobre gastromonia, na Ilustrada, onde, por meio da culinária, reflete sobre a cultura brasileira. É autora do livro "Não é Sopa", um dos clássicos contemporâneos da crônica brasileira e o "Vamos Comer", com 250 mil exemplares distribuídos pelo MEC para as escolas públicas de todo o Brasil. ninahorta@uol.com.br
Fonte: Folha on line, 25/08/2011
Imagem da internet

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