Por Franco Berardi*
Morte de Chaplin e ascensão de Thatcher marcam o fim do “capitalismo cortês”, diz filósofo. Em seu lugar, emergiu sistema caricato e brutal, apoiado na técnica mais opressora. Haverá como vencê-lo? Ou a era da política terá chegado ao fim?
Manhã de início do outono em Bolonha. Ainda se sente o calor do verão. Caminho pelas ruelas do centro histórico da cidade velha, que preserva de forma incomparável os vestígios de um passado medieval. Entre velhas portas de madeira com telas e decorações em ferro fundido, varandas, arcos e galerias intermináveis sobre as quais se erguem edifícios monumentais construídos em tijolo ou pedra, ando pelas ruas estreitas desenhadas para uma vida de antes do automóvel. Até chegar ao apartamento de Franco Berardi (Bolonha, 1949): um prédio estranhamente construído em cima de uma antiga igreja, no lugar do que deveria ser uma tradicional cúpula, ou seja, uma inusitada reformulação arquitetônica que permite fazer todo tipo de brincadeiras e que poderia até funcionar como símbolo da singularidade do pensamento do intelectual italiano. Essa entrevista é o resultado de dois encontros. Bifo Berardi me recebe em seu escritório, repleto de livros, onde conversamos por várias horas.
Claudio Guerrero Valenzuela – Gostaria de começar com uma premissa que vem da poesia, minha área de trabalho criativo e intelectual. O poeta chileno Jorge Teillier, em ensaio intitulado “Sobre o mundo onde vivo de verdade” (1971), destacou que a poesia que chamou de “dos lares” consistia não tanto em uma poesia que transmitia uma nostalgia melancólica e mitologizante do passado, mas que na verdade o que ele fazia era dirigir-se para o porvir: uma “nostalgia sim, mas do futuro, do que não nos aconteceu, mas que deveria acontecer”. Como resultado de suas reflexões sobre o conceito de futurabilidade, e em conexão com as ideias de Mark Fisher sobre a famosa frase de Margaret Thatcher, “Não há alternativa”, segundo a qual não haveria alternativa à implantação do neoliberalismo, gostaria de perguntar como o presente pode ser pensado do ponto de vista do realismo capitalista, onde parece mais fácil pensar no fim do mundo antes do fim do capitalismo, como disse Friedrich Jameson. Como sair da camisa de força do neoliberalismo, que nos prende à ideia de que não há saída?
Bifo Berardi – Na minha percepção, na minha reconstrução da história da modernidade tardia, vejo 1977 como um ano crucial, em que houve uma virada radical na história cultural do Ocidente. Há três ou mais coisas que para mim são relevantes. Uma delas é a morte de Charles Chaplin. Sua morte é o desaparecimento da cortesia, da gentileza, do sentimento ingênuo da modernidade. O homem que viveu a industrialização com um sorriso desaparece. Com ele, metaforicamente, perece o aspecto humano do capitalismo. Ao mesmo tempo, o Partido Conservador de Margaret Thatcher toma o poder, preparando-se para vencer as eleições na Inglaterra. Em uma entrevista de 1981, Thatcher diz uma frase que me parece central: não há nada que possa ser definido como sociedade, existem apenas famílias e indivíduos que competem entre si. Com ela, a humanidade acaba. Não há humanidade como a entendíamos até então. Há uma guerra de todos contra todos. Thatcher descreve a realidade como Charles Darwin, mas ao mesmo tempo esquecendo que a modernidade foi um esforço para suspender uma guerra de todos contra todos. Paradoxalmente, a modernidade importa uma civilização social. Não uma que me interesse, mas que traz valores como a empatia, herança do cristianismo, que mais tarde se expressaria no humanismo europeu, depois no iluminismo e, finalmente, no socialismo. Essa virada termina brutalmente com o surgimento do neoliberalismo.
É o que vivemos hoje?
Não há diferença entre o neoliberalismo thatcherista e o nazismo. [A ideia comum é que] se os fortes vencerem, o conjunto da sociedade se tornará mais forte. É o mesmo ponto de vista do nazismo, que deixa de fora os fracos. Na mesma época, Steve Jobs e Steve Wozniak – especialmente este – conceberam o primeiro computador pessoal sob o lema democrático de que a informação capacita as pessoas, fortalecendo-as politicamente. O de Wozniak é um conceito anárquico, que me parece interessante. Em 1977, também, o então diretor da KGB, Yuri Andropov, escreve uma carta a Leonid Brejnev na qual diz que o Ocidente está vencendo a batalha da informação e que, se não houver progresso nesse campo, seria o fim do regime comunista. Previsão que dez anos depois se tornaria realidade. É o ano, em suma, em que a história progressiva da humanidade atinge um estágio de realização e uma nova força emerge, o neoliberalismo, que, junto com o surgimento de uma cultura diferente em nível tecnológico e antropológico, dará origem a uma nova classe social que antes pertencia, em parte, à classe trabalhadora, mas que terá um novo caráter e que chamei de cognitariado.
Essa nova classe social que surge com as políticas neoliberais, o cognitariado, é a mesma classe homogênea e não politizada da sociedade de consumo de que Pier Paolo Pasolini falou em seus artigos no Corriere della Sera nos anos 1970, reunidos em Escritos corsários (1975)?
Essa visão de Pasolini me parece bastante simplista e populista. É exatamente o oposto do meu pensamento. Pasolini representa uma visão pré-industrial: a verdade e a espontaneidade do camponês, a ingenuidade, a defesa de valores bastante conservadores, algo como um passado genuíno não contaminado. Gosto muito dele como cineasta, mas não como poeta ou ensaísta.
Então, como definir o cognitariado?
O conceito de cognitariado nasceu da leitura de um filósofo alemão pouco conhecido, que morreu muito jovem, Hans Jürgen Krahl. Ele escreveu uma tese sobre o trabalho técnico científico, que li em meados dos anos 1970 junto com meu grupo político. Seu olhar remodela a figura do intelectual. Já não é puro, porque passa a ter relações com o processo de produção, com os salários e a exploração. Ele tem problemas materiais, está envolvido com as condições de produção do seu trabalho. Ele é um sujeito técnico, precário, um tipo de trabalhador que não precisa mais da fábrica. Ele é flexível, pode trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana. Não estabelece uma relação territorial, o que abre ao capital a possibilidade de se libertar da lei, do caráter contratual que caracterizou a forma industrial. O trabalhador cognitivo não tem a força da massificação. É mais forte ao nível da produção, mas politicamente é mais fraco. O que muda radicalmente são as condições de produção. Isso gera consequências na relação com a linguagem, obviamente. Algo que tem sido levado ao extremo hoje.
Em sua juventude, nos anos 1970, você foi um líder estudantil em Bolonha e esteve na fundação de mídias alternativas como a Rádio Alice, a primeira rádio pirata italiana, e a revista A/Traverso. Qual é o papel desempenhado por trabalhadores e estudantes neste momento de mudança radical na história?
Acho que o movimento estudantil e operário dos anos 1970 estava parcialmente ciente do que estava acontecendo naquela época. Mas há mais um elemento: a revista A/Traverso estava ligada à Rádio Alice, o que também foi muito importante para as lutas que estávamos realizando. Em meados dos anos setenta, as radiofrequências que antes eram totalmente controladas foram liberadas e isso permitiu o surgimento de grupos de radialistas anárquicos e intelectuais técnicos, que fundaram a Rádio Alice, da qual fiz parte como membro do grupo editorial, juntamente com semiólogos, filósofos, hippies, militantes radicais, músicos e novos grupos tecnológicos. Formávamos uma espécie de “inteligência científica auto-organizada”. Citando uma frase famosa de Mao, que falava de médicos descalços que andavam em campo, nos referíamos a nós mesmos como “engenheiros descalços”. Nossa ideia era intervir na realidade. Naquela época eu estava tendo aulas em uma escola técnica. Misturávamos professores, trabalhadores, estudantes de arte e música ligados à escola de Umberto Eco, e havia um forte movimento feminista que também explodia nessa época. Essa conjunção de ativismos era um perigo para os grupos de poder, e isso, somado à ação subversiva armada, como a das Brigadas Vermelhas de Milão, gerou um clima muito alvoroçado de protesto e repressão. Tive alguns contatos com as Brigadas Vermelhas, mas não me interessava a forma de violência com que agiam. Eu não concordava com isso. Em Bolonha não havia grupos armados, mas a repressão foi brutal. Em Roma, um estudante morreu nas mãos de grupos fascistas. Em Bolonha, um amigo médico foi assassinado pela polícia. A Rádio Alice convocou uma rebelião geral e 10 mil pessoas saíram às ruas para destruir tudo. Não fomos contra as pessoas, mas contra a propriedade. Como resultado de tudo isso, fiquei preso por um mês.
Como foi a experiência na prisão? Que relação pode ser estabelecida entre prisão e criação intelectual, para além das condições de reclusão?
Fui preso cinco vezes na vida, em momentos diferentes. Em 1969 (três meses), 1972 (seis meses), 1976 (um mês), 1978 (um mês) e 1979, em Paris (15 dias). Em Bolonha, foi replicada nas paredes uma frase que dizia “Bifo livre”. Era como uma piada. Naturalmente, eu li e escrevi muito lá. Paradoxalmente, é uma oportunidade para pensar muito. Descobri a literatura de Borges, de García Márquez. Meu primeiro conhecimento da América Latina foi através dessas leituras na prisão. Leio muita poesia também. Além disso, as condições de confinamento não eram as mesmas de agora. As prisões eram prédios antigos, de 500 anos, no meio da cidade. Uma das prisões em que eu estava ficava a 500 metros da minha casa, dava para ouvir o barulho lá fora, tudo parecia muito próximo. Nada a ver com as prisões especiais de hoje que são construídas longe da cidade e que realmente acentuam o isolamento e buscam quebrar psicologicamente as pessoas.
Em relação à Rádio Alice e A/Traverso, que importância você dá à posse dos meios de produção para a criação artístico-intelectual? Penso, por exemplo, no contexto latino-americano, no quão relevante foi para a criação da revista Amauta, que funcionava como um órgão de vanguarda. E penso, ao mesmo tempo, como no meu país a maioria dos meios de comunicação são propriedade de setores da direita.
Devemos continuar pensando nas condições técnicas de produção para sustentar a emancipação. Criar as condições técnicas para a produção é extremamente importante. Tínhamos um engenheiro na Rádio Alice que se mostrou fundamental. Quando a polícia cortava a nossa rádio, graças a ele pudemos reabri-la rapidamente a cada vez em outro lugar. Isso permitiu sustentar nosso trabalho de criação e reflexão radical, nossa tentativa de transformar completamente a vida cotidiana. Eu tinha sido expulso do Partido Comunista Italiano, tínhamos diferenças, tensões, mas éramos amigos. Com a Rádio Alice nos abrimos aos movimentos de dissidência sexual, às lutas feministas, e toda essa abertura gerou um panorama intelectual que pouco tinha a ver com o passado do movimento operário, era muito mais amplo. A Rádio Alice, portanto, tornou-se um meio de comunicação inesperado que canalizou diversas lutas, que teve contato real com a comunidade. Chegou a ter mais de 30 mil ouvintes. Recebíamos ligações e as pessoas contavam seus problemas. Não havia uma grade programática fechada, era aberta. Havia música, poesia, conversa; tudo o que se quisesse fazer. Foi, portanto, uma experiência de liberdade não mediada por nenhuma força ou interesse concreto ou comercial. Respondendo à sua pergunta, é essencial ter meios de produção, claro. Agora, A/Traverso era uma revista muito mais programática. Víamos o transversalismo como uma forma de multiplicação do significado. Usamos muita ironia, jogos de linguagem, para gerar um efeito não só nos enunciados, mas também nos receptores. Nesse sentido, estávamos mais próximos das influências da semiótica de um Umberto Eco do que do radicalismo milanês de um Toni Negri. Ambas foram experiências coletivas extraordinárias. O rádio era mais espontâneo, a revista mais programática. Mas ambos tinham como objetivo compartilhar comunitariamente. A/Traverso não era uma revista para o povo, era mais para poetas, intelectuais.
Você também participou de um projeto de televisão comunitária, TV Orfeo.
A TV Orfeo foi uma coisa completamente diferente, o que aconteceu bem mais tarde, em 2002. Muitos de nós que criamos a TV Orfeo viemos da Rádio Alice. A internet já existia, o Partido Comunista Italiano praticamente acabou, e uma nova força surgiu, o Partido Democrático de Esquerda, um partido bastante ambíguo em vários aspectos, mas eles me pediram para criar esse experimento e eu assumi de imediato, porque sempre me interessei pelo poder das comunicações. Eu estava voltando de Nova York e Califórnia, e parecia uma boa oportunidade. Nesse momento, Berlusconi assumiu o poder. O caráter de seu governo não poderia ser definido como fascista: havia uma forte marca mafiosa, havia uma influência significativa da direita pós-fascista, mas também havia um caráter anarcocapitalista e barroco que era a marca essencial da cultura berlusconiana. Apesar disso, a cultura da resistência sempre encontra suas formas de expressão. Vimos na criação de uma televisão comunitária a possibilidade de resistir a esse neofascismo e, especificamente, à homogeneização da televisão na era Berlusconi.
Foi assim que um amigo engenheiro nos deu a ideia e nos ajudou a criar esse meio, apenas com uma antena de televisão. É uma coisa muito técnica, mas basicamente o ponto era que, se uma antena pode receber emissões, ela também pode enviá-las. Ele virou a antena e começamos a transmitir. Seu alcance era pequeno, não passava de 500 metros, mas era algo muito interessante. Se conseguíssemos multiplicar a existência de canais de televisão gratuitos, poderíamos cobrir todo o território e de maneira legal. Rapidamente, organizamos um Congresso Nacional de Televisões Livres e 62 equipes se reuniram. Em um ano, já éramos 200 e conseguimos compartilhar ideias, interesses, preocupações. Tratava-se principalmente de canais comunitários de televisão que tinham um campo de atuação limitado, mas muito simbólico, que conseguiram resistir à hegemonia comunicativa do governo. Jovens produtores vieram com seus vídeos e demos espaço para eles divulgarem suas criações. Mas foi meio curto.
Em 2004 surgiu o YouTube e gerou-se outra realidade, uma dispersão que fez com que um meio como a TV Orfeo deixasse de fazer sentido nas condições em que surgiu. A Rádio Alice foi uma experiência tecnicamente eficaz. O efeito da TV Orfeo foi mais simbólico, pois não poderia seguir um caminho técnico.
Voltando ao ano chave, 1977, o que aconteceu a seguir?
Nos mesmos dias, em Londres, no Jubileu da Rainha, os Sex Pistols organizam o caos anarquista no Tâmisa. Eles não tinham horizonte político, sua visão era bastante apocalíptica: não há futuro, diziam. No future. A new wave tinha um pouco disso, mas era mais como Nova York, mais intelectualizada, com grupos como Talking Heads, por exemplo. A new wave em Londres, por outro lado, acabou sendo muito mais superficial, muito mais radicalizada e cética. Há, portanto, uma forte consciência de uma mudança de época, o que chamo de fim da imaginação, fechando o ciclo dos movimentos estudantis dos anos 1960. Nós, é claro, percebíamos isso de maneira parcialmente consciente. Sabíamos apenas que havia uma profunda crise política e social e uma maravilhosa efervescência cultural. Nesse período falávamos muito sobre a permanência do futurismo histórico, por exemplo. Pensávamos que a vanguarda tinha finalmente se tornado algo massivo. O sequestro de Aldo Moro, no entanto, foi uma tragédia que desencadeou uma repressão ainda mais forte, que culminou em 1979 com a prisão de 300 intelectuais em toda a Itália. Como resultado disso, fugi para os Estados Unidos e lá trabalhei como crítico de música, como crítico cultural. E depois disso se instalou uma anestesia generalizada, uma intoxicação em massa alienante, permitindo que a frase No future entrasse no inconsciente coletivo catastrofista.
Quanto tempo dura essa anestesia geral?
Depois disso, nos anos 1990, com a difusão da internet e a utopia comunicativa que ela trouxe, ressurgiu a esperança. Organizei na Itália uma conferência sobre novas tecnologias. As utopias dos anos sessenta foram ressuscitadas sob os beirais da tecnologia. Mas seu voo seria curto. As pontocom e os grupos proletários de engenharia entraram em colapso e as grandes empresas globais assumiram o poder da rede até hoje. Em Gênova [onde em 2001 ocorreu um dos maiores movimentos antiglobalização durante a cúpula do G8], ocorre o fracasso global do projeto “outro mundo é possível”. Gênova foi uma experiência muito traumática, culturalmente chegou-se à ideia de que não há possibilidade de quebrar a rede financeira global. Berlusconi absorveu a energia da mídia e o movimento de massa foi permanentemente reprimido. E para piorar a situação, o ministro do Interior de Berlusconi era um fascista que vinha do partido de Mussolini. Então veio o 11 de Setembro das Torres Gêmeas e o início de uma guerra perpétua, cujos efeitos ainda estamos experimentando hoje.
Que relação você faz com a expressão neoliberal na América Latina? David Harvey falava do caso chileno como um laboratório que possibilitou o estabelecimento de uma hegemonia, que faz parte do DNA dos chilenos. Um modo de vida que muitos de nós acreditávamos que poderia começar a mudar com o estabelecimento de uma nova Constituição.
Tenho uma relação próxima com a América Latina, com amigos brasileiros, argentinos e chilenos, mas não chego a entender completamente o cenário latino-americano. A política continua a desempenhar um papel relevante na América Latina, um papel que na Europa parece um pouco perdido. O “estallido” chileno para mim foi algo extraordinário, me lembrou muito o que acabei de contar sobre Bolonha nos anos setenta. E na época eu pensava que onde tudo começava, tudo poderia acabar; onde a ditadura nazi-liberal começou, ela também pode acabar. Mas a vitória das forças conservadoras me faz pensar como estava errado, que talvez agora não haja saída política para a situação global. Agora, meu esquema teórico é baseado na impotência política, o que não significa que não podemos continuar imaginando outra dimensão, mas de outro corte, não apenas de natureza política. Esse esquema me parece funcionar em todo o mundo, mas a América Latina continua sendo um espaço diferente. Permanece, para mim, um enigma teórico. Talvez seja a última esperança.
No Chile, a ideia de que não há futuro e que não há outra alternativa ao neoliberalismo começou a fazer muito sentido, pelo menos desde os anos 2000 de forma mais generalizada. A revolta de outubro de 2019 trouxe de volta a esperança de que agora poderíamos criar outras formas de vida. Para nós, o sistema de seguridade social europeu, a social-democracia, parecia um mito que finalmente poderíamos acessar para começar a pensar em uma sociedade mais igualitária. Qual é o seu olhar neste momento?
O gesto de escolher [Gabriel] Boric parece um tanto heroico. Você pode ganhar as eleições, pode gerar algumas leis e promover pequenas mudanças, mas ainda não consegue tocar os interesses das grandes corporações econômicas. Isso parece inevitável.
Como você vê a ascensão das expressões neofascistas tanto na Europa quanto na América Latina? Parece uma reação muito forte, montada na valentia, e mesmo raivosa.
Não é novo. Brexit, Trump, Grécia; tudo é expressão do triunfo do capitalismo financeiro. Agiu de tal maneira que permitiu uma forma racionalizada da economia. Isso tem a ver com uma mudança tecno-antropológica de tal complexidade, com uma complexidade tão alta, uma velocidade de circulação da informação tão sofisticada, que não conseguimos processar as mudanças.
Os bots têm mais força que a vontade humana…
Claro, a máquina não tem vontade. Mas ele tem uma força quase irrefreável. Pense no que aconteceu na Grécia há alguns anos. A Grécia como país não existe. Tudo foi vendido. Toda a sua riqueza foi destruída. A eletricidade, os portos, todo o sistema econômico grego foi vendido ao exterior. E os serviços sociais foram esmagados. Os jovens gregos estão emigrando. Todo o país foi esvaziado. Que demonstração mais trágica do que essa?
Como o automatismo financeiro está ligado ao neofascismo?
O mundo como o conhecíamos está desaparecendo. O poder político não pode fazer nada contra algoritmos. Agora, o fascismo como o entendemos hoje não é assim. É outra forma de fascismo. É uma violência, uma agressividade, uma psicopatia agressiva desesperada que destrói a democracia, pois não resolve as condições básicas da vida. Como ela não satisfaz o suficiente, destruímos a democracia. O fascismo do século XX nasceu em uma condição de expansão imperialista e econômica. Era um fascismo dos jovens, de uma pequena burguesia vital, agressiva, exuberante. O fascismo de hoje eu defino como gerontofascismo, porque a possibilidade de expansão acabou, o sentimento principal é de exaustão, de depressão senil. Aqueles que votam pela direita também são jovens, mas poucos; a maioria está na casa dos quarenta, cinquenta ou mais. O fascismo do século XX propôs a colonização da África, agora são os africanos que vêm para a Europa e não o contrário. Não se trata de euforia colonialista, trata-se de medo de invasão. A fala de Giorgia Meloni, entre outras coisas, expressa e canaliza esse medo e ódio.
A revolta no Chile foi uma emergência do caos, uma força que disse “chega de abusos, chega desse modo de vida individualista”. A solução política que poderia ter sido uma nova Constituição acabou sendo uma grande derrota e hoje há um certo desencanto. Não há como voltar atrás?
A loucura pode ser política. Pode ser potência criadora, esperança. Agora, a condição psíquica prevalente foi mais uma vez a depressão. Mas quando falamos da nova geração, aquela que aprendeu mais palavras com uma máquina do que com a voz da mãe, acho que não podemos falar de depressão no mesmo sentido que Mark Fisher falou em The Ghosts of My Life (2013). A depressão da geração Fisher foi efeito da decepção, da queda de um desejo investido na felicidade, na democracia, nos valores progressistas. Agora não há mais uma queda ou uma decepção. Há uma recusa ao desejo, há uma forma de desinvestimento do desejo que não podemos mais definir como depressão. Não é depressão, é deserção, eu acho. Deserção da guerra do trabalho, da competição, do futuro… Deserção do futuro, não depressão. Meu próximo livro, que ainda não foi traduzido para o português, chama-se Deserção. A tese é que as novas gerações nunca investiram seu desejo em uma esperança para o futuro. Eles não têm depressão porque não perderam nada. Eles não foram conectados à realidade. Eles nunca viveram a realidade. Isso me parece uma mudança política radical. A imersão tecnológica está mudando as modalidades da atividade cognitiva e, consequentemente, está mudando as expectativas para o futuro. Por isso, a impotência do poder político é o ponto de partida desta geração. É algo que se traduz mais em buscas de gratificação pessoal e somente os mais conscientes e com mais recursos são capazes de pensar formas de vida comunitária, buscando soluções coletivas para este problema.
O que fica para o resto?
O papel de profeta me assusta. Parece-me que nos últimos 20, 25 anos imaginei um futuro muito sombrio e as previsões se tornaram realidade. Eu decidi parar. O conceito de extinção nunca havia sido pronunciado no campo da política e emergiu fortemente nos últimos anos. Define muito bem o futuro da humanidade após 40 anos de ditadura neoliberal e as últimas décadas de ditadura digital. Essas duas condições eliminaram a possibilidade de transformar politicamente os modos de vida da maioria da população. Perdemos a guerra. A guerra acabou. Não sei se as novas gerações serão capazes de criar novas formas de vida. O fim do futuro, nesse contexto, é uma banalidade. Uma obviedade. Hoje, o senso comum é de que não há futuro.
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Claudio Guerrero Valenzuela é professor na Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Publicou o livro de ensaios Qué será de los niños que fuimos. Imaginarios de infancia en la poesía chilena (2017), bem como vários ensaios, entrevistas e resenhas centradas na poesia contemporânea chilena e latino-americana. É o autor das coleções de poesia Las corrientes luminosas (2020), Código menor (2017), Pequeños migratorios (2014), El libro de las cosas que se ignoran (2002) e El silencio de esta casa (2000).
Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/bifo-o-abismo-raivoso-do-gerontofascismo/
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