Fabrício Carpineja*
Cinquenta anos é quando os ouvidos nascem
Completo meio século neste dia 23. Quem é de fora vai se preocupar com a minha aparência: dirá que nem pareço ter essa idade. Quem é íntimo vai se interessar pela minha essência: dirá que justifico a minha idade.
O que muda é que, aos 50, passamos para o outro lado do balcão. Não somos mais servidos, começamos a nos servir, a nos atender, distanciando-nos de qualquer dependência.
Não vamos mais esperar que alguém faça o que desejamos. Dispensamos a telepatia, a idealização, a necessidade das surpresas. Antes cobrávamos amor, a partir de agora nos resolvemos com o autocuidado.
Você transforma a sua existência em seu próprio negócio. Não vai trabalhar para mais ninguém. Pode até falir, mas é senhor dos seus horários. Aprendeu a dizer não a compromissos suspeitos e constrangedores. Para sair de casa, tem que valer realmente a pena.
Não pede aprovação para viajar, para sumir, para enlouquecer, para errar, para amar.
Não se assusta com as suas tristezas, até acha agradável um dia de chuva para organizar as emoções. Não é insaciável com as alegrias e com o sol, conhece o momento de se retirar antes da insolação e deixar a saudade chegar.
Nada é tão grave que não possa ser consertado, nada é tão lindo que não possa ser esquecido. Você percebe que não é tudo o que imaginava a seu respeito, mas também não é tão pouco quanto o que os outros dão por você.
Não tem interesse em promover uma grande festa de aniversário, com o único objetivo de agradar aos amigos. Na verdade, você observa, de modo retroativo, que jamais conseguia curtir as suas comemorações, tão focado em receber as visitas e ser simpático, só limpando a bagunça ou abastecendo copos e pratos.
Hoje privilegia pequenas reuniões com convidados escolhidos a dedo, que não se incomodarão quando quiser sair de cena.
É a serenidade vindo. Você já não se considera invencível, imortal. Admite a ideia de poder morrer a qualquer momento, mas tampouco perdeu a esperança ou está disposto a desistir da sua vida. É uma coragem que vem da aceitação dos limites. É uma limpidez da vontade que não permite mais adiamentos.
Seus filhos estão crescidos, e não é possível mudar radicalmente o jeito como enxergam você. Não cometerá extravagâncias para conquistá-los. Ou foi bom pai pelo conjunto da obra até aqui, ou será um nome na certidão de nascimento deles. Não existem milagres ou repescagens, é o período de colher o que foi plantado.
Se alguém próximo se afasta, você respeita, não força afinidades. Se um desconhecido se aproxima, você acolhe, aproveita melhor os acasos.
Não se aflige à procura de consenso, não mente para atalhar benefícios, não se martiriza buscando uma unanimidade. Não há culpados pelas suas mágoas, restando apenas a responsabilidade de ter vivido. Saiu do rebanho por uma trilha pessoal.
Tolera as divergências porque seu temperamento já se encontra formado. Sabe que seu gênio não é fácil. Não tenta se iludir fingindo que é de trato simples. Melhor a solidão sincera do que a bajulação. Melhor enfrentar a oposição do que não ter opinião nenhuma.
Suas dores são roupas que ficam limpas nas suas gavetas, não são postas em trânsito dentro de malas. Não leva e traz os seus sofrimentos, muito menos os exibe para terceiros.
Aproxima-se emocionalmente de seus velhos, que estão há mais tempo no outro lado do balcão. Finalmente para de julgar seus genitores. Mostra-se livre para a gratidão. Não se compara com eles nem se vangloria por tomar decisões totalmente diferentes das que adotaram em seus caminhos. Entende as suas escolhas, provações, renúncias e sonhos. Ri do que não tem solução e se esforça para escutar mais do que falar.
Cinquenta anos é quando os ouvidos nascem.
* Fabrício Carpi Nejar, ou Fabricio Carpinejar, como passou a assinar a partir de 1998, é um poeta, cronista e jornalista brasileiro.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/carpinejar/noticia/2022/10/o-outro-lado-do-balcao-cl9iv99r00030013puqu26sz5.html 21/10/2022
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