André Luiz Barros *
Mesmo em plena crise econômica, cantada em verso e reclamações em
Paris e pela França toda, e a poucas semanas de uma eleição
disputadíssima, que varia entre o fino "raisonnement" e o bate-boca
midiático, a cultura francesa tem conseguido reciclar sua vocação e seu
gosto pelo sexo e pela literatura erótica.
O escândalo transatlântico de DSK (Dominique Strauss-Kahn), que
continua em cartaz nas TVs, unindo política, economia e alcova - ou
seja, Partido Socialista, FMI e saliência -, teve como consequência,
entre outras coisas, discussões sobre a ética sexual nas leis e na cama.
É o tema de "Une Société de Violeurs?" (Uma sociedade de
estupradores?), da jurista Marcela Iacub (Fayard), que fustiga a
tendência repressiva e antimasculina de uma legislação cujos meandros
não preveem a dissimulação da mulher ou mesmo de testemunhas crianças
(em casos de pedofilia).
"Libertarismos" como o de Marcela não bastaram na defesa da
libertinagem da 1969, loja situada no 5e arrondissement de Paris,
recém-fechada pela Justiça por expor "brinquedos" sexuais a 90 metros de
uma escola primária (o permitido são 200 metros). Dizendo-se uma
"love-store", reconceitualização da "sex-shop", com "décor" refinado e
produtos menos grosseiros, a 1969 não expõe "sextoys" na vitrine. A
discussão legal chegou ao dilema: patinhos de banheira que vibram ou
"strings" (calcinhas fios-dentais) seriam objetos eróticos ou
pornográficos? Advogados da loja alegam serem eróticos e, pior, que a
lei não define o que seja o pornô.
A sutileza conceitual e mercadológica não convenceu as cristãs
Confédération Nationale des Associations Familiales Catholiques (CNAFC) e
Cler Amour et Famille, responsáveis pela ação. Marcela, por sua vez,
lançou seu livro como resposta a "Un Troussage de Domestique" (Ed.
Syllepse; o título significa "Pegar a doméstica"), coordenado por
Christine Delphy, libelo anti-Strauss-Kahn, visto como símbolo da
prepotência masculina. Neofeminista, Marcela segue a trilha do filósofo
Michel Foucault, que em 1978 debateu intensamente a "lei do pudor",
sobre a idade de consentimento ao sexo, pré-história das leis de
pedofilia. Na rixa sobre poder sexual, Marcela diz ser cômoda a atitude
de vítima das mulheres, além de automistificadora, como se nunca
dissimulassem.
Dissimulação, intriga de alcova, manipulação do outro por interesse
sexual, jogo de poder e crueldade na cama. Todos esses temas compõem a
literatura de libertinagem francesa desde o século XVIII. Uma literatura
que volta ao centro da vida cultural no "hexágono" por causa de pelo
menos dois fenômenos. Um é a nova febre em torno de Giacomo Casanova,
veneziano que escreveu em francês sua longa e célebre (embora pouco
lida) autobiografia, de 1789 a 1798. O outro é a peça "Les Liaisons
Dangereuses" (As ligações perigosas), sucesso desde janeiro no Théâtre
de l'Atelier, em Montmartre, dirigida pelo Valmont da versão
cinematográfica de 1988, o ator John Malkovitch.
Com jovens atores desconhecidos e substituindo cartas de papel e
tinta por iPads e iPhones - que no entanto, como no romance, são
escritos/digitados sobre dorsos de belas mulheres nuas -, a peça é
aclamada a cada noite, com o elenco agradecendo mais de cinco vezes.
"Surpreendentemente, nada de fundamental mudou na relação homem-mulher
desde o século XVIII. Temos outros hábitos, outras mídias, mas, é
incrível, o romance não envelheceu", disse o ator, agora diretor. A obra
de Choderlos de Laclos, com a famosa guerra entre os libertinos Valmont
e marquesa de Mertreuil, completou 250 anos no dia 23.
A provocação fica por conta da escolha da única atriz negra, Jina
Djemba, como Madame de Tourvel, vítima de libertinos franceses de pele
branca. Num país que sai de 17 anos de direita no poder, 5 de
presidência Sarkozy e décadas de discurso do partido ultradireitista
Front National, num crescendo de limitação dos direitos de imigrantes e
de um nacionalismo que, no caso do FN, inclui até queixas sobre o grande
número de jogadores negros na seleção francesa de futebol, entende-se o
recado.
O crítico da revista "Nouvel Observateur" ligou teatro e palco
político: "Prova flagrante de que o texto de Laclos passa do século de
Restif de La Bretonne ao de DSK e de Versalhes ao Carlton de Lille sem
nada perder de sua admirável perversidade". Carlton é o hotel onde
Strauss-Khan teria participado de orgias.
O caso de Casanova, autor mitificado por séculos que, como o real
Sade (1740-1814) e o ficcional Dom Juan, é um dos maiores símbolos da
libertinagem masculina no Ocidente, também ajuda a entender a "exceção
francesa", cultural, política e moral. A exposição "Casanova: la Passion
de la Liberté", na Biblioteca Nacional, mostrou cartas, quadros e
roupas de época, lotando por três meses e produzindo um catálogo
primoroso (Ed. Seuil).
Hoje o autor ganhou status de grande escritor. "O público notou que
ele é um livre-pensador europeu, com horror a dogmas e sistematizações
de pensamento. Para tanto, aprendeu várias línguas e viajou como ninguém
no século XVIII, a partir da paixão pela literatura, pelo latim, pelo
francês e pelas mulheres", diz Michel Delon, professor da Sorbonne IV,
especialista em Sade e literatura oitocentista e autor de "Le Principe
de Délicatesse" [O princípio de delicadeza - libertinagem e melancolia
no séc. XVIII] (A. Michel, 2011), entre muitos outros.
Casanova mergulhou na cultura parisiense - tema do recém-lançado "Mes
Apprentissages à Paris" (L'Herne) - e rodou por Inglaterra, Alemanha,
Itália, Áustria, Holanda, Boêmia, Provença, Polônia, Rússia e até a
atual Turquia (Constantinopla), a partir da rocambolesca fuga da prisão
inquisitorial de Veneza, em 1756. Ao contrário de Sade, conseguiu ficar
longe de qualquer prisão, inclusive a dos dogmas.
Tal liberdade se manteve à base de viagens e de um desprendimento
próximo ao charlatanismo: foi espião diplomático, médico sem
habilitação, inventor de loterias, maçom, pseudofilósofo etc. Assim,
conheceu reis como Frederico II, da Prússia, filósofos como Rousseau e
Voltaire, escritores como Crébillon, provavelmente Da Ponte, o
libretista de Mozart etc.
"Esse filho de atores forjou uma pseudonobreza, inventou o sobrenome
'Seingalt' e conseguiu viver como aventureiro aristocrata", conta Delon,
autor também de um dos mais de 15 títulos "casanovistas" surgidos
recentemente, "Casanova: Histoire de Sa Vie" (Gallimard, 2011). Até o
Wikipédia caiu no conto: inclui o falso "Seingalt". E um grande
neurobiologista, Jean-Didier Vincent, teve sua análise de Casanova
relançada (Gallimard, 2011).
Se hoje se sabe em tempo real o que DSK cometeu, o destino fez que as
3.700 páginas do manuscrito de "Histoire de Ma Vie", a obra-prima de
Casanova, se mantivessem em segredo por mais de dois séculos. O desfecho
da saga editorial também explica o sucesso atual: só em 2010 a
Bibliothèque Nationale comprou, por cerca de € 7 milhões, o manuscrito
confiado ao sobrinho em 1798. O texto sobreviveu até a bombardeios na
Segunda Guerra.
Com algumas edições nos séculos XIX e XX, a de 1960 ainda trazia
trechos infiéis ao original. A de 1993 (Laffont) é a mais fiel, pelo
menos antes da aguardada edição Pléiade. Delon, que ajuda na edição, diz
que "Les Liaisons Dangereuses" levou séculos para entrar no cânone: "Só
em 1968 surgem teses sobre o romance". Como no caso de Sade, que até
hoje é contestado (por Eric Marty em "Pourquoi le XXè Siècle A-t-Il Pris
Sade au Sérieux? [Por que o século XX levou Sade a sério?], Seuil,
2011) e defendido ("Faut-il Brûler Sade? [É preciso queimar Sade?], de
Simone de Beauvoir, 1951), relançado agora pela Gallimard), parece que o
destino da libertinagem é ser tão esclarecedora sobre a guerra dos
sexos à francesa quanto incômoda a ouvidos que se fecham, às vezes por
séculos, aos segredos de alcova.
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*André Luiz Barros é professor da Unifesp e pesquisador da FapespFonte: Valor Econômico on line, 30/03/2012
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