Luiz Felipe Pondé*
A pluralidade de valores aniquilou a ilusão de que haja, como se diz em filosofia moral, 'o bem' buscado de forma unívoca
As eleições de 2022
nunca vão acabar. O Brasil viverá em agonia política de forma
permanente, inclusive com a religião entrando na luta pelo espaço
político, como a Europa viveu séculos atrás. Religião e ódio sempre
foram parceiros na história. Mesmo que esse ódio seja um ódio
bem-intencionado.
As eleições, cada vez mais, serão como gladiadores numa arena se matando, enquanto o povo berra à sua volta.
Não vou falar de política hoje. Quero chamar a atenção para uma ideia de
um filósofo húngaro-americano, John Kekes, no seu livro "Wisdom"
(sabedoria), sem tradução no Brasil. Para pensar a política hoje, e tudo
mais, faz-se necessário que reconheçamos as condições que a modernidade nos impõe. Quais são essas condições da modernidade?
A modernidade, cantada em prosa e em verso, é um período histórico
—grosso modo, os últimos 300 anos— marcado por uma utopia da vida
racional e científica, da gestão política e social dos problemas do
mundo, da tentativa de superação das clivagens religiosas dentro do
corpo social, da aceleração do tempo nas relações cotidianas devido ao capitalismo e à Revolução Industrial,
do domínio da agenda econômica sobre as outras realidades da vida, da
crença de que somos indivíduos fazendo escolhas, da saturação da
informação nos meios de comunicação —conhecido como "mídias".
Existem também rupturas estéticas que impactam uma elite de ilustrados.
Essas rupturas estéticas só aumentam em impacto quando passam à moda, ao
design industrial e ao consumo.
Falar de condições da modernidade é apontar como ela condiciona nossa
vida. Nossa vida moderna se dá dentro de parâmetros —ou condições— como
os descritos acima. Ninguém escapa desses parâmetros. Você pode se dar
melhor ou pior dentro do jogo determinado por essas regras, parâmetros
ou condições.
Mas há outras. A modernidade gerou uma enorme incerteza na
vida. Gerou também uma enorme pluralidade de valores —não gosto muito
dessa expressão "valores", que é quase tão vazia quanto "energia", mas
vá lá. A pluralidade de valores morais significa que existem tantos
valores positivos e negativos quanto os atores sociais quiserem.
Quase um bazar de valores. Valor hoje é coisa de branding e marketing,
logo, de consumo. A modernidade também gerou uma utopia de que a vida
iria progredir de forma plena —o que não aconteceu, afora os avanços
tecnocientíficos e de gestão que geraram contradições éticas e políticas
enormes. A tal "ambivalência" de Zygmunt Bauman (1925-2017).
A pluralidade de valores aniquilou por completo a ilusão de que exista,
como se diz em filosofia moral, "o bem" a ser buscado de forma unívoca.
"Ética", ainda que tenha se transformado num hit de vendas no mundo
corporativo, está quase lá, em vacuidade, junto com "energia" e
"valores".
Dizer ética hoje é quase dizer nada. Ou é dizer "compliance", que
significa evitar passivos trabalhistas de conduta dos colaboradores que
atrapalham, por consequência, os negócios e o branding das empresas —e
blábláblá.
A pluralidade de valores associada à incerteza —ninguém sabe para onde
vai a política, o mercado, a educação, a ciência, as mídias, todos
atravessados por essa tal pluralidade— gera um mal-estar específico que
nos condiciona de modo disruptivo —isto é, a utopia moderna não se
realizou. Esse condicionamento é ansiogênico, o que é bom negócio para o
mercado da saúde mental. Gera contencioso, o que é bom
para os advogados e os juízes.
Não existe solução para sensação de incerteza moderna. Quem disser o
contrário mente. A revista Foreign Affairs, na sua edição de setembro e
outubro, trata da "era da incerteza" em geopolítica.
Suspeito de que a modernidade seja um surto psicótico do Homo sapiens que
sempre foi monstruosamente contido pelo meio à sua volta e que agora
atingiu um nível de potência ativa nunca visto antes. Somos um trem
desgovernado em aceleração crescente, se deslocando em direção ao nada,
como me disse certa feita o filósofo alemão Peter Sloterdijk, em sua
casa, enquanto fumávamos charutos.
* Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e "Política no Cotidiano". É doutor em filosofia pela USP.
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