Contardo Calligaris*
Perto de onde Juliana morreu, uns idiotas
tiram um fino de um ciclista, gritando:
"Sentiu o vento?"
Na manhã da sexta passada, Juliana Dias, 33, circulava de bicicleta pela
avenida Paulista, entre a faixa preferencial do ônibus (à direita) e a
faixa de carros -ou seja, no lugar certo, se é que existe um lugar certo
para ciclistas em São Paulo.
As testemunhas contam que, perto da rua Pamplona, ela foi fechada,
primeiro por um carro (quem sabe o motorista tenha achado engraçado),
logo, por um ônibus. Ela gesticulou e protestou. Nessa altura, segundo
uma das testemunhas, de novo, intencionalmente, o ônibus foi para cima
de Juliana, que caiu e foi esmagada por um segundo ônibus, que, de fato,
não teve culpa.
O motorista do primeiro ônibus foi preso por homicídio culposo (não
intencional) e, hoje, ele já está em casa (por sorte nossa, no momento,
ele não dirige). Se for verdade que ele fechou Juliana de propósito, ele
deveria ser acusado de homicídio doloso -com a intenção de matar.
Segunda, não longe de onde Juliana morreu, na alameda Santos, um idiota
do volante passou bem perto de uma bicicleta, acelerando forte, enquanto
seu passageiro gritava para o ciclista apavorado: "Sentiu o vento?".
Talvez o motorista e seu passageiro temessem ser tão insignificantes
quanto um sopro de vento e se consolassem ao ver que, por um sopro,
alguém podia se sentir ameaçado.
Da mesma forma, há homens impotentes que se esfregam contra mulheres no
metrô lotado: esperam confirmar sua virilidade duvidosa graças à reação
indignada que eles suscitam.
Em 1949, W.A. Tillmann e G.E. Hobbs publicaram um dos primeiros estudos
de psicologia do trânsito, "The Accident-Prone Automobile Driver - A
Study of the Psychiatric and Social Background" (o motorista propenso a
ter acidentes - estudo do pano de fundo psiquiátrico e social, "American
Journal of Psychiatry", 1949; 106, acesso via http://migre.me/8ae8f).
Na hora de autorizar alguém a dirigir, antes de testar seu tempo de
reação ou sua visão etc., sugeriam os autores, deveríamos saber quem ele
é.
Concordo, em tese: carros, caminhões ou ônibus são armas e, para
outorgar um porte de armas, não verificamos apenas que o beneficiário
tenha pontaria -queremos saber quem ele é.
O problema é que, na prática, selecionar motoristas por via
médico-psicológica significaria quase sempre promover os preconceitos do
dia. Por exemplo, Tillmann e Hobbs propunham um perfil do motorista
perigoso, que, além de ser instável, insubordinado, imediatista etc.,
viria "de um lar marcado pelo divórcio dos pais". Tudo bem, hoje, negar a
carteira aos filhos de divorciados seria a solução definitiva ao
problema do trânsito.
Perfil a parte, Tillmann e Hobbs notaram, justamente entre os motoristas
de uma companhia de ônibus, que uma mesma minoria era responsável pela
maioria dos acidentes, ano após ano.
Talvez esses motoristas minoritários correspondessem ao perfil que
Tillmann e Hobbs tentavam definir. Ou talvez a explicação psicológica da
perigosidade no trânsito seja outra (por exemplo, em 1969, Stephen
Black, http://migre.me/8ae0k,
escrevia que, aparentemente, todos os motoristas são "do bem", mas seu
inconsciente é sempre psicopata; numa linha parecida, outros diriam que
dirigir é o jeito mais fácil e brutal de compensar qualquer insegurança
social e privada).
Seja qual for a explicação, Tillmann e Hobbs mostraram que, fichando
cada motorista de uma companhia de ônibus e adicionando constantemente,
nessas fichas, o número de acidentes (mesmo menores), as denúncias
telefônicas do "como estou dirigindo?" e as infrações relativas à
direção arriscada, seria possível chegar a um índice de perigosidade que
afastasse do volante aquelas pessoas que nunca deveriam ter se sentado
atrás dele.
O afastamento, segundo eles, deveria ser definitivo ou quase: para que
um motorista propenso ao acidente se torne um motorista seguro, ele
precisaria mudar caraterísticas profundas de seu caráter (possibilidade
remota).
Tillmann e Hobbs quiseram mostrar, em suma, que os acidentes não são
apenas fruto do acaso e efeito de imperícia ou de bobeiras ocasionais;
muitas vezes, os acidentes "refletem a personalidade básica do indivíduo
que dirige". E essa ideia ainda não foi levada a sério.
Agora, se Juliana foi mesmo fechada propositalmente por um ônibus, ela
não foi vítima do acaso nem da imperícia nem da bobeira ocasional de
ninguém.
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* Psicanalista. Escritor. Cronista da Folha
Fonte: Folha on line, 08/03/2012
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