1.
Apetecia-me começar este texto sobre o último filme de Bergman
comentando uma frase de Liv Ullmann que li algures: "Filmes e pessoas
não envelhecem da mesma maneira." É tão certo. Mas, como os críticos
portugueses acentuam, quase invariavelmente, o retorno do mesmo Bergman
como um regresso da casa dos mortos (alguém que já tinha uma lápide em
cima e vibrante elogio fúnebre e que, de repente, reapareceu algo
obscenamente, quebrando a lousa por sua própria mão), reprimo o
apetecimento. Se há coisa que me apetece ainda menos é entrar em
polémicas, ao falar de um dos filmes mais desmedidamente belos alguma
fez feitos. O filme mais intenso, o filme mais suave, dessa intensidade e
dessa suavidade a que Julia Dufvenius (uma das muitas imensas surpresas
de "Saraband") se refere, quando, no princípio do seu primeiro diálogo
(ou monólogo) com Liv Ullmann, lhe fala do que o pai lhe exige para
interpretar a sonata op. 25 de Hindemith (Cena 2). Deixo, pois, essa
conversa de tempos e de velhos, para apenas reter dela o que na cena 9
Liv Ullmann diz a Erland Josephson, quando o compara a um personagem de
um filme antigo. Erland Josephson reage à notícia da tentativa de
suicídio do filho (Börje Ahlstedt, que em tempos foi o tio Carl de
"Fanny e Alexandre") com comentários de uma maldade desmedida. Desse
filho que agoniza no hospital, após tomar todos os comprimidos que tinha
e não tinha (onde é que eu já ouvi isto?), cortar os pulsos e a
garganta, não crê na morte. "Quem falhou tudo na vida, até no suicídio
vai certamente falhar." Ela não o reconhece em tamanha crueldade. E usa
então a comparação citada. Em que filme estaria ela a pensar? É bem
possível que num filme de Bergman, onde o Deus Aranha teceu fios
equivalentemente perversos. Mas se tudo neste filme de Bergman reenvia a
outros filmes de Bergman (quase se poderia citar a filmografia
completa), nenhum filme me pareceu menos um filme antigo, e obviamente
não estou a pensar no digital HD que não menosprezo mas também não
sobrevalorizo. Há muitos anos que não via um filme tão novo, um desses
filmes que parece reinventar tudo e onde tudo parece acontecer pela
primeira vez. Deixem-me apenas que vos diga que não percebo que se fale
de um silêncio quebrado, 21 anos depois da estreia de "Fanny e
Alexandre". É verdade que Bergman disse, à época (1982), que não
voltaria a filmar. Já o tinha dito antes, muitas vezes, e quebrou a
promessa. Como a quebrou, em 1983, com "Depois do Ensaio" e com "O Rosto
de Karin"; em 1986, com "Os Dois Bem-Aventurados", e com o documentário
sobre "Fanny e Alexandre"; em 1997, com "Na Presença de um Palhaço"; em
2000, com "Os Construtores de Imagens". Foram filmes para a televisão e
não para o cinema? Mas não foi esse também o caso de quase todas as
suas obras desde "Lágrimas e Suspiros", em 1972? Não foi esse o caso,
nomeadamente, de "Cenas da Vida Conjugal", de que alegadamente
"Saraband" seria a continuação? Bergman que o disse também o desdisse e
não bastam nomes idênticos para idênticos atores (Liv Ullmann/Marianne,
Erland Josephson/Johan) para concluir por essa solução (as filhas de
então não se chamavam Sara e Martha, como agora se chamam). Essa questão
é irrelevante, como é irrelevante o tempo do pousio, se acaso o foi.
Prefiro passar à nova música.
2.
É verdade que nem sequer o é. O lugar central ocupado pelo quarto
andamento da quinta "Suite para Violoncelo Solo", de Bach, já existira
em "Lágrimas e Suspiros", para não falar da omnipresença da segunda
suite na chamada "trilogia de Deus". Mas, desta vez, em que Bach não
está sozinho e traz consigo Bruckner e Brahms, Alban Berg e Hindemith,
"Saraband" é título e título de uma obra a que Bergman chamou "um
concerto grosso para quatro instrumentos". Sarabanda - Concerto grosso.
Andamos pelo barroco, quando a dança perdeu as conotações lascivas que
levaram à sua proibição na Espanha do século XVI, para se tornar uma
vagarosa e solene dança processional. No filme, conserva-se a lascívia
(discretíssima, mas perturbantíssima, na relação incestuosa entre Börje
Ahlstedt - Henrik, o filho de Erland Josephson - e Julia Dufvenius -
Karin, a filha dele - com quem o pai partilha a cama e a quem beija
sofregamente na boca. E sem querer insistir (até porque Bergman só é
elíptico quando quer), para mim um exemplo fulgurante de imagem lasciva é
aquele plano sublime (só possível graças à imagem digital) em que, no
fim da Cena 6, Karin se vê sozinha no ecrã todo branco, com o violoncelo
entre as pernas, ponto luminoso perdido na distância, parecendo surgida
de um filme de Michael Powell.
Sexta cena. Sex. Posso bem estar a
delirar, mas essa cena batizada "A Proposta", passada entre um avô de 86
anos (a propósito, Erland Josephson tinha 80 à data da rodagem, 86 era a
idade de Bergman) e uma neta de 19, é, sem dúvida, a mais erótica do
filme. Toda vestida de encarnado (da única vez que se veste assim,
roubando a cor a Liv Ullmann) cercada pelos sons altíssimos da 9ª de
Bruckner, Karin, antes de entrar no escritório do avô, controla
cuidadosamente a aparência e vestes, e avança depois, sem que ele a
ouça, até o despertar com um beijo e uma vénia. O avô lê-lhe então a
carta da proposta (o convite do maestro russo para uma carreira de
solista) e oferece-se para lhe pagar os estudos e o violoncelo digno de
um Guarnerius. Como sempre, é mais um monólogo do que um diálogo e pouco
ou nada Karin responde à tentação altíssima. O avô despede-a, após a
conversa sobre Freud e os cigarros, a pretexto de muito cansaço e é
então que Karin tem essa autovisão, essa espécie de dissonância na
composição da sequência, de que outros exemplos sumamente heterodoxos
abundam durante o filme. Mas não me consigo despedir desta música sem
citar outra dessas dissonâncias, a mais brutal porque é a primeira. É a
meio da Cena 2, entre Liv Ullmann e Julia Dufvenius, quando esta conta
àquela a sua violenta cena com o pai. Subitamente, saímos do quadro e
vemos (no que não é um "flash-back") a dita cena intensamente física.
Depois, a rapariga foge de casa, em camisa de noite, percorrendo a
floresta como a virgem da fonte, até entrar na água escura de um pântano
e desaparecer da imagem, sem que a câmara se mexa. Ouvimo-la, então, em
"off", num uivo desmedido, até reaparecer no plano. Jean Michel Frodon,
comentando essa cena, fala de morte e ressurreição. E diz: "Nunca,
talvez, se tenha mostrado esse duplo acontecimento extremo - morte e
ressurreição - de maneira tão poderosa. Nem no cinema, nem no teatro,
nem na pintura." Tem razão.
3.
"Concerto grosso para quatro instrumentos". Atores há cinco, mas quatro
preenchem quase todo o filme. Um prólogo, em epílogo e dez cenas. Mas
nas cenas nunca estão mais do que duas personagens, exceto nas
dissonâncias aludidas. Mas há muitas outras personagens ausentes. E uma
há que, retomando uma designação antiga, eu poderia dizer, sem dizer
nada que não tenha sido já dito e redito, que é a "protagonista ausente"
desta obra. Falo de Anna, a mãe de Karin, a mulher de Henrik, que
morreu de cancro dois anos antes de o filme começar. Dela, temos
recorrentemente, em casa do marido, em casa do sogro, o retrato a preto e
branco. Amou-a o marido, amou-a a filha, amou-a o sogro e não parece
que nenhum deles tenha amado alguma vez mais alguém. Foi o "anjo"
naquele "ninho de víboras"? Tudo e todos parecem dizer que sim, única
presença de amor feita, única presença feita para o amor. Ela só parece
ter estado de lado daquela origem que Erland Josephson misteriosamente
nomeia, quando comenta, na Cena I, a beleza da paisagem que o rodeia: "O
mundo é pleno de belezas. Como deve ser bela a origem delas!" Ela só
parece assemelhar-se ao São João que repousa no colo de Cristo, na ceia
medieval da igreja da cena V e que Liv Ullmann vem ver de perto, no fim
dela, única cena de onde o grande plano esteve ausente. Mas será
verdade? Quando Henrik termina o seu longo monólogo na cama com a filha
(cena 3) vemos-lhe o retrato em grande plano. E há um breve efeito
(outra vez o vídeo), em que os olhos do retrato parecem disparar uma luz
luciferina (um encarnado tão rápido, mas não mo tirem) sobre a filha e o
marido no leito conjugal. Muito depois (cena 7), vem a leitura da carta
que Anna deixou ao marido, sobre a relação dele com a filha. Essa carta
é carta salvadora ou carta de perdição? Pelo menos, a partir dela tudo
se consome. Karin, que resistira à proposta do avô, não resiste ao
convite de Abbado, a sarabanda da Suite não chega a ser tocada, e Henrik
suicida-se sem que a filha o saiba. E é depois (cena IX) que surge a
sequência genial da hora do lobo, em que Erland Josephson, numa
"diarreia de angústia", irrompe pelo quarto de Liv Ullmann, para, nu, se
deitar junto ao corpo também nu da ex-mulher de 63 anos (a propósito, a
idade real de Liv Ullmann à data da rodagem). Parecia que o filme não
podia crescer mais? Mas há ainda o epílogo. Como no prólogo, Liv Ullmann
dirige-se à câmara (dirige-se a nós) e, numa última dissonância,
assistimos ao seu encontro com a filha catatónica, que, por breves
momentos, abre os olhos como que respondendo ao afago da mãe. "E, pela
primeira vez, nas nossas duas vidas, percebi, senti, que tinha tocado na
minha filha. Na minha criança."
O ecrã fundo em negro. O filme acabou.
4.
Eu não consigo acabar sem vos fazer uma pergunta. Alguma vez pensaram
que o grande plano é a única figura da gramática do cinema que só no
cinema existe e que não é concebível em qualquer outra arte? Pintores
pintaram grandes planos, mas o quadro impede-nos de os ver como tal, a
não ser que encostemos a cara à tela, em movimento nosso e não da
pintura. Não é maneira de a ver, não é movimento suposto ao espectador.
Mas
a câmara pode o que o nosso olhar não pode. E a câmara de Bergman pode
mais que qualquer outra câmara, mesmo a de Griffith. Neste filme, vai
ainda mais longe. Ao acercar-se mais e mais dos quatro rostos e das
quatro vozes, para além dos corpos, dá-nos a ver almas. Impossível? Não
para esse génio de todos os possíveis, chamado Ingmar Bergman.
por João Bénard da Costa*
21 de janeiro 2005 in Público
*João Pedro Bénard da Costa foi um professor, gestor cultural, crítico de cinema e ensaísta português.
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/antologia-1365090
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