Vivemos tempos que põem em suspeita a credibilidade de cenários otimistas
Numa obra interessantíssima, "Seu Rosto Amanhã", na verdade uma trilogia, o grande escritor espanhol recentemente falecido, Javier Marías incluiu uma frase marcante, embora quase uma obviedade: "Um dia, seremos todos substituídos". Sem dúvida, com o passar do tempo, outros virão a ocupar os afetos ou a raiva que despertamos, a se destacar em suas áreas de atividade ou a simplesmente a percorrer as ruas em que hoje caminhamos.
Esta noção de transitoriedade da vida humana e de seus constructos se fortalece com a idade. Sabemos do muito que foi vivido, das aprendizagens, por vezes trágicas, que tivemos, da sensação de inaptidão para lidar com desafios que finalmente superamos e, ao fim e ao cabo, que não somos eternos. "Tempo, tempo, tempo..."
Há, no entanto, uma forte esperança de que a humanidade trilhe um caminho de avanço e aperfeiçoamento, não importa quem sejam os protagonistas, no processo civilizatório. Acreditamos, quiçá ingenuamente, que a barbárie seja progressivamente derrotada. Com isso dói menos a sensação de que falta pouco para partir e que outros completarão nosso legado.
Mas vivemos tempos estranhos, neste bicentenário de nossa Independência, que põem em suspeita a credibilidade de cenários mais otimistas. Seremos substituídos por seres incapazes de empatia, de se colocarem no lugar do outro que sofre, por medo de se sentirem menos viris? Ou por pessoas que só veem sentido na vida se puderem usufruir de um clube de privilégios de que os demais estariam excluídos? Ou por quem é tão dominado pela inveja e pela dor com o sucesso do outro que precisa inventar inverdades para destruí-lo o mais rápido possível, para que ele não seja a denúncia viva da sua mediocridade?
Dostoiévski, numa pequena novela, um ponto de virada na sua produção literária, o "Memórias do Subsolo", registra os pensamentos mesquinhos e angustiados de um destes habitantes do que hoje, metaforicamente, chamamos de "esgoto". O mesmo tema é retomado, na figura de um clérigo inescrupuloso que comete maldades para se vingar do mal que entende que a vida lhe fez, retratado por João Ubaldo Ribeiro em "Diário do Farol".
Estes personagens ficcionais, ao que tudo indica, tomaram corpo e se sentem hoje legitimados para interromper uma jornada lenta que a humanidade vem empreendendo, não sem pequenos retrocessos, mas firme na direção de um mundo mais humano e respeitoso das diferenças, em que o poder encontra limites em instituições sólidas e o direito de causar dor ao próximo não é glorificado.
Não, não quero ser substituída pelos que rejeitam os ainda tímidos avanços que tivemos!
* Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/claudia-costin/2022/10/por-quem-seremos-substituidos-amanha.shtml
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