quarta-feira, 28 de março de 2012

O fio da memória

DIANA CORSO*


Graças a sua coleção de fantoches, Policho era uma lenda na minha infância. Nas estantes de sua casa, dezenas de figuras caricaturais e mágicas ficavam longe do meu alcance, só os olhos podiam tocá-las. Não eram brinquedos, eram atores, apenas estavam repousando. Seu dono era um “bonequeiro”, fazia teatro de fantoches: em suas mãos eles falavam, dançavam, brigavam muito e arrancavam gritos e risadas da plateia. Fantoches são exagerados.

Atrás do artista havia um homem politizado, ativista em tempos pouco propícios para isso no Uruguai, onde vivíamos. Por isso foi preso e barbaramente torturado. Entre seus crimes estava o fato de ser filho de um importante educador cubano e pai de dois jovens considerados perigosos, como se tornaram os jovens naquele então. Na cela após a jornada de suplícios, ocorreu-lhe uma avassaladora amnésia. Na determinação de calar, já não lembrava quem era: saber-se era perigoso. Fruto do esforço de evocar, veio-lhe à mente o pedacinho de uma história que ele passou a contar a si mesmo. Infelizmente não sei qual era, se conto, lenda ou romance, e não há como lhe perguntar, ele já partiu. Dia após dia, a trama crescia. Scherazade de si mesmo, foi atiçando a própria curiosidade e sobrevivendo à miséria da desesperança. Quando a narrativa se completou em sua cabeça foi como se tivesse atravessado um portal. Ela era a chave: toda sua memória voltou, com ela a identidade e a força para suportar a dor.

A evocação que o livrou da amnésia, podia ter sido de uma lembrança de infância, da família, uma música, o número da carteira de identidade ou endereço, elementos da realidade pessoal que ele procurava resgatar. Mas o que voltou foi uma história. É o mesmo caminho traçado por Umberto Eco em seu livro A Misteriosa Chama da Rainha Loana, no qual um homem recupera a memória perdida visitando o porão da casa que fora do avô, onde ficara sua antiga coleção de gibis. Reencontrar-se com histórias de que gostava foi o método para encontrar a própria identidade porque nelas ficam guardados sonhos e desejos.

São nossas divagações fantasiosas, enfeixadas em histórias que lemos, assistimos ou nos contaram, que melhor nos traduzem e representam: ali está o tesouro da hipotética verdade de cada um. Talvez, se algum dia precisar, eu possa recorrer às histórias que aqueles bonecos quietos na estante me cochicharam, encenadas no palco da imaginação infantil. Eles eram só fantoches, mas tinham um amo que certamente sabia que uma boa história é a chave de tudo o que somos.
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* Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 28/03/2012
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