Arnaldo Jabor*
Há 16 anos, em Nova York, entrei numa livraria e comprei
um livro de ensaios de Joseph Brodsky. Muitos perguntarão: quem é esse
cara?
Joseph Brodsky era um grande poeta e ensaísta russo, que ganhou o
Nobel de 87. Fora preso na União Soviética em 64. Acusaram-no de
"parasita social" e mandaram-no para um "gulag". Saiu dois anos depois e
foi morar nos Estados Unidos.
Teve a experiência de sair do comunismo e entrar na América
individualista. Mas, ficou na faca de dois gumes: nem comuna traidor nem
americanófilo deslumbrado. Carregou na alma o sonho europeu de futuro e
a intensa vivência de "presente" dos americanos.
Abri o livro e li um artigo sobre as Meditações do imperador romano
Marco Aurélio. Este rei filósofo escreveu há 2 mil anos um livro de
melancólica sabedoria sobre as regras de viver com justiça e bondade,
suportando com fortaleza a vida finita. O ensaio de Brodsky era cheio de
curvas escuras, sobre a antiguidade e a filosofia e foi me levando a
uma funda reflexão sobre nossa crise da pós-utopia. Acabo de ler o
ensaio, emocionado.
Abro o jornal no dia seguinte e vejo que Brodsky tinha morrido naquela noite e tinha a mesma idade que eu. Gelei.
Esta semana reli o ensaio e fiquei impressionado com a atualidade de
um texto de 20 anos atrás. Imaginei uma conversa com ele, do qual sai
este texto misturadamente dele, de Marco Aurélio e com intrusões aqui de
quem vos fala.
- E agora, Joseph, como está o mundo?
- Eu acho que vocês estão vivendo um grande pânico: o pânico do
presente. Eu acho que só agora o homem está descobrindo na carne que não
tem qualquer procedência nem qualquer consequência. Está descobrindo
uma dolorosa finitude e um despropósito na existência que ele sempre
procurou evitar. E não falo de niilismos nem de pessimismos. É tudo
muito novo, tudo muito gelatinoso ainda, com a morte das certezas do
totalitarismo e dos individualistas. Está se formando uma nova
"enteléquia".
- O quê?
- Ah... "enteléquia", uma força vital, um agente formador de
crescimento no mundo que ainda não está claro. Acho até bom que a teoria
não dê conta dela, que fique tudo no mistério, para acabar com a
arrogância desses franceses que acham que tudo é inteligível. Marco
Aurélio não escreveu para a posteridade. Ele escreveu para o "presente"
dele. E todos os presentes são iguais. Epíteto, o estoico, o escravo
filósofo, êmulo de Marco Aurélio, o rei filósofo disse que "a origem dos
males do mundo, da crueldade, da covardia, não é a morte; é o medo da
morte".
O escravo e o rei sabiam que o homem não tem controle sobre seu
futuro, como não teve sobre seu passado. E tudo o que o homem perde na
morte é o dia em que ela acontece. Melhor dizendo, o resto do dia em que
se morre... Por isso, Marco Aurélio e o escravo Epíteto nunca
permitiram que o medo da morte os influenciasse. Marco Aurélio foi meu
mote para o mundo atual. Nada mais atual que ele. O estoicismo "is
back"!
A humanidade levou 15 séculos para que o pensamento de Marco Aurélio
fosse reiterado por Spinoza e hoje, séculos depois, se reencontra com a
morte e a natureza. Acho que só a poesia consegue tocar levemente com a
ponta dos dedos o que está rolando por aí.
- Joseph, ninguém vai entender isso que você está falando.
- Entenderão. Não entender tudo é bom sinal. O mundo que temos pela
frente é uma imprecisa água-viva, o mundo é uma forma desconhecida como a
morte. Quanto mais medo da morte, mais utopias que são a ilusão de que a
morte é controlável, de que a morte pode ser vencida. Sozinhos, na luz
solar do mercado e do fim do futuro, esse apetite pelo infinito está
acabando (ou aumentando). Ouça Marco Aurélio: "Lutar contra o que
acontece é um ataque à natureza"; "O Universo é mudança, a vida é
opinião"; "A mente do Todo é social"; "A mais nobre forma de retribuição
é não ser como o seu inimigo"; "O que não é bom para a colmeia não é
bom para a abelha".
Vinte séculos depois vem Marco Aurélio e nos diz que a ética é o
único critério do presente, pois ela transforma todo ontem e todo amanhã
em agora.
É exatamente aquela flecha que em cada momento da trajetória está
parada. Como fazer uma utopia do presente, como tolerar a morte e ser
feliz, como lutar pelo bem? Eu saí da URSS, de um futuro que não chegava
nunca, para um presente que não acaba mais, um "enorme presente", nos
EUA. Aqui, existe uma inocência quase estúpida que é, por outro lado,
uma amostra de autonomia humana, que é quase trágica. Não há utopia
coletivista que apague este individualismo. Esta tal gelatina, a
enteléquia de que falei, sairá daí, da morte não dominada, do óbvio do
mundo, do solar brilho das coisas, do mercado de parcialidades que não
lidam com o futuro.
Não há solução; só dá para fazer uma permanente busca ética, como fez
Marco Aurélio, no passado, isto é, no "seu" presente. E veja bem: isto
não significa resignação, nem pessimismo. Seria um erro chamar o
estoicismo, na sua aceitação da realidade perceptível, de resignação com
a mal do mundo. "Serenidade" seria um melhor termo; até "melancolia" se
poderia usar, mas a melancolia de reis sábios.
Raramente políticos se interessam por filosofia, mas filósofos se
interessam por política. A "divisão" de Marco Aurélio reinando sobre si
mesmo, o homem mais poderoso do mundo colocando freios em seu próprio
poder é a imagem maior de uma ética para hoje. O imperador Marco Aurélio
via seu poder com melancolia. E os melancólicos são modernos porque não
esperam muito e raramente ficam histéricos. Os melancólicos são bem
razoáveis e, como dizia Marco Aurélio, "O que é razoável é social". Nada
existe para o futuro. Perder as esperanças nas utopias liberais ou
socialistas, perder a esperança "tout court" foi o início de uma nova
era, uma nova sabedoria. Benditos sejam os que amam o parcial, porque
herdarão a Terra.
Se as Meditações são a antiguidade, nós é que estamos em ruínas.
- Joseph, foi muito legal te conhecer... Pena que você tenha de ir.
- A vida é breve. Aproveita.
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* Jornalista. Escritor. Cronista. Cineasta.
Fonte: Estadão on line, 20/03/2012
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