sexta-feira, 30 de março de 2012

Libertinagem em cena


André Luiz Barros *

Reprodução / Reprodução 
 Ilustração de Barbier, de 1934, para o romance "As Ligações Perigosas", de Chordelos de Laclos,
 publicado há 250 anos: levado ao palco na França, história faz sucesso enorme desde janeiro
 
Mesmo em plena crise econômica, cantada em verso e reclamações em Paris e pela França toda, e a poucas semanas de uma eleição disputadíssima, que varia entre o fino "raisonnement" e o bate-boca midiático, a cultura francesa tem conseguido reciclar sua vocação e seu gosto pelo sexo e pela literatura erótica.
O escândalo transatlântico de DSK (Dominique Strauss-Kahn), que continua em cartaz nas TVs, unindo política, economia e alcova - ou seja, Partido Socialista, FMI e saliência -, teve como consequência, entre outras coisas, discussões sobre a ética sexual nas leis e na cama. É o tema de "Une Société de Violeurs?" (Uma sociedade de estupradores?), da jurista Marcela Iacub (Fayard), que fustiga a tendência repressiva e antimasculina de uma legislação cujos meandros não preveem a dissimulação da mulher ou mesmo de testemunhas crianças (em casos de pedofilia).
"Libertarismos" como o de Marcela não bastaram na defesa da libertinagem da 1969, loja situada no 5e arrondissement de Paris, recém-fechada pela Justiça por expor "brinquedos" sexuais a 90 metros de uma escola primária (o permitido são 200 metros). Dizendo-se uma "love-store", reconceitualização da "sex-shop", com "décor" refinado e produtos menos grosseiros, a 1969 não expõe "sextoys" na vitrine. A discussão legal chegou ao dilema: patinhos de banheira que vibram ou "strings" (calcinhas fios-dentais) seriam objetos eróticos ou pornográficos? Advogados da loja alegam serem eróticos e, pior, que a lei não define o que seja o pornô.
A sutileza conceitual e mercadológica não convenceu as cristãs Confédération Nationale des Associations Familiales Catholiques (CNAFC) e Cler Amour et Famille, responsáveis pela ação. Marcela, por sua vez, lançou seu livro como resposta a "Un Troussage de Domestique" (Ed. Syllepse; o título significa "Pegar a doméstica"), coordenado por Christine Delphy, libelo anti-Strauss-Kahn, visto como símbolo da prepotência masculina. Neofeminista, Marcela segue a trilha do filósofo Michel Foucault, que em 1978 debateu intensamente a "lei do pudor", sobre a idade de consentimento ao sexo, pré-história das leis de pedofilia. Na rixa sobre poder sexual, Marcela diz ser cômoda a atitude de vítima das mulheres, além de automistificadora, como se nunca dissimulassem.
Dissimulação, intriga de alcova, manipulação do outro por interesse sexual, jogo de poder e crueldade na cama. Todos esses temas compõem a literatura de libertinagem francesa desde o século XVIII. Uma literatura que volta ao centro da vida cultural no "hexágono" por causa de pelo menos dois fenômenos. Um é a nova febre em torno de Giacomo Casanova, veneziano que escreveu em francês sua longa e célebre (embora pouco lida) autobiografia, de 1789 a 1798. O outro é a peça "Les Liaisons Dangereuses" (As ligações perigosas), sucesso desde janeiro no Théâtre de l'Atelier, em Montmartre, dirigida pelo Valmont da versão cinematográfica de 1988, o ator John Malkovitch.
Com jovens atores desconhecidos e substituindo cartas de papel e tinta por iPads e iPhones - que no entanto, como no romance, são escritos/digitados sobre dorsos de belas mulheres nuas -, a peça é aclamada a cada noite, com o elenco agradecendo mais de cinco vezes. "Surpreendentemente, nada de fundamental mudou na relação homem-mulher desde o século XVIII. Temos outros hábitos, outras mídias, mas, é incrível, o romance não envelheceu", disse o ator, agora diretor. A obra de Choderlos de Laclos, com a famosa guerra entre os libertinos Valmont e marquesa de Mertreuil, completou 250 anos no dia 23.
A provocação fica por conta da escolha da única atriz negra, Jina Djemba, como Madame de Tourvel, vítima de libertinos franceses de pele branca. Num país que sai de 17 anos de direita no poder, 5 de presidência Sarkozy e décadas de discurso do partido ultradireitista Front National, num crescendo de limitação dos direitos de imigrantes e de um nacionalismo que, no caso do FN, inclui até queixas sobre o grande número de jogadores negros na seleção francesa de futebol, entende-se o recado.
O crítico da revista "Nouvel Observateur" ligou teatro e palco político: "Prova flagrante de que o texto de Laclos passa do século de Restif de La Bretonne ao de DSK e de Versalhes ao Carlton de Lille sem nada perder de sua admirável perversidade". Carlton é o hotel onde Strauss-Khan teria participado de orgias.
O caso de Casanova, autor mitificado por séculos que, como o real Sade (1740-1814) e o ficcional Dom Juan, é um dos maiores símbolos da libertinagem masculina no Ocidente, também ajuda a entender a "exceção francesa", cultural, política e moral. A exposição "Casanova: la Passion de la Liberté", na Biblioteca Nacional, mostrou cartas, quadros e roupas de época, lotando por três meses e produzindo um catálogo primoroso (Ed. Seuil).
Hoje o autor ganhou status de grande escritor. "O público notou que ele é um livre-pensador europeu, com horror a dogmas e sistematizações de pensamento. Para tanto, aprendeu várias línguas e viajou como ninguém no século XVIII, a partir da paixão pela literatura, pelo latim, pelo francês e pelas mulheres", diz Michel Delon, professor da Sorbonne IV, especialista em Sade e literatura oitocentista e autor de "Le Principe de Délicatesse" [O princípio de delicadeza - libertinagem e melancolia no séc. XVIII] (A. Michel, 2011), entre muitos outros.
Casanova mergulhou na cultura parisiense - tema do recém-lançado "Mes Apprentissages à Paris" (L'Herne) - e rodou por Inglaterra, Alemanha, Itália, Áustria, Holanda, Boêmia, Provença, Polônia, Rússia e até a atual Turquia (Constantinopla), a partir da rocambolesca fuga da prisão inquisitorial de Veneza, em 1756. Ao contrário de Sade, conseguiu ficar longe de qualquer prisão, inclusive a dos dogmas.
Tal liberdade se manteve à base de viagens e de um desprendimento próximo ao charlatanismo: foi espião diplomático, médico sem habilitação, inventor de loterias, maçom, pseudofilósofo etc. Assim, conheceu reis como Frederico II, da Prússia, filósofos como Rousseau e Voltaire, escritores como Crébillon, provavelmente Da Ponte, o libretista de Mozart etc.
"Esse filho de atores forjou uma pseudonobreza, inventou o sobrenome 'Seingalt' e conseguiu viver como aventureiro aristocrata", conta Delon, autor também de um dos mais de 15 títulos "casanovistas" surgidos recentemente, "Casanova: Histoire de Sa Vie" (Gallimard, 2011). Até o Wikipédia caiu no conto: inclui o falso "Seingalt". E um grande neurobiologista, Jean-Didier Vincent, teve sua análise de Casanova relançada (Gallimard, 2011).
Se hoje se sabe em tempo real o que DSK cometeu, o destino fez que as 3.700 páginas do manuscrito de "Histoire de Ma Vie", a obra-prima de Casanova, se mantivessem em segredo por mais de dois séculos. O desfecho da saga editorial também explica o sucesso atual: só em 2010 a Bibliothèque Nationale comprou, por cerca de € 7 milhões, o manuscrito confiado ao sobrinho em 1798. O texto sobreviveu até a bombardeios na Segunda Guerra.
Com algumas edições nos séculos XIX e XX, a de 1960 ainda trazia trechos infiéis ao original. A de 1993 (Laffont) é a mais fiel, pelo menos antes da aguardada edição Pléiade. Delon, que ajuda na edição, diz que "Les Liaisons Dangereuses" levou séculos para entrar no cânone: "Só em 1968 surgem teses sobre o romance". Como no caso de Sade, que até hoje é contestado (por Eric Marty em "Pourquoi le XXè Siècle A-t-Il Pris Sade au Sérieux? [Por que o século XX levou Sade a sério?], Seuil, 2011) e defendido ("Faut-il Brûler Sade? [É preciso queimar Sade?], de Simone de Beauvoir, 1951), relançado agora pela Gallimard), parece que o destino da libertinagem é ser tão esclarecedora sobre a guerra dos sexos à francesa quanto incômoda a ouvidos que se fecham, às vezes por séculos, aos segredos de alcova.
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*André Luiz Barros é professor da Unifesp e pesquisador da Fapesp
Fonte: Valor Econômico on line, 30/03/2012

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