Por Diego Viana
Celebração do centenário de Darcy Ribeiro evidencia a contribuição do antropólogo para a sociologia e a educação
Em uma de suas últimas entrevistas, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) relatou que fugiu do hospital onde se submetia a tratamento contra um câncer para terminar o livro que considerava o coroamento de sua obra: O povo brasileiro (Companhia das Letras), publicado em 1995. Na mesma entrevista, reconhecia ser um homem de “muitas peles”: foi etnólogo indigenista, antropólogo, educador, gestor público, político militante e romancista. Mas dizia ter fracassado em sua missão de tornar o Brasil aquilo tanto que “poderia ser”.
No centenário de seu nascimento, que vem sendo lembrado em todo o país, seu legado tem sido celebrado. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) declarou 2022 “Ano comemorativo Darcy Ribeiro” e programou vários eventos. Em março, o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) realizou um seminário sobre sua influência na educação brasileira. A Universidade de Brasília (UnB), da qual o antropólogo foi um dos fundadores, vinculou as comemorações de seus 60 anos ao centenário de seu primeiro reitor. No campo editorial, o livro autobiográfico Testemunho, lançado originalmente em 1990, está sendo republicado pela editora Record, com prefácio do jornalista Eric Nepomuceno. A editora Elefante, por sua vez, lança Os futuros de Darcy Ribeiro, organizado pelo sociólogo argentino Andrés Kozel, da Universidad Nacional de San Martín (Unsam), e pelo cientista político Fabricio Pereira da Silva, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
“Darcy Ribeiro é uma figura fascinante e um dos autores latino-americanos que projetaram mais futuros. Em alguns dos textos, ele parece comentar em voz alta as alternativas, utópicas e distópicas, para o Brasil e a América Latina”, observa Pereira da Silva. “Este é um momento excelente para reexaminar suas ideias, suas utopias e projetos.”
Nascido em Montes Claros (MG), Darcy graduou-se em ciências sociais na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1946, sob orientação do etnólogo alemão Herbert Baldus (1899-1970). Baldus indicou-o para trabalhar com o marechal Cândido Rondon (1865-1958) no Serviço de Proteção ao Índio (SPI), onde ficou de 1947 a 1955. Nesse intervalo, dedicou-se à etnografia de povos indígenas, entre eles os Kadiwéu, os Kaingang e os Bororo. Com os irmãos Cláudio (1916-1998) e Orlando Villas-Bôas (1914-2002), participou da criação do Parque Indígena do Xingu, em 1952. A partir dessa experiência, publicou seus primeiros livros, como Línguas e culturas indígenas no Brasil e Arte plumária dos índios Kaapor, ambos de 1957.
“Foi na atuação de campo, como profissional do SPI, que ele desenvolveu seus conceitos sobre a questão indígena e o povo brasileiro. As bases teóricas de sua obra foram em grande parte constituídas nesse período”, afirma a historiadora Carolina Arouca Gomes de Brito, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em relatório apresentado à Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura (Unesco), em 1952, Darcy criticou a ideia de que ocorria uma pacífica assimilação dos indígenas à população brasileira, mostrando que a formação do Brasil passava pelo extermínio dos povos originários.
Sua carreira de educador teve início na Escola Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, onde durante dois anos ensinou etnologia brasileira. Na mesma época, participou da fundação do Museu do Índio, em 1953, e, dois anos mais tarde, da criação do primeiro curso de pós-graduação em antropologia cultural no Brasil. Ao deixar o SPI, lecionou na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesse período, desenvolveu trabalhos com o pedagogo Anísio Teixeira (1900-1971), uma das principais referências em educação no Brasil e defensor do ensino básico integral (ver Pesquisa FAPESP n° 303). Sua influência perduraria por toda a trajetória de Darcy Ribeiro e se concretizaria no projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (Ciep), escolas de tempo integral criadas no Rio de Janeiro nos anos 1980. Na época, o governador era Leonel Brizola (1922-2004) e Darcy seu vice.
No exílio, Darcy dedicou-se ao ambicioso projeto de uma “antropologia das civilizações”
A aproximação entre Darcy e Brizola se deu na década de 1960, quando o antropólogo mineiro ingressou na política nacional. Foi ministro da Educação no período parlamentarista do governo João Goulart (1919-1976). Na volta ao presidencialismo, chefiou o Gabinete Civil da Presidência da República. Após o golpe de Estado, em 1964, teve seus direitos políticos cassados. Durante a ditadura militar (1964-1985), o antropólogo viveu 12 anos fora do Brasil. Foi um período determinante para a consolidação de seu pensamento, segundo o próprio Darcy, que se referiu ao exílio como o momento em que se descobriu latino-americano. Nos países pelos quais passou – Uruguai, Venezuela, Chile, Peru, Costa Rica e México –, participou de projetos de criação e reforma de universidades, além de lecionar em diversas instituições.
No Uruguai, Darcy foi apresentado à obra do sociólogo e historiador Manoel Bomfim (1868-1932). O autor de A América Latina: Males de origem (Garnier, 1905) se tornou uma de suas principais referências, por se contrapor às teorias sociais e raciais de seu tempo ao afirmar que a causa dos problemas do Brasil não era a diversidade étnica, mas a própria lógica da colonização. “Bomfim escrevia na época do eugenismo, mas já rebatia os argumentos baseados na inferiorização de raças”, aponta a socióloga Adélia Miglievich-Ribeiro, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). “Também enfatizava que o caminho para superar qualquer atraso estava na capacidade de nos emanciparmos do colonialismo e nos afirmarmos como nação soberana. Propunha, assim, um projeto amplo de educação nacional.”
No exílio, Darcy se dedicou ao ambicioso projeto intelectual de uma “antropologia das civilizações”. Em 1968, publicou O processo civilizatório (Civilização Brasileira). Em 1970, As Américas e a civilização (Civilização Brasileira) e Os índios e a civilização (Vozes). Ainda como parte do mesmo impulso teórico, lançou Os brasileiros: Teoria do Brasil (Vozes, 1972) e O dilema da América Latina (Paz e Terra, 1978). Em As Américas e a civilização, o antropólogo propõe uma classificação das populações do continente de acordo com a relação que tiveram com a colonização. Grupos humanos que puderam simplesmente reproduzir seu modo de vida europeu do outro lado do Atlântico, como no norte dos Estados Unidos, no Canadá e em partes da Argentina, são denominados “povos transplantados”. Os descendentes dos impérios pré-colombianos, que se encontram sobretudo no México e no Peru, são “povos testemunhos”.
Há, por fim, os “povos novos”, em países como Cuba, Venezuela, Colômbia e Brasil. Esses são formados por um processo de transmutação das antigas identidades. Essa ideia reaparecerá em O povo brasileiro na forma da “ninguendade”, conceito que descreve a formação da população brasileira a partir do encontro violento entre europeus e os povos originários. Esses últimos procuravam transformar os recém-chegados em parentes ao promover casamentos entre colonizadores e mulheres indígenas – o chamado “cunhadismo”. Os filhos dessas relações, no entanto, renegavam a cultura das mães e aspiravam à dos pais, que não estava acessível para eles, segundo o antropólogo. A mesma violência ocorreria mais tarde entre os africanos trazidos à força, impedidos de dar seguimento às suas linhagens na nova terra.
“O povo brasileiro conta uma história de sofrimento terrível: colonialismo, dizimação dos negros e indígenas, violência contra a mulher, tomada de terra, destruição de patrimônios culturais”, diz Miglievich-Ribeiro. “Darcy tinha a chama da utopia e acreditava que dessa ninguendade nasceria algo novo. Mas isso não acontece naturalmente. Na sua visão, só pela luta política podemos superar a condição de subalternidade.”
A crítica ao colonialismo, a análise dos povos latino-americanos e a valorização do ponto de vista indígena fazem da obra de Darcy Ribeiro uma fonte de inspiração para pesquisadores do campo de estudos pós-coloniais e decoloniais, de acordo com Pereira da Silva, que cita como exemplos o semiólogo argentino Walter Mignolo e a teórica cultural norte-americana Gloria Anzaldúa (1942-2004). “São releituras e apropriações, porque quando ele publicou esses termos não eram usados. A tendência ao evolucionismo e ao eurocentrismo de seus primeiros anos deu lugar, no exílio, a uma visão mais diversificada, em que a América Latina aparece como um polo civilizacional”, afirma.
Pereira da Silva também identifica a influência de Darcy Ribeiro nas concepções da América Latina que enfatizam o caráter plurinacional do continente e o direito dos povos originários à autodeterminação. Em seus trabalhos de juventude, o antropólogo afirmava que o avanço da colonização e a mestiçagem condenariam os indígenas ao desaparecimento. Na década de 1970, entretanto, começou a identificar a emergência de movimentos de resistência e afirmação da identidade dos indígenas em vários países, inclusive no Brasil.
“Ele vê que os povos indígenas desenvolvem identidades nacionais. Não vão desaparecer. Então passa a pensar em termos de países com várias nacionalidades, como federações. Isso antecipa a discussão da plurinacionalidade que se desenvolverá na Bolívia e no Equador, desembocando em processos constitucionais como o que ocorre hoje no Chile”, diz.
Para Miglievich-Ribeiro, embora Darcy adotasse modos de pensar que o diferenciavam das principais correntes do pós-colonialismo, como a pretensão de explicar fenômenos universais, o núcleo de seu projeto é semelhante ao de outros precursores dessa vertente, como os martinicanos Frantz Fanon (1925-1961) e Aimé Césaire (1913-2008). “Todos tentaram criar uma narrativa baseada nos que viveram a experiência da exploração colonial”, resume. “O que os une é a compreensão de que os povos latino-americanos foram plasmados pelo colonialismo. São estudiosos que não aceitam o universalismo europeu como explicação do mundo.” Em 1976, Darcy Ribeiro retornou ao Brasil e abriu uma nova vertente em sua obra: a de romancista. Publicou Maíra (Brasiliense), romance fortemente ancorado em sua experiência como etnólogo. Seguiram-se O mulo (Nova Fronteira, 1981), Utopia selvagem (Nova Fronteira, 1982) e Migo (Guanabara, 1988).
Apesar de ter sido reitor, fundador e reformador de universidades, Darcy viveu a maior parte de sua carreira fora de instituições universitárias brasileiras. Porém jamais deixou de refletir sobre seu projeto para o ensino superior. Publicou livros como A universidade necessária (Paz e Terra, 1969) e La universidad latinoamericana (Biblioteca, 1971), em que expunha seu projeto baseado em interdisciplinaridade, investimento em pesquisa científica avançada, compromisso social e participação do corpo discente na tomada de decisões.
Brito, da Fiocruz, descreve o projeto da UnB como “centro multidisciplinar de formação acadêmica, preceito hoje ainda considerado de vanguarda no cenário das universidades brasileiras”. De acordo com Pereira da Silva, o projeto de Darcy para as universidades não vingou. Ainda assim, instituições como a Universidade Federal do ABC (UFABC) e a Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila), em Foz do Iguaçu (PR), incorporaram parte de suas ideias. “Essas instituições se inspiraram no projeto da UnB, abortado pelo golpe de 1964”, diz. Entre as inovações estão o ciclo básico no início da graduação e o formato de institutos interdisciplinares, em vez de departamentos dedicados a uma disciplina clássica.
Como vice-governador do Rio, entre 1983 e 1987, além dos Ciep projetou a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), sediada em Campos dos Goytacazes, que seria fundada em 1991. Nesse mesmo ano, foi eleito senador pelo PDT, cargo que ocupou até sua morte. Darcy Ribeiro foi casado com a antropóloga Berta Gleizer Ribeiro (1924-1997) entre 1948 e 1975 e com a designer Claudia Zarvos de 1978 a 1990.
AntropologiaEducaçãoPol. PúblicasSociologia Edição 320 out. 2022
Artigos científicos
BRITO, C. A. G. de. Integração não significa assimilação. O estudo de Darcy Ribeiro para a Unesco na década de 1950. Acervo. v. 34, n. 2. 2021.
MARTINAZZO, C. J. et al. A atualidade do diagnóstico e da crítica de Darcy Ribeiro (1922-1997) à educação brasileira. Cadernos de História da Educação. v. 19, n. 2. 2020.
MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. e ROMERA JR., E. Revista Interinstitucional Artes de Educar. v. 3, n. 2. 2017.
MÜLLER, H. D. C. M. A universidade necessária: Desenvolvimento nacional e produção científica. Rebela. v. 10, n. 1. 2020.
OLIVEIRA, J. P. Proteger os índios e descolonizar a pesquisa: Darcy Ribeiro como antropólogo. Revista Mundaú. n. 8. 2020.
Livro
KOZEL, A. e PEREIRA DA SILVA, F. (orgs.). Os futuros de Darcy Ribeiro. São Paulo: Elefante, 2022.
Fonte: https://revistapesquisa.fapesp.br/a-chama-da-utopia/?utm_source=newsletter&utm_medium=email
Nenhum comentário:
Postar um comentário