Professor de filosofia política da USP lança livro sobre democracia no país à luz dos conceitos de Maquiavel
São Paulo
Vença Lula (PT) ou Jair Bolsonaro (PL), um grande desafio se impõe à política brasileira nos próximos anos. É preciso "recriar um partido democrático de direita", diz Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política da USP e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Esse espaço já foi ocupado pelo PSDB, mas a sigla se enfraqueceu com as derrotas para o PT à Presidência e ampliou sua crise ao se unir a Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, no processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT). Ao agir assim, fortaleceu a onda que levou Bolsonaro ao poder.
Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política da USP e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) - Danilo Verpa/Folhapress
Janine lança "Maquiavel, a Democracia e o Brasil", livro em que analisa como os presidentes do pós-ditadura chegaram ao poder e o que fizeram para mantê-lo à luz de conceitos do clássico "O Príncipe".
Um desses conceitos é a fortuna, associada à sorte, ao acaso e à conjuntura. O outro é a "virtù", que pode ser vista, grosso modo, como o dom para a política. "Não traduzimos para ‘virtude’ para não confundir com o sentido moral, não tem nada a ver com moral. ‘Virtù’ vem da palavra latina 'vir' e quer dizer varão, é quem tem, não apenas força física, mas capacidade de articular suas ações com vista a um determinado fim."
Segundo Janine, "os três vice-presidentes que assumiram o poder nesse período, Sarney, Itamar Franco e Michel Temer, defrontaram-se com muita impopularidade e tiveram uma pequena ‘virtù’, digamos, não de mudar o Brasil, mas de segurar o mandato deles". Em outras palavras, uma "virtù" de reparação de danos.
O pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor de "O Príncipe", em pintura de Sandi di Tito - Reprodução
Dilma, de quem Janine foi ministro da Educação por seis meses, não demonstrou "virtù" suficiente para "manter ao menos um terço de apoio em qualquer das Casas do Congresso, o que teria bastado para impedir seu afastamento". Por outro lado, diz o autor, não faltaram fortuna e "virtù" a FHC e a Lula.
À Folha o professor comenta a eleição de Bolsonaro em 2018, afirma que o país dá "importância desmesurada à corrupção" e critica a "autoinfantilização" do eleitorado brasileiro.
O sr. encerra o primeiro capítulo do seu novo livro com "Maquiavel é uma boa inspiração para quem quer mudar o mundo". Por quê? Porque quando você quer mudar o mundo, tem que tomar o poder, exercê-lo de alguma forma. Alguém que reflete sobre as condições para chegar ao poder é uma inspiração importante, tanto que, séculos depois, o Gramsci [filósofo italiano] comparou "O Príncipe" ao partido revolucionário. Se quer mudar o mundo, é preciso ter projetos de melhorá-lo —supondo que queira mudar para melhorar, tem quem queira mudá-lo para pior. Maquiavel trata bem dos instrumentos para chegar ao poder e mantê-lo.
Mais adiante, ao abordar a realidade brasileira, o sr. escreve que Bolsonaro nunca teria sido eleito sob condições normais. A quais condições está se referindo? Vamos começar em 2013, ano em que as pessoas despertaram para a política. Lembro um dia com três manifestações simultâneas na Paulista: uma contra a alta dos preços, outra pelo assassinato de um menino boliviano e outra de surdos-mudos. O que tinham em comum? A ideia de que, para qualquer situação errada, era bom ir à luta, fazer política.
Como o Brasil tem pouca cultura política e essas manifestações foram sequestradas pela direita e pela extrema direita, o resultado foi que o Brasil não conseguiu amadurecer politicamente. As pessoas que foram às ruas esperavam soluções quase mágicas: vai resolver tudo, de saúde à educação. Houve uma decepção, usada pela direita, que aproveitou a impopularidade de Dilma para promover o impeachment.
Chegou-se a uma situação em que o nosso problema eram os políticos, e isso influenciou as eleições de 2016 e de 2018. João Doria ganhou a disputa para prefeito [2016] e depois para governador [2018] prometendo não ser um político, mas um gestor. Bolsonaro ganhou para presidente porque, além de derrubar o PT, o PSDB havia cometido um suicídio. O espaço propriamente político ficou esvaziado.
Bolsonaro era o personagem adequado para aquele momento porque não estava vinculado a nenhum grupo político de maneira evidente, a imagem dele era praticamente um vazio, na qual podia se projetar o que se quisesse. E as promessas de atitude violenta têm um certo apelo no Brasil. Uma frase usada sobre o Bolsonaro é que ele tem coragem de dizer alto o que todos nós pensamos baixo. Ou seja, assume todos os preconceitos tradicionais e há quem ache que isso é um ato de coragem.
Em trecho sobre o eleitorado no Brasil, o sr. diz que "os cidadãos se autoinfantilizam. Não têm pejo [vergonha] de admitir que são crianças fáceis de enganar (...) Clamam por quem os tutele. Elegem um tutor e, quando dá errado, pedem socorro a outro, geralmente pior". Qual é a saída? É preciso educação política, algo que não se aprende apenas na escola. Aprende-se em mobilizações, em ações. Moro no bairro da Aclimação, em São Paulo. Em época de eleição, um vereador coloca faixas dizendo: "Vereador Fulano de Tal conseguiu tais coisas na prefeitura para a Aclimação". Algumas pessoas no bairro acham que ele conseguiu asfalto para determinada rua, entre outras coisas.
Ao pensar que é ele quem vai resolver, os cidadãos se infantilizam e terceirizam o papel político. Se, em vez disso, atuarem juntos, defendendo uma causa, eles se tornam mais fortes —essa é a melhor forma de educação política que existe. A imprensa pode contribuir para a educação política ou prejudicá-la. Em 2018, por exemplo, a pauta para os candidatos nas entrevistas era quase sempre os escândalos. Dá-se no Brasil uma importância desmesurada à corrupção. Para muita gente, é como se fosse o único problema.
Vamos pegar o sujeito que devolveu R$ 100 milhões para a Petrobras. Esse valor dá talvez um dia de merenda escolar no Brasil, talvez nem isso. Não é esse dinheiro que vai resolver os problemas do país, mas é muito forte essa convicção, que dispensa as pessoas de pensar [de forma mais complexa].
Se quer mudar o mundo, é preciso ter metas, projetos de melhorá-lo –supondo que queira mudar para melhor, tem quem queira mudá-lo para pior. Maquiavel trata muito bem dos instrumentos para chegar ao poder e para mantê-lo
Renato Janine Ribeiro em entrevista sobre seu novo livro, "Maquiavel, a Democracia e o Brasil"
A imprensa erra ao dar muito destaque aos escândalos de corrupção, é isso? Erra porque coloca todos no mesmo saco, e a tendência é que se passe a dizer que todo político é ruim. Converse com quem acha que todo político é ruim e pergunte em quem ele vota para deputado, senador… Vai ser no pior nome possível, eles têm um faro fantástico. Quem repudia a política tem muito talento para votar pessimamente.
No livro, o sr. aproxima Bolsonaro de Jânio Quadros e Collor, dizendo que os três fazem "farto uso dos páthos". Páthos é de onde vem a palavra paixão, que tem dois significados: um tipo de sentimento amoroso muito intenso ou aquilo que caracteriza passividade. Como sentimento afetivo, intenso, paixão se opõe à razão. E como passividade, ela se opõe à ação. O que acontece? Há nomes muito bons para mexer com páthos dos outros, com a sensação de que as pessoas precisam de um salvador.
Essa ideia de passividade, tingida de uma fortíssima emoção, pega os sentidos de páthos e abre espaço a soluções não racionais, nas quais as pessoas fiquem passivas, esperando que a salvação venha de fora. Jânio foi eleito como um salvador, sem compromisso com ninguém. Dizia que o grande problema do Brasil era a corrupção. Collor, que ficou conhecido como "caçador de marajás", retomou fortemente o tema da corrupção. E Bolsonaro também, além da degradação dos costumes.
O sr. diz que o país se dividiu em três blocos políticos principais depois de 2018: a extrema direita, com Bolsonaro à frente; a direita, simbolizada pelo PSDB ou pelo que restou dele; e a centro-esquerda. Considerando os resultados do 1º turno, como esses blocos tendem a se organizar? Além de restabelecer a democracia —não defender, e sim restabelecer a democracia, porque 2018 foi uma eleição de fraudes e muita mentira—, um grande desafio para o futuro é recriar um partido democrático de direita, que seja comprometido com os direitos humanos e com a disputa eleitoral. Talvez a Simone Tebet (MDB) seja uma possibilidade nessa direção. A campanha dela foi bem feita, ela se saiu bem.
Tivemos um espaço democrático de direita com o PSDB. O partido havia surgido com uma mensagem mais centrista, até um pouco de centro-esquerda, mas aliou-se à direita, aproximou-se do então PFL. Perdeu quatro eleições presidenciais para o PT, o que o deixou desarticulado, embora continuasse fazendo governadores em estados importantes. Havia até um equilíbrio razoável: o PT não ganhava nos estados, o PSDB comandava os principais estados. No entanto, o PSDB decidiu namorar o golpe, e o Aécio Neves fez o quê? Subordinou a extrema direita e o Eduardo Cunha, e outras lideranças do PSDB não souberam ou não quiseram dar um limite. O partido não quis esperar a eleição de 2018, o que foi trágico.
Veja o brexit [aprovado em 2016], no Reino Unido. Causou espanto, muitos quiseram um novo plebiscito, mas o entendimento final foi: "O eleitor votou, tá votado". Não houve essa característica brasileira do "votei mal, alguém me salve, vamos fazer um impeachment". Também precisamos entender —e essa é uma crítica aos jornais em geral— que Bolsonaro não é direita, é extrema direita. Direita é Angela Merkel [primeira-ministra da Alemanha de 2005 a 2021], e Merkel e Bolsonaro não têm nada em comum.
A direita brasileira murchou extraordinariamente. Então uma parte da direita se aliou à extrema direita, sem muito pudor. Veja que no 2º turno o governador de SP [Rodrigo Garcia, do PSDB] foi direto para a extrema direita, sem impor condição. Isso, para o futuro, é serrar o galho em que se está sentado.
“As pessoas que foram para a rua [em 2013] esperavam soluções rápidas, quase mágicas: vai resolver tudo, de saúde à educação, todas as coisas vão ficar boas. Houve uma decepção, usada pela direita, que aproveitou a impopularidade da presidente Dilma para promover o impeachment dela”
Renato Janine Ribeiroem entrevista sobre seu novo livro, "Maquiavel, a Democracia e o Brasil"
Essa é mais uma campanha em que os temas ligados à ciência e à pesquisa parecem deixados de lado. Como presidente da SBPC, o sr. concorda? Convidamos os três candidatos que tinham maior intenção de votos para a reunião anual da SBPC em Brasília, em julho. Na ocasião, eram Lula, Bolsonaro e Ciro Gomes (PDT). Ciro respondeu prontamente, Lula demorou um pouco, Bolsonaro só declarou que não iria no penúltimo dia de reunião, depois que Lula tinha ido e quando nem havia mais grade horária. Creio que essa foi uma resposta, sabe? Uma diferença entre os três candidatos. Não convidamos a Simone porque tínhamos espaço para três, e ela estava em quarto. Enfim, acredito que ela também teria estado ao lado da ciência. Temos algumas declarações dos candidatos em favor da ciência, mas não de Bolsonaro.
Raio-X | Renato Janine Ribeiro
Professor titular de ética e filosofia política da USP e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Foi ministro da Educação no governo Dilma Rousseff em 2015. Entre seus principais livros estão "A Sociedade contra o Social: o Alto Custo da Vida Pública no Brasil" (2000, ed. Companhia das Letras, prêmio Jabuti), "A Pátria Educadora em Colapso" (2018, ed. Três Estrelas) e "Duas Ideias Filosóficas e a Pandemia" (2021, ed. Estação Liberdade).
Maquiavel, a Democracia e o Brasil
- Preço R$ 52
- Autor Renato Janine Ribeiro
- Editora Estação Liberdade e Edições Sesc (160 págs.)
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