Simão Lucas Pires*
O orgulho tem o problema da impertinência: só não
entra em cena quando o deveria fazer. E daí decorre grande parte da
trapalhada ética em que estamos metidos. Quem contribui para pôr isso a
nu é Epicteto, filósofo estoico do século I. Trata-se, para mal da
sanidade moral da humanidade, de um pensador caído no esquecimento. Em
Portugal, de modo particular, é difícil encontrar algum livro ligado ao
seu nome. É pena: Epicteto é o melhor remédio contra a tendência de
viver refém do que acontece, contra a doença de querer que seja o mundo a
fazer as vezes de mim. Lendo o “Manual”, o livro no qual um discípulo
seu reuniu os ensinamentos do mestre, a surpresa de raramente ter
ouvido falar deste filósofo impõe-se por si. Como se pôde afastar do
cânone um génio de imagens tão simples e de uma seriedade tão clara?
O “Manual”é uma proposta de transformação existencial,
dividida em várias sugestões de ordem prática. Certos pontos ligados ao
projeto estoico de alcance da impassibilidade parecem bizarros e até
pouco razoáveis aos nossos olhos. Mas o núcleo da transformação em
causa é válido para todos. Epicteto compreendeu, antes de mais, que a
vida é sempre a habitação de uma pergunta. E a pergunta-rainha, aquela
que se senta no trono que existe ao fundo da solidão de cada um,
costuma ser: «mundo, o que é que me ofereces?» Sob diferentes formas,
formas até respeitáveis como o entusiasmo no amor e o sucesso no
trabalho, é esta vontade de arrancar bens à existência que reina.
Aquilo a que se costuma chamar a procura da “realização pessoal” – e
parece que, ao pronunciar a expressão, tudo se torna mais lento e um
feixe de luz entra pela janela. O problema é que este desejo, apregoado
em todo o discurso pós-moderno, elevado até ao estatuto de direito,
não é tão cândido quanto certas bocas dão a parecer. Não prestamos
nenhuma atenção ao que esta ditadura da realização pessoal faz de nós,
mas a verdade é que corresponde a maior parte das vezes à aniquilação
da liberdade e à renúncia a um rosto próprio. Se tudo o que faço é
cobrar impostos à vida, quem é que eu sou? Se a medida dos meus gestos
não estica para lá da felicidade recebida em troca, não sou apenas um
escravo, um miserável e sofisticado escravo da sensibilidade? A
primeira lição de Epicteto tem que ver com isto. Uma identidade
hipotecada à passividade não é nada; um homem cuja vontade se rendeu às
inclinações não é ninguém. Sem espalhafato, em conformidade com as
regras sociais e sem olhar de frente o que andamos a fazer, é muitas
vezes essa a via que percorremos. Como Dorian Grays de medida
quotidiana, como Dorian Grays de roupão e pantufas, deixamos a verdade
no sótão para ir atrás de outra coisa qualquer.
Pois Epicteto, perspicaz na compreensão da violência
assim perpetrada contra a dignidade do homem, propõe uma atitude
diferente: «É um homem belo, uma mulher bela que atinge o teu olhar?
Encontrarás a continência. É o cansaço que se impõe? Encontrarás a
resistência. Insultos? Encontrarás a paciência.» Há uma inversão no que
diz respeito à relação com os acontecimentos. A pergunta fundamental
deixa de ter a ver com o que recebo, com o que “sinto”, e passa a ter a
ver com o que “sou”. As coisas são a oportunidade de eu ser
maximamente, de eu ser o melhor possível. É importante perceber que não
se trata aqui de nenhuma obsessão moralista. Epicteto não inventa esta
nova pergunta; limita-se a olhar para ela, para esta pergunta à qual,
querendo ou não, estou sempre a responder. Eu sou aquilo que faço. Não
querendo entrar em formulações metafísicas demasiado aéreas, há que ter
como ponto assente que fazer é o ser a ser. Fazer é o ser a
mostrar-se, o ser a sair à rua, e não apenas uma excrescência qualquer
que se me acrescenta sem borrar o meu rosto. Talvez esse seja o maior
mal-entendido na compreensão espontânea da ética: julgar que as minhas
ações são uma coisa à parte da minha identidade. Esta é uma ideia que
se apodera de nós com muita facilidade. Quando penso em mim, penso em
quem? Penso no escritor que escreve os livros que eu nunca escrevi.
Penso com a imaginação, não com o que os factos de facto dizem. Penso
numa possibilidade – penso em algo que não sou. Todos os conselhos de
Epicteto, no estilo sóbrio e exigente que lhe é próprio, visam, em
sentido contrário a esta tendência deturpadora, focar a atenção naquilo
que realmente se é ao fazer o que se faz. Ao centrar o seu discurso na
liberdade, na circunstância de a liberdade ser o único âmbito onde
pode estar constituído o significado da minha vida e uma identidade
digna desse nome, o filósofo mostra que a tática com que normalmente
jogamos é, numa palavra, má.
Percebemos, no fim de contas, que tudo é uma questão
de “bom orgulho”. O “Manual” põe-nos à frente do nariz a escolha entre
ser uma marioneta sofisticada ou um homem, e não é difícil imaginar
qual dos lados é que defende. Tenho quase a certeza de que Epicteto, se
os céus lhe concedessem uma visita a Queluz, gostaria da ironia
venenosa da canção do Tiago Guillul na qual se diz que o “mundo é o pretexto para o passeio do turista.”
É precisamente contra esse passeio afetado, arrogante e fingidamente
distraído em relação à profundidade das coisas que o estoico se
insurge. O turista é a criatura ridícula que experimentou tudo e não
foi ninguém, percorreu o mundo inteiro e esqueceu-se de si. O homem
livre não.
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* Texto de escritor português em site de Portugal.
Fonte: http://www.snpcultura.org/12/03/2012
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