quarta-feira, 31 de agosto de 2011

ARRUMAR SÓTÃOS E PORÕES

Lya Luft*
Quem acompanha o que penso há décadas sabe que o centro de minhas perplexidade tem sido a família, esse chão inaugural sobre o qual caminharemos pelo resto de nossa vida, mais sólido ou mais esburacado, propiciando que se ande melhor ou se tropece mais. Acontecimentos espantosos mostrados na mídia nestes dias testemunham que precisamos ser menos românticos e mais lúcidos para que se salve uma semente de humanidade ali onde família deixou de existir. Bandos de crianças e pré-adolescentes fazem arrastões em hotéis ou lojas numa grande cidade. Alguns, presos, são devolvidos às mães. Ouve-se claramente uma dessas pseudomães criticar a filha, não por ter roubado, mas por ter “roubado no mesmo lugar, sua besta”. Uma autoridade insistia brandamente em que ainda se devia apostar na família. Sinto muito: nesses casos extremos, não acredito nisso. Algumas famílias são a origem do mal (e não só entre os mais desvalidos). Ali não existem colo, abraço, escuta ou palavra: existem brutalidade, obscenidade e crueldade. Ali não se formam pessoas, e é insensato devolver crianças ou pré-adolescentes a esse tipo de mãe. É uma desesperada, dirão alguns, e pode ser. Mas ali o conceito de “família” não existe.
Nem acredito que essas crianças enfurecidas, pequenos selvagens que apanhados destruíram, literalmente, postos de polícia e salas de atendimento de menores infratores, chutando policiais, atirando objetos longe, quebrando e rasgando o que chegava aos alcance de sua violência, tenham possibilidade de melhoria, se devolvidas a sua pseudofamília. Retornadas às ruas, são um perigo para si e para todos. A lei deveria ser muito firme nesses casos, para socorrer fantasmas com carinha de criança e alma de sombra, acalmando sua violência, incutindo-lhes o que seja convívio, dignidade, respeito por si e pelo outro: longo caminho, longo aprendizado, longo esforço da sociedade em compensar essas pessoinhas pelo abandono em que as deixou.
Quando se fala em redimir os miseráveis do país retirando-os desse contexto, deve-se incluir, de imediato, o trio moradia, saúde e educação, sem o qual somos quase bichos. Perdoem-me os ainda líricos, mas o que se viu mais de uma vez nessas crianças foi a violência nua e crua. Talvez estivessem drogadas. Certamente não conhecem outra coisa no ambiente insano no qual nasceram. Mas precisam, por isso mesmo, de contenção, limite, autoridade amorosa mas firme, orientação e, antes de tudo, cuidados básicos consigo mesmas.
Onde a família virou apenas um mito distante, mais essencial é a ideia da educação, que não se restringe a caderno e lápis, mas começa com a tentativa de salvar essas crianças do seu meio com um atendimento básico em saúde e higiene, conceitos fundamentais de vida, afeto, respeito, o que, naturalmente, inclui limites, disciplina, restrições e encaminhamentos paulatino, paciente com autoridade, a um condição de vida mais humana. Educação começa aí, inclui essas coisas, é muitíssimo maior do que isso que chamamos ensino, e é condição dele.
Erradicar a miséria onde ainda se vive em condições inimagináveis é ainda mais urgente do que ordenar o sótão, procurando expulsar os ratos e os insetos daninhos ali instalados, reestruturar funcionamentos, dar novo sentido, deixar entrar claridade, botar em ação espanadores, panos, água limpa, enceradeiras e ordenação de objetos. Mas talvez as duas coisas sejam essenciais e não sejam incompatíveis, embora exijam força e empenho quase sobre-humanos: o país olha com alguma esperança para essa possibilidade. Quem assistiu ao espetáculo daquelas crianças ferozes aposta em se juntarem as duas pontas numa grande arrumação de casa visando aos espectros do porão e aos ratos e lacraias do sótão, custe o que custar, enfrentando oposições, reclamações, superando jogos de poder e cobiça de cargos, encarando o principal: limpeza, luz, ordem, eficiência, decência, fazendo funcionar melhor a dramática engrenagem social em que nos debatemos.
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*Escritora. Tradutora. Escreve quinzenalmente na revista VEJA.
Fonte: Revista VEJA impressa, Ed. 2232 – 31 de agosto de 2011, pág.26.
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