Historiadora americana Kristin Du Mez pesquisou os últimos 75 anos da religião
Por Marilia de Camargo Cesar — de São Paulo
12/10/2022 05h09 Atualizado há 2 dias
O que leva os que se classificam como seguidores dos ensinamentos de Jesus a preferirem líderes políticos de comportamento por vezes divergente ao de seu mestre? Que tipo de teologia pode explicar a opção dos fiéis por um Deus guerreiro e militarmente poderoso, heroico e viril, em detrimento da figura mansa e humilde descrita pelos evangelhos no Novo Testamento? Como foi construída essa ideia de um Cristo durão e valente, à la John Wayne, que tantos evangélicos parecem estar seguindo?
A historiadora americana Kristin Kobes Du Mez tenta responder a essas questões em seu livro “Jesus e John Wayne: Como o Evangelho foi cooptado por movimentos culturais e políticos” (trad. Elissamai Bauleo, ed. Thomas Nelson Brasil, 320 págs., R$ 64,90), em que ela usa o ator machão de faroestes americanos como símbolo de virilidade.
Nesta pesquisa ampla sobre os últimos 75 anos do movimento evangélico americano — composto, segundo ela, majoritariamente por brancos nacionalistas de extrema direita —, Du Mez tenta entender como se desenvolveu o que ela chama de “ideologia política cristã militante” que culminou com a eleição de Donald Trump, em 2016, para a Presidência dos EUA pelo Partido Republicano, o homem que iria defender os valores familiares tradicionais contra as investidas da esquerda.
“Os evangélicos buscavam um protetor, um homem agressivo, heroico e viril, alguém que não fosse reprimido pelo politicamente correto ou pelas virtudes femininas, alguém que rompesse com as regras pela causa certa. Por mais que tentassem — e eles tentaram —, nenhum outro candidato se comparava a Donald Trump quando se tratava de ostentar uma masculinidade agressiva e militante. Trump se tornou, nas palavras de seus biógrafos religiosos, ‘o campeão definitivo da luta em prol dos evangélicos’.”
Para Du Mez, as semelhanças entre esse processo de empoderamento político e religioso de Donald Trump com o que aconteceu no Brasil nos últimos quatro anos entre pastores evangélicos e o presidente Jair Bolsonaro (PL) não são casuais. Os Estados Unidos, segundo ela, exportaram a cultura evangélica para o mundo, por meio da distribuição de livros de autores fundamentalistas, música popular cristã com letras triunfalistas, filmes e revistas.
“Os produtos consumidos pelos cristãos modelam a fé que eles professam. Hoje, o significado de alguém ser ‘evangélico conservador’ tem mais a ver com cultura do que com teologia. Tal fator se manifesta prontamente nos heróis que eles celebram”, escreve. Segundo a autora, esses elementos do evangelicalismo americano traíram o verdadeiro cristianismo, ao promover valores como o patriarcado, os governos autoritários, uma política externa agressiva, a intolerância e o racismo.
Nesta entrevista ao Valor, a historiadora afirma que o Brasil hoje é um palco com atores muito semelhantes ao da cena políticorreligiosa americana. “À medida que os evangélicos cresceram em número no Brasil, eles ganharam acesso ao poder político e estão usando uma cartilha que é surpreendentemente semelhante à da direita cristã americana — com campanhas sobre valores familiares, papéis tradicionais de gênero, legislação anti-LGBTQIA+ e políticas de lei e ordem. E, claro, as comparações entre Bolsonaro e Trump são impossíveis de ignorar. Suas dinâmicas são muito semelhantes, assim como as preocupações com o que esse tipo de política cristã significa para o futuro da democracia — em ambos os países.”
Valor: A sra. escreve que hoje, nos EUA, o significado de ser um evangélico conservador tem mais a ver com cultura do que com teologia. E que uma predileção por figuras heroicas másculas, como o general Douglas MacArthur e o ator John Wayne, promove uma ideologia cristã militante desprovida das virtudes cristãs tradicionais, como o amor ao próximo, a humildade e a generosidade. Essa ideologia já impactou outros países?
Kristin Du Mez: Cada país tem seu contexto local, suas tradições e comunidades de fé, mas a influência do evangelicalismo ao estilo americano é acentuada. Quando escrevi “Jesus e John Wayne”, inicialmente pretendia incluir um capítulo sobre o alcance global dessa ideologia. Pesquisei bastante, mas acabei concluindo que esse aspecto era grande demais para caber no livro e meu prazo era curto. Eu condensei a pesquisa em apenas um ou dois parágrafos na conclusão, onde tanto [Vladimir] Putin quanto [Jair] Bolsonaro são mencionados. Quando o livro foi publicado, alcançou uma ampla audiência global, e logo comecei a ouvir de leitores de todo o mundo histórias sobre como o “cristianismo de Jesus e John Wayne” havia sido exportado para seus países. Rádios cristãs, podcasts e televangelismo viajam pelo mundo. Em muitos países, as editoras cristãs estão repletas de obras americanas traduzidas. Além da mídia que é exportada, você tem missionários e todo tipo de organização evangélica de alcance global. Os escritos de John Piper [teólogo e pastor batista americano] chegam às igrejas domésticas na China. As mulheres cristãs no Quênia enfrentam o mesmo tipo de abuso sexual e acobertamento em organizações cristãs naquele país (muitas vezes organizações apoiadas por doadores americanos) que suas contrapartes nos EUA. Ouvi isso de cristãos no Canadá, Austrália, Alemanha, Reino Unido, Holanda, África do Sul e especialmente no Brasil.
Valor: Em que medida acredita que o que acontece no evangelicalismo dos Estados Unidos influencia os evangélicos brasileiros?
Du Mez: A influência cristã americana no Brasil remonta ao século XIX, como o autor João Chaves mostrou tão bem em seu livro “The Global Mission of the Jim Crow South: Southern Baptist Missionaries and the Shaping of Latin American Evangelicalism” (A missão global de Jim Crow South: os missionários batistas do sul e como eles moldaram o o evangelicalismo latino-americano), onde traça como os batistas do sul levaram seu modelo de cristianismo e suas hierarquias raciais para o Brasil e outros países latino-americanos. Mais recentemente, a influência americana é vista não apenas em empreendimentos missionários formais e abertura de igrejas, mas também através do grande número de livros evangélicos americanos que são publicados no Brasil. A maioria destes são livros evangélicos conservadores.
Valor: E qual a influência dessas publicações?
Du Mez: À medida que os evangélicos cresceram em número no Brasil, eles ganharam acesso ao poder político e estão usando uma cartilha que é surpreendentemente semelhante à da direita cristã americana — campanhas sobre valores familiares, papéis tradicionais de gênero, legislação anti-LGBTQIA+ e políticas de lei e ordem. E, claro, as comparações entre Bolsonaro e Trump são impossíveis de ignorar. Suas dinâmicas são muito semelhantes, assim como as preocupações com o que esse tipo de política cristã significa para o futuro da democracia — em ambos os países.
Segundo a autora, alguns ensinamentos, como oferecer a outra face, são descartados como não relevantes para o momento presente
Valor: Esse cristianismo “musculoso” e cheio de testosterona a que a sra. se refere no livro não se assemelha mais à cultura violenta do Império Romano, à qual os primeiros cristãos e o próprio Cristo tanto se opuseram? O que leva tantos cristãos a ignorarem esse componente destoante da fé cristã em sua defesa de políticos com uma retórica mais truculenta? Seria o que a sra. chamou de analfabetismo teológico?
Du Mez: Não sei se se trata de analfabetismo teológico. O que estamos vendo são pessoas lendo a Bíblia através de uma lente ideológica. Eles têm uma teologia operacional, que privilegia, por exemplo, passagens do Apocalipse que retratam Cristo como um guerreiro e que destaca a história de Jesus virando as mesas e expulsando os vendilhões do templo. Mas que desconsidera ou ignora as dezenas de passagens que retratam Cristo como um servo sofredor, que exortam os cristãos a amarem o próximo e os seus inimigos, a oferecerem a outra face e a guardarem suas espadas. Li livros e ouvi sermões que dizem explicitamente — “você não pode ensinar um menino a se tornar um homem ensinando-o a oferecer a outra face”. Esses ensinamentos de Cristo — fundamentais ao Evangelho — são descartados como não relevantes para o momento presente, um momento que é visto como uma batalha contra um inimigo poderoso. A questão é que sempre há um inimigo que justifica a agressão cristã: comunismo, feminismo, humanismo secular, muçulmanos, globalistas, democratas, transgêneros e afins, e esse inimigo sempre pode ser fabricado para se adequar ao momento. Aliás deve ser fabricado para justificar a agressão e consolidar o poder de um líder.
Valor: Essa retórica do medo funcionou na eleição de Donald Trump?
Du Mez: Em 2016, muito se falou sobre como os evangélicos conservadores abraçaram Trump porque estavam com tanto medo — medo de perder sua liberdade religiosa, medo do declínio demográfico, medo do deslocamento cultural — que não tiveram escolha a não ser correr para os braços de um homem forte. Mas, quando olhei para a história, percebi que precisávamos inverter esse script. Na maioria das vezes, os líderes alimentavam ativamente os medos, fabricavam medos e depois prometiam proteção aos seguidores. Quando um líder convence seus seguidores de que eles estão em guerra, ele pode exigir lealdade e sacrifício. Isso atrai dinheiro e aumenta seu poder. Vemos esse padrão repetidamente. Mesmo que a Bíblia diga para o cristão — “não temas” — repetidamente, esse não é o tipo de mensagem que conduz à construção de impérios terrenos. O medo é um motivador poderoso, mas pode rapidamente se transformar em raiva e ódio, especialmente sob a direção de líderes que têm a ganhar com isso.
Valor: Por que razão essa figura de um Deus militarmente poderoso, general de exércitos que sempre derrota seus inimigos, e que é mais atribuída ao Antigo Testamento do que ao Novo, apela tanto à consciência dos evangélicos, tanto aqui como nos EUA? Que tipo de lacuna esse discurso preenche?
Du Mez: De certa forma, essa é uma questão para psicólogos e teólogos. Sou calvinista e, portanto, sempre posso recorrer à natureza humana para responder a esta questão. Minha leitura das Escrituras me diz que os humanos somos propensos ao orgulho e ao egoísmo. O chamado para seguir a Cristo é desafiador e vai contra esse aspecto da nossa natureza. O caminho da cruz é o oposto. Ele abre mão do poder, suporta zombarias e se sacrifica pelos outros. Ele convida seus seguidores para tomarem a sua cruz e a segui-lo. O primeiro será o último. Seu reino não é deste mundo, e ele não era o tipo de messias terreno que muitas pessoas esperavam. Mas aqueles que celebram um Deus guerreiro muitas vezes o fazem porque querem se sentir justos ao perseguir as batalhas de sua própria escolha — aquelas que lhes conferem mais poder e autoridade. Convencendo-se (e tentando convencer os outros) de que são os perseguidos, e não os agressores, invertem o caminho da cruz. Os evangélicos cultivaram esse senso de combate por mais de meio século, essa mentalidade de nós contra eles e a absoluta confiança de que Deus está do lado deles. Essa postura torna muito difícil para eles examinarem suas atitudes e motivações. Qualquer crítica é rapidamente rechaçada como um ataque contra Deus, em vez de uma crítica legítima ou um chamado à responsabilidade.
Valor: No Brasil, têm cada vez mais apelo os pregadores que conclamam seus rebanhos nesta batalha cósmica do bem contra o mal, a fim de angariar votos para determinados candidatos. Ao mesmo tempo, alguns políticos candidatos exibem uma lista de “pecados” e inclusive de condenações na Justiça que os desqualificam moralmente, mas, ao mesmo tempo, parecem não ter nenhum efeito sobre o voto dos evangélicos. Não é incoerência?
Du Mez: É notável, também, como os evangélicos americanos abandonaram a crença de que os candidatos políticos devem viver vidas moralmente corretas. Eles justificam essa aparente hipocrisia insistindo que Deus também pode usar “homens caídos” e que às vezes até prefere fazê-lo. Numa guerra, você prefere ser liderado por um homem espiritualizado ou por alguém que seja implacável no avanço de sua causa? Eles têm optado pelo último. Durante décadas, esses cristãos têm sido avisados de que eles e seus valores estão ameaçados. Nesse quadro, e com o destino do cristianismo supostamente em jogo, tempos desesperados exigem medidas desesperadas e os fins sempre justificam os meios.
Valor: Uma das bem-aventuranças citadas em Mateus 6 fala sobre a recompensa para os “pacificadores”. Por que é tão difícil para as igrejas que defendem essa visão mais reconciliadora e tolerante serem ouvidas? O que está faltando a elas?
Du Mez: Sinceramente, não tenho uma boa resposta para isso, exceto talvez apontar para Mateus 7:14 [Como é estreita a porta, e apertado o caminho que leva à vida! São poucos os que a encontram]. O evangelho de Cristo é uma mensagem radical e até mesmo revolucionária. Se os cristãos vivessem de acordo com os ensinamentos de Cristo, seria, sim, um testemunho radical.
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