Vladimir Safatle*
Imagem do filme: Habemus Papam.
Nanni Moretti é um cineasta que há tempos procura reinventar o cinema de
engajamento político. Seu filme "O Crocodilo" é talvez a melhor
representação da letargia da sociedade italiana diante do fenômeno
Silvio Berlusconi. Agora, com "Habemus Papam", somos apresentados à
história de um cardeal escolhido para se tornar papa, mas que, no
momento de sua consagração, tem um ataque de pânico.
O longa não deve ser visto como uma crítica à igreja, mas como a
metáfora de uma época sem líderes. "Ser papa" é uma nomeação simbólica
que parece pesada demais ao protagonista. Afinal, suas incertezas, sua
nostalgia das escolhas recusadas (como ser ator em vez de cardeal), seu
"deficit de acolhimento" (como lhe diagnostica uma psicanalista),
parecem-lhe colocar muito longe da dignidade simbólica do papado. Ele
decididamente não é a pessoa certa.
No entanto, em uma época na qual toda exigência de superação de limites
psicológicos tende a ser vista como produtora potencial de traumas, em
que a posição de vítima do desamparo parece tocar a todos, o sentimento
de estranhamento profundo em relação a papéis sociais de autoridade
tende a se tornar regra.
Os diagnósticos sociais de crise de legitimidade são tanto uma constante
sociológica como uma fonte de sofrimento psíquico, como o psicanalista
Jacques Lacan compreendeu ao tematizar aquilo que ele chamava de
"declínio da imago paterna".
O recurso à psicanálise é ainda mais correto se lembrarmos que, no
filme, o papa acaba no divã. Ou melhor, ele acaba na impossibilidade de
ir ao divã, já que seu psicanalista (o próprio Moretti) não consegue
sequer iniciar uma sessão. A única sessão que o cardeal fará será com a
ex-mulher de Moretti, também psicanalista, que tem só uma coisa a dizer a
todos os pacientes: seu desamparo infantil precisa ser respeitado.
Mas, caso um trabalho analítico realmente começasse, talvez o cardeal
pudesse descobrir que, ao contrário do que pensava, ele era a única
pessoa realmente adequada para ser papa. Ele era capaz de não calar o
estranhamento diante de seus papéis sociais. Era capaz de suspeitar de
si mesmo, o que lhe abria margens para agir sem certezas, com a
consciência de sua falibilidade.
Só alguém assim pode levar a cabo grandes reformas que duram mais do que
um verão. Há alguns que veriam nisso um sinal de fraqueza. Outros
veriam a verdadeira força de quem tem certeza de que precisa saber, ao
mesmo tempo, agir com o ímpeto da necessidade, mas sem segurança
ontológica alguma.
Ou seja, alguém que, como dizia Lacan, seria capaz de dar aquilo que não
tem. Talvez, no fundo, essa seja uma boa definição do que podemos
esperar de um verdadeiro líder.
---------------------------------------
* Filósofo. Prof. Universtário. Escritor. Colunista da Folha.
Fonte: Folha on line, 27/03/2012
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário