MUDANÇA Para Casanova, o desenvolvimento econômico está fazendo a religiosidade, proibida pelo Estado, voltar à China
Um dos principais sociólogos da
religião no mundo explica a crise de fé da Europa, a politização da
religiosidade nos EUA e o preconceito contra os ateus
Pos 61 anos, José Casanova é um dos mais
respeitados sociólogos da religião na atualidade. Autor do clássico
“Public Religions in the Modern World” (de 1994), no qual trata da
ligação entre o afastamento das pessoas das religiões e a modernidade, o
acadêmico nascido na Espanha e naturalizado americano é professor
titular do departamento de sociologia da Universidade de Georgetown, em
Washington, nos Estados Unidos, e diretor do programa sobre
“globalização, religião e o secular” do Center Berkley, na mesma
instituição. Casado e com um filho, Casanova esteve no Brasil, no início
do mês, para ministrar aulas magnas, ter encontros com pesquisadores e
fazer palestras públicas em universidades. No período em que esteve no
País, concedeu uma entrevista à ISTOÉ, na qual traçou um panorama da
engrenagem religiosa no mundo atualmente – secularismo e ateísmo, a
crise de fé na Europa, a politização da religiosidade nos EUA e a
religião em países como Brasil, China e Índia.
"Bento XVI serve como um pontífice
de transição que não quer impor uma
linha nova e abre portas, como a decisão
de controlar o problema da pedofilia"
"Há um processo de globalização do islã. Imigrantes
da Turquia, da Argélia, do Paquistão, de repente,
são mais identificados como muçulmanos globais"
Istoé - Qual o futuro do catolicismo?
José Casanova -
Entre o
protestantismo/pentecostalismo, o islã e o catolicismo – as três grandes
religiões globais –, este último vem perdendo espaço e depende de como
irá resolver as suas crises fundamentais envolvendo a igualdade das
mulheres, o sacerdócio feminino e como irá reconstruir a sua moral
sexual diante das transformações radicais da moralidade sexual nas
sociedades. Não significa aceitar essas transformações, mas
confrontá-las e dar uma nova alternativa moral aos problemas. Há um
distanciamento entre a moral sexual das sociedades e a moral proposta
pelo catolicismo. E sabemos que isso leva muitas mulheres a se afastar.
E, quando uma mulher sai da igreja, a família deixa de ser cristã e os
templos se esvaziam.
Istoé - Qual será a herança do pontificado de Bento XVI? José Casanova - É um pontificado muito
complexo. O de (Karol) Wojtila (João Paulo II) foi muito positivo,
carismático, havia uma dinâmica na Igreja Católica, sobretudo nos países
em desenvolvimento. Mas ele também era uma pessoa muito autoritária.
(Joseph) Ratzinger (Bento XVI) é um teólogo mais técnico do que Wojtila e
por isso tem menos sensibilidade à diversidade do catolicismo global.
Serve como um pontífice de transição que não quer impor uma linha nova e
abre algumas portas, como a decisão definitiva de controlar o problema
da pedofilia.
Istoé -Há uma onda de pessoas abandonando as religiões e mantendo a fé em espaços privados. Por quê?
José Casanova - Durante 300 anos, os países
europeus passaram por um processo de religiosidade
(confessionalização), em que o Estado impôs a suas populações as
religiões luterana, calvinista ou católica. Hoje, associa-se o Estado
religioso e a igreja estatal a uma tradição muito velha, que vai contra a
modernidade. O Brasil, com a modernização e o crescimento das classes
médias, também passa por um processo parecido, embora atenuado, porque a
modernidade tem a ver com a pluralização da religião. Na Europa, ou
você pertence a uma religião/igreja ou sai dela de vez. Então, a
secularidade aparece como a única alternativa à religião – é considerada
um estágio mais avançado do que a religião.
Istoé - Como o sr. enxerga o grupo dos crentes sem religião?José Casanova - Muitos não encontram nas
comunidades religiosas uma experiência criativa, pessoal, que chame sua
atenção. Essa gente não é agnóstica, tem uma identidade religiosa
particular privada, um sincretismo pessoal. Assim, a pessoa pensa: “Sou
católico e bebo do espiritismo, por exemplo, mas sem ser espírita.” É
uma forma de crer sem pertencer, não ter filiação. Nos Estados Unidos, a
religião foi de tal forma politizada que a sociedade se polarizou.
Muita gente rejeita a forma como a religião se envolve com a política e
pretende moldar toda a sociedade, inclusive pessoas sem filiação.
Istoé - O sr. considera que as religiões ainda intervêm na esfera pública? O que elas ainda têm a dizer para as sociedades?José Casanova - O Estado europeu moderno
nasceu em meio às guerras religiosas. A primeira medida foi tornar o
Estado religioso e forçar todos a ter uma única crença para evitar a
guerra civil. Aqueles que não queriam seguir a religião nacional deviam
partir. Quando chegou a democracia, a religião saiu de cena do âmbito
estatal, acompanhada da ideia da necessidade de a fé ser privada, para
que a sociedade não se polarizasse. Nos Estados Unidos, há um outro tipo
de privatização da religião, pois o Estado não reconhece oficialmente
uma única crença e dá liberdade para que os cidadãos formem a
denominação que quiserem. A religião é a mais política das instituições
americanas, é o centro da vida política naquele país. Todos os
movimentos sociais envolvendo a escravidão, o feminismo ou o aborto
foram encabeçados pela religião.
Istoé - A pluralidade religiosa, algo corriqueiro aqui no Brasil, também existe na Europa e nos EUA?José Casanova - A imigração inaugurou a
diversidade cultural, étnica, racial e religiosa na Europa. A minoria
religiosa que desponta na Europa é o islã, por razões étnicas,
econômicas e seu passado colonial ante os países europeus. Além disso,
ocorre um processo de globalização do islã. Os imigrantes chegaram da
Turquia, da Argélia, do Paquistão, mas, de repente, são mais
identificados como “muçulmanos globais” do que por sua origem nacional. O
islã lhes garantiu uma unidade que não tinham. Nos Estados Unidos, os
imigrantes muçulmanos são normalmente de classe média, eles têm nível
educacional alto e estão economicamente integrados.
Istoé - O desenvolvimento de países como China, Índia e Brasil traz quais consequências para as religiões?José Casanova - A China é uma sociedade que
se modernizou à base de um processo estatal de destruição das
religiões. Hoje, com o desenvolvimento econômico chinês, todas as
religiões voltam a ressurgir. O caso chinês põe em questão a tese de que
a modernização leva à secularidade. A secularização da China foi
imposta pelo Estado e agora, com o desenvolvimento econômico, as
religiões estão voltando. As religiões reconhecidas na China são
minoritárias e oriundas de grupos étnicos não chineses: o islã, o
budismo, o taoísmo, o catolicismo e o protestantismo. Estão sendo
inaugurados departamentos de antropologia e sociologia nas universidades
chinesas, de estudos da religião, o que não havia antes. A Índia,
porém, sempre foi muito religiosa. Ela concluiu que, para competir com o
Ocidente e se livrar do colonialismo, teria de usar seu componente de
fé. São duas respostas anticoloniais bem diferentes: uma enxerga a
religião como um obstáculo e a outra a vê como uma ajuda.
Istoé - E o Brasil? José Casanova - O Brasil se converteu em um
centro mundial de catolicismo global, de pentecostalismo global e de
movimentos afro-americanos globais. O Brasil está surgindo como potência
econômica global, mas também está surgindo como potência religiosa
nessas três religiões.
Istoé - No Brasil, além do grupo
dos católicos não praticantes, assistimos ao crescimento dos
pentecostais não praticantes. Haveria um mesmo motivo para esses dois
fenômenos? José Casanova - É um mesmo processo. O
individualismo é o princípio mais importante da formação da religião de
uma pessoa no mundo moderno. Só tem vitalidade aquela religião que
permitir uma escolha individual livre. Quando a religião é uma
experiência imposta, pela instituição ou pela família, leva o indivíduo a
querer livrar-se dela. Quando o catolicismo se converte simplesmente em
uma identidade formal que não confere nenhuma motivação pessoal ao
indivíduo, muitos deixam de ser praticantes, tornam-se católicos formais
e ocasionalmente podem converter-se a outra religião ou até serem
agnósticos e antirreligiosos. À medida que o pentecostalismo se torna
mais institucionalizado e surgem novas gerações, esse processo também se
dará.
Istoé - Para estar antenado à modernidade é preciso ser secular?José Casanova - Na Europa se pensava que a
secularidade era um estágio superior à religião. Abandonar uma religião
era simplesmente uma condição natural humana. Então, lá, ser secular é
considerado algo natural, e ter religião é tido como artificial.
Historicamente, o homem amadurecia, tornava-se mais sábio, mais livre e
via a religião como algo desnecessário. Essa ideia muito europeia nunca
pegou nos Estados Unidos. Os americanos relacionaram sua experiência de
modernidade ao renascimento religioso. A religião aparece como uma
afirmação da identidade americana sobre o colonialismo do Ocidente. Lá,
estamos condenados a ser livres, mas também a renascer religiosamente.
Istoé - O que é ser ateu no mundo globalizado? José Casanova - Há uma anedota na Irlanda
do Norte que diz que um cidadão, ao atravessar a zona protestante em
direção à católica, é abordado: “Mãos para cima. Você é protestante ou
católico?” O cidadão respondeu: “Sou ateu.” A indagação seguinte foi:
“Mas qual tipo de ateu: protestante ou católico?” É o contexto que
define o que significa ser ateu. Na Europa, ser ateu é normal para um
jovem, que não precisa fazer nada para se encontrar nessa situação, não
precisa dialogar, refletir. É algo natural, espontâneo. Por outro lado,
para ser religioso ele tem de fazer algo. Na América é o contrário. Ser
ateu exige uma coragem enorme, ser contra toda a sociedade. É estar
continuamente lutando e defendendo a sua oposição diante de todos. Uma
pesquisa mostrou que nos Estados Unidos o cidadão afirma que votaria em
qualquer religioso, até em um muçulmano, mas jamais em um ateu.
Istoé - As pessoas são mais felizes quando têm ou não uma religião? José Casanova - Existe uma ciência da
felicidade, uma economia da felicidade, uma psicologia da felicidade,
que para mim são ciências absurdas. Sou um sociólogo comparador
histórico que não crê nessas coisas. É verdade que toda religião orienta
o indivíduo para uma realidade transcendente. Isso facilita a ele se
relacionar com os outros. Mas as religiões também podem nos tornar mais
egoístas, obcecados por nossa salvação. A resposta a essa pergunta é:
depende.
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Reportagem por Rodrigo Cardoso
Fonte: Revista Isto É on line, 16/03/2012
Também publicada no site IHU da Unisinos.
Reportagem por Rodrigo Cardoso
Fonte: Revista Isto É on line, 16/03/2012
Também publicada no site IHU da Unisinos.
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