sexta-feira, 23 de março de 2012

O ladrão e o querubim

Pré-publicação

 Introdução

Carlos Nuno Vaz

Não tínhamos em português, até hoje, a possibilidade de aceder ao texto da liturgia siríaca que trata da cena, conhecida como a do bom ladrão, referida em São Lucas e que, em tal versão, coloca como guardião do paraíso, não São Pedro, como acontece no imaginário da figuração ocidental, mas o querubim, apoiando-se na passagem do final do segundo relato da criação: «O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra, da qual fora tirado. Depois de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim do Éden, os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida»
O professor Joaquim Félix de Carvalho teve acesso ao texto “O ladrão e o querubim – Drama litúrgico cristão oriental em siríaco e neoaramaico” que Fabrizio A. Pennacchietti apresentou no original (siríaco e neo-aramaico) e verteu para italiano5. Aqui é apresentada, com apoio na tradução italiana, que se configura até ao momento presente como edição mais fornecida em versões, a tradução portuguesa de cada uma das quatro: da siríaca e das três neo-aramaicas. Assim, todos poderemos aceder a este importante texto da dramaturgia caldaica ou siro-oriental.
O drama litúrgico “O ladrão e o querubim” é património da Igreja siro-oriental ou caldaica, que viveu em esplendor durante vários séculos, graças sobretudo à escola teológica de Nisibe, de onde procede santo Efrém. Atualmente, esta Igreja sofre perseguição no Iraque pelos fundamentalistas muçulmanos, que provocaram uma segunda diáspora. Um dos momentos mais dramáticos, vivido recentemente pela Igreja católica caldaica, foi o sequestro e assassinato de D. Paulo Faraj Rahho, arcebispo de Mossul, em 12 de março de 2008. (...)
Este diálogo de contraste e disputa entre o querubim e o ladrão, que as Igrejas de tradição siro-oriental conservamainda hoje e que é posto em cena no Domingo de Páscoa ou na manhã de Segunda de Páscoa, também chamada «do anjo» ou, mais exatamente, «do ladrão», é uma verdadeira celebração litúrgica, aliás muito popular, representada na igreja por dois diáconos, de acordo com um texto que remonta provavelmente ao século V. Tal texto é atribuível a Narsai ou, talvez com maior propriedade, a Efrém, e é precedido do canto de alguns salmos por parte do coro. (...
Esta forma litúrgica tem ainda hoje uma grande popularidade. E, nalgumas igrejas siríacas do Iraque, é mesmo celebrada diversas vezes durante o ano como sufrágio pelos defuntos. Os gregos veneram o bom ladrão como santo, já desde a antiguidade, no dia 23 de março. Os latinos, dando-lhe o nome de Dimas, celebram-no no dia 25 do mesmo mês. (...)
Não é apenas na igreja siro-oriental que se celebra o Bom Ladrão como figura do cristão e do ser humano, que encontra na cruz de Cristo a sua salvação. Muitos textos litúrgicos da semana santa das Igrejas orientais realçam o papel do Bom Ladrão como ícone maior do poder salvador da cruz. A própria liturgia bizantina insiste na relação entre o ladrão e a cruz: é a cruz que leva o ladrão à fé, que o torna teólogo, e o conduz ao paraíso. (...)

Bom ladrão, a imagem da esperança
À míngua de ícones da esperança, quem esperaria que o bom ladrão se tornasse imago spei (imagem da esperança)? Consciente disto mesmo, Bento XVI escreve: «Deste modo, na história da devoção cristã, o bom ladrão tornou-se a imagem da esperança, a consoladora certeza de que a misericórdia de Deus pode alcançar-nos mesmo no último instante; mais: a certeza de que, depois de uma vida transviada, a oração que implora a sua bondade não é vã. ‘O bom ladrão acolhendo, grande esperança me dais’, reza, por exemplo, também o Dies Irae».
Timothy Radcliffe, a propósito da famosa frase: «Hoje estarás comigo no Paraíso», interpreta-a de uma maneira diferente da habitual. Para ele, o ‘hoje’ de Jesus quer dizer que Deus tem um sentido do tempo diferente do nosso. «Deus perdoa-nos ainda antes de nós termos pecado, e Jesus promete levar aquele ladrão para o Paraíso antes ainda da sua própria ressurreição». E isto pelo facto de Deus viver no Hoje da eternidade. «A eternidade de Deus irrompe agora nas nossas vidas. A eternidade não é aquilo que acontece no fim dos tempos, depois de termos morrido. De cada vez que nós amamos e perdoamos, pomos um pé na eternidade, que é a vida de Deus».
Para o famoso autor dominicano, o «bom ladrão» consegue o Paraíso sem pagar nada por ele. No fundo, é como todos nós: «Apenas temos de aprender a aceitar presentes». Deus está continuamente a oferecer-nos a felicidade. «Nós temos de aprender a manter os olhos e as mãos abertos para podermos agarrá-la quando ela chega. Somos continuamente bombardeados pela felicidade que Deus nos atira: oxalá possamos ter a rapidez de visão suficiente para a localizar».
Qual é a felicidade que Deus nos oferece? A que é descrita como «Paraíso», uma palavra originária da Pérsia e que significa «jardim murado». Ora, toda a história do Evangelho é escrita no sentido de nós compreendermos que somos convidados a encontrar a nossa morada nessa felicidade. Deus compraz-se na nossa felicidade. Diz a cada um de nós quão maravilhoso é que existamos. «Nós podemos estar na presença de Deus com todas as nossas fraquezas e falhas, como o bom ladrão, e, mesmo assim, Deus continua a comprazer-se na nossa própria existência, prometendo-nos o Paraíso».
A felicidade significa «que nós partilhamos a complacência que Deus põe na humanidade. Significa que também devemos partilhar a dor de Deus frente ao sofrimento dos seus filhos e filhas. Não se pode ter uma sem o outro. A dor escava os nossos corações para haver um espaço onde a felicidade de Deus possa morar».
Contrariamente ao que poderíamos imaginar, o oposto da felicidade não é a tristeza. «É ter um coração de pedra. É recusarmo-nos a deixar que outras pessoas nos toquem. É envergar uma armadura que protege o nosso coração, impedindo-o de se comover. Para sermos felizes, temos de ser arrancados de nós mesmos, tornando-nos, por isso, vulneráveis. A felicidade e a dor verdadeira conduzem ao êxtase. Libertam-nos de nós mesmos, para nos comprazermos noutras pessoas e sentirmos dor pela sua dor. O mau ladrão recusa-se a isso. O bom ladrão atreve-se a fazê-lo, mesmo na cruz. E é por isso que pode receber o dom do Paraíso».

Versão do texto síriaco
1
Na crucificação vi um prodígio
quando o ladrão invocou Nosso Senhor
«Recorda-te de mim, Senhor, no dia da Tua vinda
no reino que não passará!»
2
Fez uma súplica, a formulou e a dirigiu
ao Rei crucificado e pediu piedade
e, cheio de compaixão, Ele ouviu-a
e acolheu a sua oração.
3
«Recorda-te de mim, Senhor – gritou enquanto era crucificado –
quando Te manifestares naquele reino
e na glória com que virás
verei a Tua misericórdia pois acreditei em Ti.»
4
Disse o Senhor: «Porque acreditaste,
estarás hoje no jardim do Éden.
Tem fé, ó homem, pois não serás excluído
do reino para o qual tu olhas.»
5
«Toma como sinal a cruz e parte!
(Eis) a chave excelsa com que se abre
a grande porta daquele jardim
a fim de entrar Adão que dele foi expulso.»
6
A palavra do Senhor, como um rescrito
que recebeu um selo da corte,
foi consignada ao ladrão. Este
tomou-a e ao Jardim do Éden se dirigiu.
7
Ouviu o querubim e chegou correndo
e capturou o ladrão à porta,
bloqueou-o com a espada que empunhava
e, aturdido, assim (lhe) disse:
8
O querubim: «Diz-me, ó homem, quem te enviou,
que procuras e como vieste?
Que motivo aqui te trouxe?
Mostra e explica-me quem és?»
9
O ladrão: «Dir-te-ei o que me pedes.
Imobiliza a espada e escuta as minhas palavras.
Eu sou um ladrão, mas implorei piedade
e vir aqui me ordenou o teu Senhor.»
10
Q.: «Com que poder sucedeu a tua chegada
e quem te enviou a (este) lugar terrível?
Quem te fez atravessar o mar de fogo?
Quem te enviou para entrar no Éden?»
11
L.: «Com o poder do Filho pois foi Ele quem me mandou.
Atravessei, cheguei e não fui impedido
e graças a Ele todas as Potências submeti
e cheguei para entrar como me prometeu.»
12
Q.: «Tu és um ladrão, como disseste,
mas o nosso lugar não pode ser depredado.
Está circundado pela lança que o guarda.
Volta, ó homem, (porque) erraste no caminho.»
13
L.: «Fui um ladrão, mas mudei.
Não foi para depredar que aqui vim.
Eis que tenho comigo a chave do Éden
para abrir e entrar e não serei impedido.»
14
Q.: «Terrível é o nosso lugar e não pode ser violado,
de fogo é o seu muro e não pode ser abatido.
A espada flameja-o a toda a volta.
Até aqui como ousaste vir?»
15
L.: «Terrível foi o teu lugar como disseste,
até que o teu Senhor sobre a cruz subiu.
Ele cravou a lança das dores
e a tua espada não pode mais matar.»
16
Q.: «Desde o dia em que Adão saiu
entrar aqui ninguém vi.
A tua estirpe foi expulsa do Jardim.
Tu não entras. Não contestes!»
17
L.: «Desde o tempo em que Adão pecou
contra a nossa raça se irou o teu Senhor,
mas reconciliou-se e abriu a porta.
Que tu permaneças aqui é (agora) supérfluo.»
18
Q.: «Convém que saibas que não é admitido
que entre aqui um homem impuro:
tu és um assassino e um derramador de sangue.
Quem te trouxe ao lugar dos justos?»
19
L.: «Convém que saibas que assim o quis
o purificador dos impuros que comigo foi crucificado.
Com o sangue do seu costado me lavou e purificou
e me mandou para o paraíso.» (...)

Esta transcrição omite as notas de rodapé. 
Texto em português de Portugal.

In O ladrão e o querubim, ed. Pedra Angular
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Fonte:  http://www.snpcultura.org/23/03/2012

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