sábado, 13 de agosto de 2011

O muro invisível

MÁRCIO MIRANDA ALVES*

50 ANOS DEPOIS DA CONSTRUÇÃO
Da barreira construída em 13 de agosto de 1961 só restam vestígios. Os alemães, porém, seguem divididosUm final de semana ao sol no Mauerpark (Parque do Muro) é um dos programas preferidos dos berlinenses. Numa faixa de gramado onde ficava a “terra de ninguém”, nas imediações do muro, os jovens divertem-se ao som de música ao vivo enquanto preparam seu churrasquinho de linguiças, crianças e cães brincam, casais e curiosos circulam por um imenso mercado de pulgas. Na Mühlenstrasse, no bairro de Friedrichshain, não fossem os turistas e suas câmeras fotográficas, o East Side Park passaria despercebido, seria apenas mais um muro pintado em grafite, como o da Mauá, por exemplo. Para um turista desavisado ou um estrangeiro recém-chegado a Berlim, a cidade parece conviver bem com as lembranças do muro que a dividiu durante 28 anos. Essa impressão, no entanto, pode valer para muitos alemães, mas não para todos.
É comum ouvir de um berlinense que “Die Mauer müßte man gleich 3m höher bauen” (“Deveriam reerguer o muro, desta vez três metros mais alto”), frase já impressa até mesmo em camisetas. Pode soar como uma brincadeira inocente, seguida de um sorriso irônico, mas no fundo sintetiza o abismo que ainda separa os alemães do Leste e do Oeste. Se o desenvolvimento social da parte oriental da Alemanha está atrasado em relação ao da ocidental, acredita-se que isso se resolva nos próximos anos. Existe, porém, uma divisão invisível que não pode ser solucionada com medidas econômicas. Trata-se do muro que está encravado dentro da cabeça dos alemães e que resiste a desmoronar. Uma espécie de herança maldita.

"...12% dos habitantes de Berlim Oriental
gostariam que um novo muro fosse construído.
A esperança dos que combatem esse
tipo de pensamento é que as novas gerações
 percam esse sentimento saudosista."



Essa fronteira começou a ser erguida na madrugada do dia 13 de agosto de 1961, um domingo de verão, pelos soldados da antiga República Democrática Alemã (RDA). O muro de 3m60cm de altura construído para impedir a fuga em massa dos alemães orientais para o lado ocidental era uma barreira física que dividia uma cidade, um país, a Europa e o mundo. A interpretação ideológica do governo alemão oriental era de que a fronteira separava o passado do presente e garantia a paz. Berlim vivia “a normalidade do anormal”, nas palavras do escritor e crítico alemão Hans Christoph Buch, e a estupidez do muro nunca foi aceita pelos berlinenses. Milhares conseguiram transpô-lo, mas pelo menos 150 morreram tentando a fuga. Quando finalmente o muro caiu, rolaram lágrimas de emoção no reencontro de amigos e parentes há muito separados. O choro logo se transformou em um ressentimento que nos dias atuais pode ser traduzido nas expressões “típico do Leste” e “típico do Oeste”.
Na visão dos alemães do Leste, os ocidentais são esnobes e arrogantes, os “Besser Wessi” (sabichões do Oeste). Por outro lado, os alemães do Oeste consideram os vizinhos orientais emburrados e cheios de autocompaixão, os “Jammer Ossi” (rabugentos do Leste). Embora o preconceito não seja uma unanimidade, é normal os berlinenses acharem que antigamente tudo era melhor do que hoje. Por ocasião das comemorações de 20 anos da queda do muro, uma pesquisa feita pela Universidade Livre de Berlim mostrou que 12% dos habitantes de Berlim Oriental gostariam que um novo muro fosse construído. A esperança dos que combatem esse tipo de pensamento é que as novas gerações percam esse sentimento saudosista.

Artigos lamentam exploração turística

Ignácio de Loyola Brandão foi um entre tantos escritores brasileiros que viveram a experiência de morar em Berlim com uma bolsa do DAAD, instituição alemã que promove intercâmbio acadêmico. No livro de memórias O Verde Violentou o Muro: Visões e Alucinações Alemãs (1984), cujo subtítulo foi alternado a partir de uma nova edição atualizada para Vida em Berlim Antes e Agora, por ocasião de uma segunda estadia na cidade, após a queda do muro, o escritor percebe o muro estendendo-se para além do território alemão, a barreira física como uma metáfora de nossas demarcações sociais. “Há um muro dentro das pessoas, com as dificuldades cada vez maiores de relacionamento. (...) Muro entre as gerações. Entre as raças. Entre desenvolvidos e subdesenvolvidos. (...) Muro, por toda parte”.
Se não há nada a se comemorar quando se completam 50 anos da construção do muro, existe um movimento que busca recordar o passado para que os mesmos erros não se repitam. Em Berlim, dezenas de exposições e debates ocorrem neste mês para recontar os fatos que culminaram na construção do muro e suas consequências no tempo presente. Nesse momento de reflexão sobram críticas até contra os tradicionais pontos turísticos da cidade. A revista Der Spiegel, a mais conceituada da Alemanha, publica na internet uma série de artigos e material de arquivo que tratam dos 50 anos do muro. Um desses artigos questiona a proposta turística de museus privados como o Checkpoint Charlie, onde “o passado se fantasiou” e “por um punhado de dinheiro homens e mulheres se deixam fotografar vestidos de soldados russos e americanos”.
O fato é que existe um conflito entre os interesses turísticos e a memória coletiva local. Ao mesmo tempo que os berlinenses falam em uma nova barreira, também percebem o muro que os enclausurou como um fantasma, cujos restos poderiam ser demolidos hoje mesmo sem deixar saudade. De qualquer forma esse muro feito de concreto e arame já foi ao chão. O outro, o invisível, aguarda um dia festivo como o de 9 de novembro de 1989.

PARA ENTENDER O MURO

Memorial do Muro
O local preserva as características do entorno do muro como era nos anos 80, com uma das poucas torres de observação que restaram. Uma exposição descreve a construção do muro com vídeos feitos na época e apresenta a biografia das vítimas que sucumbiram ao tentar transpor a barreira. Bernauer Strasse, 119. Gratuito
Topografia do Terror
Instalado ao lado de um trecho do muro próximo à Potsdamer Platz, o museu tem uma exposição interna e outra externa, nas quais dezenas de painéis com fotos, textos e vídeos focam o período de 1933 a 1945. Niederkirchener Strasse, 8. Gratuito.
Checkpoint Charlie
No local onde ficava a principal passagem entre os setores oriental e ocidental, um museu exibe fotos, filmes, souvenires e a réplica de um carro com compartimento secreto para acomodação de passageiros fugitivos. A guarita dos soldados e uma placa de aviso fazem parte do cenário externo. Friedrichstrasse, 43. Ingresso: 12,50 euros.
Museu da RDA
Interessante para conhecer os hábitos e costumes dos alemães da República Democrática Alemã (RDA). O museu reúne os mais variados objetos da vida cotidiana, como bebidas, roupase até a reconstituição do interior de uma casa e de uma cela de prisão. Karl-Liebknecht Strasse, 1. Ingresso: 6 euros.
East Side Gallery e MauerPark
Dois passeios indispensáveis para observar a relação entre os berlinenses e o muro. No East Side Gallery (Mühlenstrasse), na margem do rio, artistas fizeram do muro uma espécie de galeria de arte em grafite. O Mauerpark (Bernauer Strasse) é um dos lugares preferidos dos jovens. Gratuito.
--Veja fotos da Berlim pós-Muro por Márcio Miranda Alves no blog Cultura ZH
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*Jornalista, doutorando em Literatura Comparada na Universidade de São Paulo (USP), bolsista Capes no Instituto Latino-americano da Universidade Livre de Berlim com projeto de pesquisa sobre “O Tempo e o Vento”, de Erico Verissimo
Fonte: ZEROHORA.COM 13/08/2011

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