Por Antônio Goulart*
Quintana na praça dos livros, em foto de 1983Valdir Friolin / Agencia RBS
Jornalista organizou perguntas e respostas a partir de depoimentos e escritos de Quintana colhidos em livros, poemas e publicações na imprensa
O nosso maior e mais querido poeta, Mario Quintana, viu nascer, em 1955, a Feira do Livro de Porto Alegre. Trinta anos depois, em 1985, chegou a ser eleito patrono do evento. Ao longo de décadas, foi presença assídua entre as barracas da Praça da Alfândega, onde costumava ser assediado para entrevistas e autógrafos.
O poeta faleceu em 5 de maio de 1994. Sua memória, porém, permanece intocada naquele recinto, materializada no bronze em que aparece ao lado do amigo Carlos Drummond de Andrade.
Passados 28 anos, numa iniciativa da Associação Riograndense de Imprensa, Quintana retorna ao palco da Feira do Livro através desta entrevista póstuma, com respostas extraídas de sua vasta obra poética e de uma entrevista (confira, ao final, as fontes de todas as frases do poeta).
O senhor nasceu no Alegrete, no dia 30 de julho de 1906. Confere?
No calendário chinês, sou cavalo; no ocidental, leão e, no
asteca, chuva. Nasci prematuramente e fazia um grau abaixo de zero. Eram
oito horas da noite quando meu pai chamou minha irmã e meu irmão para
dizer que eu havia nascido. Eles pediram quatro vinténs para comprar
rapadura. Foram ao mercado da esquina, que estava quase fechando. Por
isso souberam da hora. Quer dizer, eu fui saudado com duas rapaduras de
quatro vinténs.
Que lembranças guarda da infância?
Quando guri, eu tinha de me calar à mesa: só as pessoas grandes
falavam. Agora, depois de adulto, tenho de ficar calado para as
crianças falarem.
Como foram seus primeiros anos escolares?
No Colégio Militar, só estudava Português, Francês e História. O
resto absolutamente não me interessava. Era sempre reprovado em
Matemática porque só assinava as provas. Afinal de contas, o que eu
tinha de ver com a raiz quadrada e outras bobagens? E a raiz cúbica,
então? O estudo da álgebra, sim, é interessante. A gente lida com
letrinhas.
O senhor chegou a trabalhar como jornalista?
O jornalismo me permitiu entrar em contato com este mundo, e a poesia,
com outros. Trabalhei no Estado do Rio Grande, de Raul Pilla. Foi o
maior patrão que eu tive. Traduzia telegramas e fazia uma seção
intitulada Jornal dos Jornais. Lia todos os jornais do Rio, de São Paulo
e outros de Porto Alegre
e fazia um resumo. Era bem interessante, mas tinha que contar as letras
para fazer o título e subtítulo. Eu achava isso muito chato. Então,
resolvi fazer as coisas ritmadas. Cheguei a fazer um título de três
colunas: no alto, um alexandrino; abaixo, um decassílabo e, depois, um
setissílabo. Ficou bonito, muito bonito. Mas, no outro dia, o Raul Pilla
veio perguntar quem tinha feito aquilo. “Fui eu, doutor.” “Pois olha,
seu moço, esse título está em total desacordo com os meus editoriais.
Por que o senhor não lê o Estado do Rio Grande?” Eu não lia mesmo.
Afinal, trabalhava nele.
Quais são suas preferências, em geral?
Sempre gostei de cidades pequenas, paisagens, ruas, coisas
comuns da vida de toda gente: namorados, amantes, poemas de amor. Não
quer dizer que eles sejam para alguém em especial. As pessoas insistem
em saber para quem são os poemas de amor. Não são para ninguém. A gente
ama no ar. Eu gosto é das coisas. As coisas, sim!... As pessoas
atrapalham. Estão em toda parte.
E de Porto Alegre, onde o senhor viveu por tantos anos, que lembranças guarda?
Sinto uma dor infinita das ruas de Porto Alegre por onde jamais passarei.
Como o senhor encara a vida?
Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada.
E a fama atrapalha?
A fama é uma ambígua mescla de gostosura e chatice.
O senhor pratica algum tipo de esporte?
O único esporte que pratico é a luta livre com o meu anjo da guarda.
Como é ser poeta?
Poeta é o que encontra uma moedinha perdida, aquele que
empresta palavras loucas à voz dispersa do vento. Ao poeta é dado por
vezes fechar os olhos para ver as imagens que guarda dentro de si e
reconstruí-las no poema. Sonhar é acordar-se para dentro.
Em
1967, o senhor foi agraciado pela Câmara de Vereadores com o título de
Cidadão Honorário de Porto Alegre. Lembra a frase que marcou seu
discurso de agradecimento?
Antes, ser poeta era um agravante. Depois, passou a ser uma atenuante. Vejo agora que ser poeta é uma credencial.
O senhor costuma participar de reuniões sociais?
O mais trágico dessas reuniões sociais é que elas são compostas unicamente de terceiros.
Como classifica os livros?
Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.
Tem muitos amigos?
Amigo é a criatura que escuta todas as nossas coisas sem aquela cara que parece estar dizendo: “E eu com isso?”.
Por que preferiu não deixar filhos?
Os filhos são um subproduto do amor.
Que resposta dá àqueles que atrapalham a sua vida?
Todos esses que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão... Eu passarinho.
Detesta alguma coisa, assim reservadamente?
Não gosto de estar dormindo nem de estar morto perto de ninguém.
Alguma coisa lhe chamou a atenção na sua juventude?
Quando completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me
escreveu uma carta, muito, muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca
fiquei tão impressionado na minha vida.
Aprecia o Carnaval?
Não gosto do Carnaval porque parece filme histórico italiano.
Costuma ser bem compreendido pelos seus leitores?
Quando alguém pergunta a um autor o que ele quis dizer é porque um dos dois é burro.
O senhor vê qualidade no que se escreve hoje?
Uma página em branco é a virgindade mais desamparada que existe. Só por isso é que abusam tanto dela, que fazem tudo dela...
O senhor costuma reler o que escreve?
Nunca me releio. Tenho um medo enorme de me influenciar. É
verdadeiramente catastrófico quando um autor se transforma no seu
discípulo.
Tem leitores fiéis, que sempre vão atrás de seus livros?
Às vezes eu pesco um leitor. Outras vezes o leitor me pesca. Entre uma coisa e outra, as águas vão passando.
O senhor trata da mesma forma todas as pessoas que o procuram?
A indiferença é a mais refinada forma de polidez.
É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez.
Que conselho dá a um poeta iniciante?
É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez.
Sua opinião sobre os críticos literários?
Nunca me acertei bem com os padres, os críticos e os canudinhos
de refresco. O crítico é um camarada que contorna uma tapeçaria e vai
olhá-la pelo lado avesso.
O livro é uma boa companhia?
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
O senhor acredita em tudo o que escreve?
Se eu fosse acreditar mesmo em tudo o que penso, ficaria louco.
O que recomenda a quem aprecia a bebida?
Quem bebe por desgosto é um cretino: só se deve beber por gosto.
O que recomenda aos chamados formadores de opinião?
Quando dês opinião, nunca deixes de escrever a data.
O senhor é do tempo dos antigos relógios de parede. Guarda alguma lembrança deles?
O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família.
Como o poeta está encarando a velhice? Estou nessa idade em que o juiz consulta o relógio e as arquibancadas já vão se esvaziando.
O senhor já foi homenageado como estátua. Como se sente?
O que há de mais triste em virar estátua é que a gente não pode coçar-se.
Como encara os chatos?
Há duas espécies de chatos: os chatos propriamente ditos e os amigos, que são os nossos chatos prediletos.
O que pensa da preguiça?
A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda.
Como guardar segredo?
Não te abras com teu amigo. Que ele um outro amigo tem. E o amigo do teu amigo possui amigos também.
O senhor acredita em Deus?
Se eu acredito em Deus? Mas que valor poderia ter minha
resposta, afirmativa ou não? O que importa é saber se Deus acredita em
mim.
Como define os analfabetos?
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem.
O que pensa do autodidata?
O autodidata é um ignorante por conta própria.
Vale a pena viver – nem que seja para dizer que não vale a pena.
Acha que vale a pena viver?
Vale a pena viver – nem que seja para dizer que não vale a pena.
A esta altura da vida, como é o seu começo de cada dia?
Quando abro cada manhã a janela do meu quarto, é como se abrisse o mesmo livro, numa página nova.
O que sente quando olha para algum velho retrato?
Eis que descubro um retrato meu, aos 10 anos. Escondo, súbito, o
retrato. Sei lá o que estará pensando de mim aquele guri! A recordação é
uma cadeira de balanço embalando sozinha.
Para finalizar, poeta. Já tinha passado pela sua cabeça que um dia iria dar uma entrevista póstuma?
Por vezes, quando estou escrevendo estes cadernos (Caderno H), tenho um medo idiota de que saiam póstumos. Mas haverá coisa escrita que não seja póstuma? Tudo que sai impresso é epitáfio.
Fontes das respostas: “Caderno H”, “Sapato Florido”, “Apontamentos de História Sobrenatural”, “A Vaca e o Hipogrifo”, “Da Preguiça como Método de Trabalho”, “Porta Giratória”, “A Cor do Invisível”, Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo e “Quintana, Poeta” (perfil da série “Autores Gaúchos”, IEL, l988).
* Jornalista, escritor, diretor da Associação Riograndense de Imprensa (ARI)
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