Arnaldo Jabor*
Imagem Agripino Grieco
Já houve um tempo em que a literatura era importante. As
escolas literárias se digladiavam sobre estilos e temas, em busca de um
sentido maior que nos definisse como país, dentro de um mundo ainda
analógico. Um povo mestiço? Cultura ou barbárie? Civilização nos
trópicos? Dilemas vividos pelos letrados de século passado, preocupados
em fundar a nação brasileira. Roberto Ventura, um intelectual sério que
já não está entre nós, nos mostrou, em seu livro Estilo Tropical,
figuras como Silvio Romero, o crítico arrebatado, em luta contra tudo e
contra todos, que pregava um ideário modernizante, combinando
naturalismo e evolucionismo à causa da República. Brigou com todo o
mundo, com Machado de Assis, José Veríssimo, Araripe Jr. e Joaquim
Nabuco.
Antes havia debates para ver quem tinha razão. Hoje, todos têm razão e
ai daquele que criticar tendências em nome de critérios e paradigmas
seculares da arte. A inteligência foi substituída pela sacralização da
irrelevância massificada; a própria ideia de "estética" é considerada
por muitos como individualismo neoconservador, autoritário, produzindo
parâmetros repressivos. A libertação da tutela dos chamados "maîtres à
penser", dos seres que nos guiavam orgulhosamente para algum Sentido foi
uma coisa boa, mas abriu as portas para um vale-tudo formal que
desqualifica qualquer tentativa de crítica literária, vista como um
ataque contra a liberdade da estupidez.
Claro que é bem-vinda a esfuziante aparição de milhares de criadores,
dos blogueiros dos twiteiros, dos hipertextos da época pós pós; claro
que algum dia isso vai dar em novos valores de ‘qualidade’, de
‘importância’, destilados dos alambiques da internet. Estamos numa fase
da exaltação da ‘quantidade’, como se a profusão de temas e criações
substituíssem a velha categoria da ‘qualidade’. Essa nova era nos
ensinou que não chegaremos a nenhum destino definitivo, mas alguns
parâmetros de valor estético terão de ser recolocados na literatura. Em
geral, as diagnoses sobre as mutações a que assistimos hoje em dia se
dividem ou em lamentos por um passado de ilusões perdidas ou em euforia
por um admirável mundo novo em que todos sejam autores e leitores, nessa
democracia da falta de critérios.
Em teoria, tudo bem, mas ‘ideias’ em poesia e literatura significam na forma.
Por que falo essas coisas graves? Porque outro dia achei na estante
um livro de Agripino Grieco, um dos grandes polemistas do início do
século 20 e demolidor dos burros e farsantes da época. E ele diz, numa
entrevista de 1944: "A obra dos julgadores de livros vale pela forma em
que está vazada, pela ironia, pela irreverência, pelo que possa
representar de negação dos valores oficiais. O que vale é a forma".
E ele acrescenta: "Ai do romance em que o enredo interessa mais que o estilo".
Ou seja, os mistérios do mundo revelados pela grande arte literária
são florações da forma; e é isso que lhes fornece durabilidade,
relevância na observação da vida, sua razão de ser. Grieco era um
intelectual cultíssimo e, assim como Lima Barreto, de certa maneira
"pautou" o Modernismo. Agripino foi um pré-Oswald de Andrade. Grieco
trouxe a espinafração contra a literatice lambida dos doutores
encartolados. Quando li suas tiradas contra as antas da época, entendi a
inteligência como corrosão. Acho que ali comecei a amar Eça de Queirós,
Nelson Rodrigues, Oswald, antes de tê-los lido... Por isso, selecionei
alguns desses lembretes geniais, em que o pré-moderno Grieco cai de
porrete em cima das graves bestas quadradas. Divirtam-se.
"A burrice é contagiosa; o talento não", "Laudelino nunca estava nos
seus melhores dias", "Mil vezes Gilberto Amado deve ter pensado: que
seria do Brasil sem Gilberto Amado", "Menotti del Picchia, parnasiano,
querendo passar por modernista, lembra atrizes, de 70 anos a fazerem de
ingênuas", "Este escritor irá longe! - foi para Montes Claros", "Coelho
Neto não dizia ‘pobreza’; dizia ‘pauperismo’ e era mais preocupado com o
estilo dos móveis que com o estilo de Flaubert", "Fulano cultivava
paradoxos e rabanetes", "Para os ignorantes, o ‘etc...’ é uma
comodidade...", "Olegário Mariano fumava as pontas dos cigarros de
Bilac...", "Silvio e Verissimo insultavam-se mutuamente - e os dois
tinham razão", "Num restaurante da rua São José servem um ‘bacalhau a
Olegário Mariano’. É a imortalidade...", "Raro exemplo de perseverança é
ir até ao fim de um artigo de Aníbal Freire", "Fulano tinha um ego com
elefantíase; sua obra é ilustrada, o autor não", "Seu livro devia ser
encadernado em pele de jumento: coerência com conteúdo", "Em geral a
Academia elege só um animal; agora elegeu dois: Carneiro Leão", "Dele,
só lerei as obras póstumas", "A principal personagem daquele romance era
mesmo o tédio", "A seca é terrível; mas pior é certa literatura
provocada pela seca", "Ele defendia a Polônia nos botequins e esbordoava
a mulher em casa", "Seu estilo tinha a elegância das burguesas
endomingadas - sempre indeciso entre o preciosismo e a vulgaridade",
"Ele inventou que era inventor", "Suas estreias são espetáculos de
despedida; aplaudem porque acabou", "Ele não tem ouvidos, tem orelhas e
dava a impressão de tornar inteligente todos os que se avizinhavam
dele", "Passou a vida correndo atrás de uma ideia, mas não conseguiu
alcançá-la", "Ele é mais mentiroso que elogio de epitáfio", "No dia em
que ele tiver uma ideia, morrerá de apoplexia fulminante", "Era um
deputado conservador. Seu único programa político era conservar sua
cadeira na Câmara".
Agripino era aparentado com minha família. Por isso (e admiração),
fui ao enterro de Agripino. Quando o caixão baixou, um sujeito gordo e
feiíssimo pulou em cima do túmulo e discursou: "Senhores! Ali não jaz um
cadáver; dorme um gênio!"
Saí às gargalhadas, para trás de uma sepultura. Agripino, com
certeza, riu lá embaixo também. Que falta ele faz hoje nos domínios da
e-burrice.
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* Jornalista. Cineasta. Escritor. Cronista.
Fonte: Estadão on line, 27/03/2012
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