Paulo Ghiraldelli Jr*
Havia
um menino que não comia de modo algum. A mãe já não dormia de
preocupação. Guloseimas aqui e ali, mas comida mesmo, nada. E quanto
menos a criança comia, mais a mãe se descabelava.
Mãe dedicada. Eis aí o sinal dos tempos:
mãe com psicologia! Mas, isso não importa, o que vale é que o nome real
da atitude é “amor de mãe”. Eis aí um sentimento que ninguém duvida que
exista e que todos veneram.
A tal mãe se punha na cozinha logo cedo,
criando todo tipo de prato bonito e cheiroso para o garoto. O menino
olhava, olhava, às vezes furava o quitute com o garfo, espionava um
pouco e logo fazia cara de enjoado e até de enojado. “Não gosto!” “Não
quero”. A mãe chorava.
O choro da mãe ficou mais grave quando o
garoto parou inclusive com as guloseimas, já não comendo nada mesmo. A
mãe entrou em desespero e então resolveu ter uma conversa com o filho,
em um tom grave, mas sereno. Vestiu a roupa de “mãe-eu-sou-mãe” e falou
com o menino. Usou todo tipo de argumento. Apontou inclusive para o
perigo da fraqueza e da morte.
Morrer o garoto não ia. O bandidinho
continuava saudável, mesmo não comendo. Não subia de peso, não descia.
Coisa ruim não morre, dizem por aí. Mas a mãe não achava que o filho era
mau menino, apenas um garoto com … problema de apetite. “Ruim de
garfo”, dizia-se.
Percorreu médicos, benzedeiras e
confeiteiras. Nada. Restaurantes e lanchonetes – nada. Ajoelhou na
frente do garoto e pediu, já chorando: “meu filho, diz o que você
comeria, pode ser qualquer coisa, eu vou buscar para você”. O menino não
se fez de rogado, e disse mesmo, com um ar quase que compadecido: “Mãe,
o que eu gostaria mesmo de comer é uma lagartixa”. Qualquer outra mãe
se espantaria. Mas não foi o caso dessa mãe. O desespero era tamanho que
ela mais que depressa saiu para pegar uma lagartixa.
Uma mulher não enfrenta uma lagartixa.
Mas essa mulher era mãe, e como mãe, agarrou com a mão uma lagartixa que
vivia lhe aterrorizando por ali. E lá foi o bichinho para a panela, com
pouco tempero.
Quando a lagartixa foi servida. Os olhos
do menino brilharam. A mãe sentiu que o apetite havia aparecido.
Colocou a mão no peito – Deus havia atendido suas preces e deixado,
desde há muito, as lagartixas terem vindo com Noé. O menino pegou com
uma mão um garfo e com a outra uma colher. Ficou com a colher e deu o
garfo para a mãe: “ah mãe, eu vou comer sem companhia?” Era um convite
fatal. O estômago da mãe tentou escapar por um buraquinho do dedão do
pé, um calo arrebentado. Mas a mãe sentou junto do filho para enfrentar,
agora na língua, a lagartixa. O filho não disse mais nada. Com ares de
príncipe e força de rei, olhou para a mãe, esperando que ela começasse a
degustação.
“Seja o que Deus quiser”, pensou a mãe.
Cortou um pedaço da lagartixa e num movimento rápido jogou para dentro a
carne horrorosa, esponjosa, pegajosa – nojenta. O menino sorriu e
mostrou apetite, mas logo em seguida empurrou o prato e fazendo cara de
choro disse que não ia comer. A mãe, com olhos lacrimejando e uma náusea
do capeta, perguntou: “mas por que não vai comer filhinho?” E o menino
foi taxativo: “ah, a senhora comeu exatamente o pedaço que eu mais
gosto!”
É assim que me lembro do conto que li de Millôr Fernandes, e da minha lembrança, escrevi este aí. Fábulas Fabulosas,
era esse o livro que abrigou essa história. Eu tinha menos de doze anos
quando li isso. Eu havia encontrado a perfeição desse gênero de
literatura que eu não tinha idéia do que era, e que até hoje talvez eu
não encontre lugar para colocar.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/03/28
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