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'The Man in the Empty Boat', de Mark Salzman
Carta de Joseph Conrad, em 1898, ao editor e amigo Edward Garnett
Em seu último livro, o americano Mark Salzman conta suas aflições com o bloqueio criativo, mal comum aos autores e tema de um estudo-chave de Alice Flaherty, da Universidade de Harvard.
NOVA YORK - "Eu me sento, religiosamente, toda manhã. Eu
me sento por oito horas, todo dia - e ficar sentado é tudo. Durante o
dia de trabalho de oito horas, escrevo três frases que apago, antes de
deixar a escrivaninha em desespero."
O sonho de musicista profissional foi abandonado ao assistir a um
concerto de Yo-Yo Ma, enquanto estudava na Universidade de Yale, onde
logo trocou seus estudos por literatura chinesa. As artes marciais, que
aperfeiçoou na província de Hunan, no fim da década de 80, inspiraram
seu primeiro sucesso, o livro de memórias Iron & Silk (Ferro & Seda). Em 2000, Salzman lançou Lying Awake (Na
Cama Acordada), um breve e elogiado romance sobre uma freira carmelita
que enfrenta uma crise espiritual e um tumor no cérebro.
Na época, num perfil na revista New Yorker, Salzman confessou que havia levado seis anos para concluir Lying Awake, um período em que sua mulher, a cineasta Jessica Yu, ganhou um Oscar pelo curta-metragem Breathing Lessons: The Life and Work of Mark O’Brien.
Em The Man In The Empty Boat, Salzman relata em detalhes a
segunda seca criativa que sofreu, em 2009, incapaz de concluir, depois
de três manuscritos, um romance sobre o império mongol, passado no
século 13. O nascimento de duas filhas, a morte trágica de sua irmã e o
começo de uma série de ataques de pânico são o pano de fundo da crise.
Sua crônica da luta obsessiva para manter a rotina de escritor contém
cenas de humor absurdo, como a que está sentado em frente do computador
com uma toalha na cabeça para abafar o menor ruído e enrolado numa saia
de papel laminado para afugentar os dois gatos que pedem colo. A certa
altura, ele leva o laptop para o carro na garagem e tenta em vão
escrever de lá, sob o escárnio de um dos gatos que se instala no capô.
Em seguida, Salzman é aceito na idílica Colônia MacDowell Para
Escritores, no Estado de New Hampshire, onde conclui, em êxtase, que não
pode se forçar a escrever e transforma a estadia em férias.
A crise de Salzman, ou pelo menos o seu tormento, termina em outra
viagem para o campo, em companhia de um cachorro terrier, cuja
flatulência o leva a ter uma segunda epifania sobre o bloqueio do
escritor. De sua casa, perto de Los Angeles, Salzman se confessa feliz
por, no momento, tomar conta das duas filhas, de 7 e 10 anos, enquanto a
mulher viaja com a produção de um filme. Ele espera, paciente, pela
volta da inspiração sobre a Mongólia da Idade Média.
"Pergunto por que persiste
o mito do álcool (Hemingway)
ou de drogas
(William Burroughs)
como combustível criativo
e ela me diz que a
substância, não importa qual,
é buscada para aplacar a desordem mental e
não para
resolver a produção literária."
No prestigiado Massachusetts General Hospital, o escritório de Alice
Flaherty, diretora do Programa de Estudos de Desordens do Movimento e
professora de neurologia da Universidade de Harvard, é destino de uma
peregrinação de escritores como Salzman. O mais famoso deles foi William
Styron, morto em 2006. O romancista autor de A Escolha de Sofia e As Confissões de Nat Turner escreveu a mais célebre memória da depressão, Perto das Trevas. Ainda deprimido e incapaz de voltar a escrever, ele decidiu procurar a doutora Flaherty em Boston, ao ler seu livro The Midnight Disease: The Drive to Write, Writer’s Block and the Creative Brain (A Doença da Meia-Noite: O Impulso de Escrever, O Bloqueio do Escritor e o Cérebro Criativo, 2004).
"Styron estava profundamente deprimido nos últimos cinco anos de
vida", lembra a neurologista, advertindo que tem permissão para comentar
apenas sobre este ex-paciente, já que Styron e sua viúva Rose, de quem
se tornou amiga, falaram abertamente sobre a depressão e o tratamento.
Flaherty admite que foi procurada por figuras expressivos da literatura
contemporânea americana, mas, é claro, a ética a impede de revelar
nomes. Ela acaba de escrever um paper acadêmico sobre a evolução da
pesquisa relatada em The Midnight Disease. O novo artigo se concentra nos riscos do tratamento de doenças mentais que afetam a criatividade.
Foi como paciente que Alice Flaherty se interessou por explorar a
ligação entre a escrita e a emoção. Boa parte da literatura científica
tratava de aspectos cognitivos da linguagem. Mas, ao dar à luz gêmeos
prematuros que logo morreram, em 1998, a neurologista, que já tinha uma
carreira médica bem-sucedida, mergulhou numa depressão. E passou a
sofrer do outro mal do escritor, o extremo oposto do bloqueio: a
hipergrafia. Processou seu luto escrevendo sem parar, em qualquer pedaço
de papel. Flaherty diz ao Sabático que a compulsão para escrever sobre a
própria doença é comum em pacientes que não são escritores por
profissão. Depois de seu episódio maníaco, ela recebeu um diagnóstico de
desordem bipolar, foi medicada, voltou a publicar artigos científicos, a
atender pacientes e teve gêmeas que estão crescendo saudáveis.
Em The Midnight Disease, Flaherty confessa sua surpresa
inicial ao descobrir que um talento refinado como a escrita possa ser
tão influenciado pela biologia. Ela explica que, tanto o bloqueio da
escrita quanto a hipergrafia têm em comum o lóbulo temporal do cérebro,
importante para a produção de literatura porque é necessário para a
compreensão semântica. A outra região do cérebro relevante para a
escrita é o sistema límbico, residência da emoção e do impulso criativo.
Flaherty afirma que está longe de tentar medicalizar a arte, como os
que descrevem a obra de Dostoievski como mero produto da epilepsia.
"Patologizar o processo de escrever", argumenta, "poderia nos levar a
encarar a criatividade como anormal e até perigosa."
A expressão "writer’s block" (bloqueio do escritor) foi cunhada pelo
psicanalista americano Edmund Bergler, em 1947. Há, comenta a doutora
Alice, quem a considere uma aflição nativa dos Estados Unidos por causa
do otimismo americano sobre "a criatividade ao alcance de todos". É
comum os cursos de Escrita Criativa das universidades do país, como a
Columbia e a New York University, incluírem disciplinas sobre como
combater o writer’s block. Apesar de famosos bloqueados americanos, como
Herman Melville, Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald, Flaherty
contra-argumenta com casos de bloqueio confesso, como os de Sigmund
Freud, Franz Kafka, Albert Camus e Joseph Conrad.
Pergunto por que persiste o mito do álcool (Hemingway) ou de drogas
(William Burroughs) como combustível criativo e ela me diz que a
substância, não importa qual, é buscada para aplacar a desordem mental e
não para resolver a produção literária.
Flaherty recomenda psicoterapia e medicação para os afligidos por
bloqueio. Mas a medicação correta, um tema de seu novo paper, é crucial
porque os escritores, um grupo com alto índice de depressão, podem se
tornar ainda mais paralisados sob a prescrição química equivocada.
O impulso de escrever, lembra a neurologista, é diferente da
qualidade do que se escreve. "A ciência", sustenta ela, "ainda não
conhece o bastante sobre qualidade, a biologia do talento, como conhece
sobre a quantidade da produção." Flaherty explica que ainda é um desafio
mostrar de onde vem a inteligência, porque ela depende de áreas do
cérebro cuja composição química é mais complicado de distinguir. "Parte
da razão pela qual escrevo sobre motivação e emoção é por ser este um
cenário neurobiológico mais bem compreendido."
A doutora Flaherty não toma partido entre duas posturas comuns entre
escritores afligidos pelo papel ou a tela em branco. Ela cita o
americano Norman Mailer, que comparava escrever sem a visita da
inspiração a tentar fazer sexo sem desejo. Mas acredita que os
defensores da disciplina, os que se obrigam a escrever, não importa a
disposição, podem levar vantagem: "Sabemos que a criatividade é pontuada
por momentos de inspiração e momentos de eureka!", lembra. "Pode ser
melhor escrever algo ruim e esperar pelo tal momento." Ou cita, para
quem consegue, a receita do poeta romântico inglês John Keats que, numa
carta, afirma se encontrar num estado de "indolência diligente e
aplicada". E qual é o conselho comum que ela dá para quem enfrenta o
bloqueio da escrita? Não ficar repetindo para si o diagnóstico. "Só faz
aumentar a ansiedade e a paralisia", garante.
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Fonte: Lúcia Guimarães - http://www.estadao.com.br/23/03/2012
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