sábado, 31 de março de 2012

Uma lição do Millôr

 Luis Fernando Veríssimo*

Já contei isto mais de uma vez. Vou contar de novo porque acho uma boa amostra do que era o Millôr. Foi numa das primeiras Jornadas Literárias de Passo Fundo. Tinham vindo vários autores do Rio – além do Millôr, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Orígenes Lessa, mais uns dois ou três que estou esquecendo – graças ao trabalho de arregimentação do Josué Guimarães. Ginásio cheio, grande entusiasmo. O favorito da plateia quase toda feminina era o Sabino, que não decepcionou seu público. Falou com desenvoltura e graça. O Otto Lara também fez rir e foi um sucesso. E chegou a vez do Millôr. A expectativa era de que, sendo um humorista profissional, ele seria o mais engraçado de todos. Mas quando começou a falar, mudou o clima. Ele lia um texto em tom de discurso. Um texto sério, uma candente defesa da liberdade, dos direitos humanos e da democracia. Um texto longo, mas que à medida que era lido ia empolgando mais e mais a plateia. No fim, uma ovação. Gente aplaudindo de pé. E então o Millôr revelou que tinha acabado de ler o discurso de posse do general Médici na Presidência da República. O discurso que inaugurara o pior período da ditadura.

Com um mesmo golpe de teatro, o Millôr tinha nos lembrado a não confiar nas belas palavras e nos dado uma aula de ceticismo preventivo. Foi o que ele fez a vida toda, sempre espiando por baixo das fantasias mais portentosas, denunciando o engodo dos poderosos e o poder dos enganadores. E sempre com a criatividade que mostrou naquela noite – ou tarde, não me lembro mais – em Passo Fundo. Pois não bastava ser crítico, desmistificador, contestador e iconoclasta, era preciso ser tudo isso com arte e com graça. Isso também fazia parte da lição.

Hoje, muitos discursos de posse depois do discurso do Médici, mesmo os que não estavam lá aprenderam a desconfiar da promessa altissonante e da retórica irreal. Tivemos um bom professor.
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LUIS FERNANDO VERISSIMO | Escritor, autor de “Os Espiões” (Objetiva, 2009)
Fonte: ZH on line, 31/03/2012
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