Verissimo*
Na sua Divina Comédia Dante coloca os sodomitas, os
blasfemadores e os usurários no mesmo círculo do Inferno. As práticas
das três categorias eram igualmente antinaturais. A Igreja condenava a
usura e só absolvia os usurários arrependidos se eles devolvessem todo o
lucro obtido com juros, que não era fruto do trabalho e portanto contra
as leis de Deus. Aos usurários renitentes era negado enterro cristão.
Já os blasfemadores e sodomitas não podiam esperar nenhuma remissão: iam
direto para o Inferno. Pelo menos para o Inferno do Dante.
Nos 7 séculos desde a Divina Comédia, aos poucos e cada uma por sua
vez, as três classes se livraram da danação que as estigmatizava.
Relações homossexuais hoje são aceitas sem muito escândalo.
Blasfemadores não precisam mais temer as fogueiras da Inquisição, ou
qualquer coisa parecida, por negarem a religião. E os usurários mandam
no mundo.
Pode-se, com alguma imaginação, comparar a regulação dos bancos que
existia até pouco tempo com o controle que a Igreja tentava manter sobre
a atividade financeira no fim da Idade Média, e a desregulação dos
bancos que deu na crise que vivemos agora com a conclusão da Igreja que
estava perdendo grandes negócios, combatendo a usura, e sua decisão de
aderir. Os banqueiros passaram de excomungados a abençoados, e pelo
século 18 a própria Igreja já era um dos maiores manipuladores
financeiros do planeta. No caso dos bancos modernos, liberados para
fazerem qualquer negócio pelo lucro imediato, inclusive destruir
economias inteiras, a mensagem da desregulação foi a mesma que a Igreja
deu aos usurários séculos atrás: não é mais pecado, gente!
Seria possível especular sobre quem Dante colocaria hoje no mesmo
nicho, no sétimo circulo do Inferno? Nada parece muito antinatural,
ultimamente. Bom, talvez a pizza com abacaxi. Mas nem isto merece ser
jogado no fogo eterno.
Além-túmulo. Leitores perguntam se enlouqueci. Há uma semana escrevi
que o fato da revolução comunista acontecer na Rússia, onde ninguém
esperava, assustara até o Marx. Como Marx morreu em 1883 e a revolução
foi em 1917 (ou 1905, a se contar a primeira tentativa fracassada) o
susto era improvável. Pensei que tivesse ficado subentendido que Marx se
surpreendera no além-túmulo, mas nem todos subentenderam. Resta
imaginar onde fica o além-túmulo do Marx. No céu ou no inferno? Há
controvérsias.
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* Luis Fernando Veríssimo, escritor, cronista.
Fonte: estadão on line, 15/03/2012
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