Luiz Felipe Ponde*
A arena do pensamento público cria valores na mesma medida em que enfrenta seus algozes
"Eu sou um ex-covarde", escreveu Nelson Rodrigues, no "Globo", no dia
18/10/1968. E continua: "... o medo começa nos lares, e dos lares
passa... para as universidades, e destas para as Redações... Sim, os
pais têm medo dos filhos; os mestres, dos alunos".
Sobre Nelson, leia "Inteligência com Dor, Nelson Rodrigues Ensaísta", de
Luís Augusto Fischer (ed. Arquipélago). Grande livro, rodriguiano até a
medula: a inteligência é mesmo uma ferida aberta.
Paulo Francis dizia que um dia o mundo seria tomado pelos comissários do
povo. Chegamos perto disso: os comissários dos ofendidos babam de
vontade de tomar conta do pensamento público, esmagando tudo o que não
concorda com sua autoestima.
Não conseguirão porque o pensamento público é como uma guerra. A arena
do pensamento público cria valores na mesma medida em que enfrenta seus
algozes.
Não ter medo é um tema mais filosófico do que parece. O filósofo alemão
Nietzsche, crítico feroz do cristianismo e da metafísica, era na
realidade um crítico do medo. A chave de sua crítica ao ressentimento é a
identificação do medo como morte do Eros. E Eros é tesão pela vida.
Quando ele diz que o homem do futuro não necessitará de artigos de fé,
ele não pensa apenas na religião, nível menor da sua crítica e onde
muita gente fica, mas sim em artigos de fé menos evidentes como "meu
eu", "meus valores", "minha dignidade", "minha concepção de vida" ou
"meu direito a autoestima".
Enfim, toda essa parafernália brega em moda hoje em dia entre os
puritanos seculares (aqueles que perderam Deus, mas continuam derretendo
de medo dos seus demônios). Escondidos atrás de esquemas para garantir
que seu "eu" não seja inundado pelo pânico da "hostilidade primitiva do
mundo", da qual fala Camus.
Por isso basta falar de figuras malditas que o horror sobe à superfície.
Uma das figuras que mais carrega esse halo de mal é a prostituta, essa
filha da desgraça, como dizia Nelson. Basta mencioná-la e o atávico
horror vem à tona.
E aí..., pânico na bancada da classe média. A classe que se define pelo
medo, principalmente quando assume ares de rigor moral: treme em surtos
de eterno puritanismo.
O problema com a classe média é seu espírito. Diria um marxista blasé
que "espírito" é mero epifenômeno do "bolso", mas, como não sou
marxista, dou o benefício da dúvida para classe média. O espírito da
classe média é um ressentido, por isso teme qualquer abalo em seu mundo
do bem. Para ele, enxergar o mundo de frente é fora do orçamento, como
uma BMW para alguém que ganha salário mínimo.
Mas o que é a prostituta e por que ela é eterna? A prostituta não é
apenas o sexo fácil, é a mulher fácil. É o "lugar" onde o homem descansa
e, por isso, é parte essencial de toda civilização. Por isso é um mito.
Para mim, ver o mito da prostituta nos sonhos femininos mais misteriosos
é um elogio ao Eros da mulher. Enfim, talvez nem todos os homens amem
as prostitutas, só os normais. O amor à promiscuidade confessa é uma
arte rara.
Às vezes, segundo as profissionais do ramo, o consumidor nem quer sexo,
quer uma "namorada" que o ouça e que ele saiba exatamente quanto custa.
Sem ter que pagar pelo "amor" dela (jantares, joias, discussões sobre a
relação, cobranças, desempenho sexual, atenção).
Os homens temem as mulheres, e as prostitutas são aquelas de quem eles
podem ter menos medo porque acham que as tem em suas mãos.
Mas é difícil para muitas mulheres entender isso. Quer ver?
Colaborei com um veículo importante da mídia numa pesquisa sobre garotas
de programa de luxo. Meninas caras, mas nunca tão "caras" quanto
namoradas e esposas de verdade.
O que disse acima aparece na pesquisa: a prostituta é a companheira
fácil, por tempo determinado e custo previamente estabelecido.
Mas o incrível é que, mesmo essas profissionais, quando indagadas se
achariam que seus futuros maridos precisariam de suas ex-colegas um dia,
respondem: "Não, nós seríamos mais do que suficiente para eles".
"Ignorance is bliss." A realidade é mesmo insuportável, e a verdade é uma ferida incurável.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário. Colunista da Folha
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