quinta-feira, 8 de março de 2012

Morte na avenida Paulista

Contardo Calligaris*
Perto de onde Juliana morreu, uns idiotas 
tiram um fino de um ciclista, gritando:
 "Sentiu o vento?"
Na manhã da sexta passada, Juliana Dias, 33, circulava de bicicleta pela avenida Paulista, entre a faixa preferencial do ônibus (à direita) e a faixa de carros -ou seja, no lugar certo, se é que existe um lugar certo para ciclistas em São Paulo.
As testemunhas contam que, perto da rua Pamplona, ela foi fechada, primeiro por um carro (quem sabe o motorista tenha achado engraçado), logo, por um ônibus. Ela gesticulou e protestou. Nessa altura, segundo uma das testemunhas, de novo, intencionalmente, o ônibus foi para cima de Juliana, que caiu e foi esmagada por um segundo ônibus, que, de fato, não teve culpa.
O motorista do primeiro ônibus foi preso por homicídio culposo (não intencional) e, hoje, ele já está em casa (por sorte nossa, no momento, ele não dirige). Se for verdade que ele fechou Juliana de propósito, ele deveria ser acusado de homicídio doloso -com a intenção de matar.
Segunda, não longe de onde Juliana morreu, na alameda Santos, um idiota do volante passou bem perto de uma bicicleta, acelerando forte, enquanto seu passageiro gritava para o ciclista apavorado: "Sentiu o vento?". Talvez o motorista e seu passageiro temessem ser tão insignificantes quanto um sopro de vento e se consolassem ao ver que, por um sopro, alguém podia se sentir ameaçado.
Da mesma forma, há homens impotentes que se esfregam contra mulheres no metrô lotado: esperam confirmar sua virilidade duvidosa graças à reação indignada que eles suscitam.
Em 1949, W.A. Tillmann e G.E. Hobbs publicaram um dos primeiros estudos de psicologia do trânsito, "The Accident-Prone Automobile Driver - A Study of the Psychiatric and Social Background" (o motorista propenso a ter acidentes - estudo do pano de fundo psiquiátrico e social, "American Journal of Psychiatry", 1949; 106, acesso via http://migre.me/8ae8f). Na hora de autorizar alguém a dirigir, antes de testar seu tempo de reação ou sua visão etc., sugeriam os autores, deveríamos saber quem ele é.
Concordo, em tese: carros, caminhões ou ônibus são armas e, para outorgar um porte de armas, não verificamos apenas que o beneficiário tenha pontaria -queremos saber quem ele é.
O problema é que, na prática, selecionar motoristas por via médico-psicológica significaria quase sempre promover os preconceitos do dia. Por exemplo, Tillmann e Hobbs propunham um perfil do motorista perigoso, que, além de ser instável, insubordinado, imediatista etc., viria "de um lar marcado pelo divórcio dos pais". Tudo bem, hoje, negar a carteira aos filhos de divorciados seria a solução definitiva ao problema do trânsito.
Perfil a parte, Tillmann e Hobbs notaram, justamente entre os motoristas de uma companhia de ônibus, que uma mesma minoria era responsável pela maioria dos acidentes, ano após ano.
Talvez esses motoristas minoritários correspondessem ao perfil que Tillmann e Hobbs tentavam definir. Ou talvez a explicação psicológica da perigosidade no trânsito seja outra (por exemplo, em 1969, Stephen Black, http://migre.me/8ae0k, escrevia que, aparentemente, todos os motoristas são "do bem", mas seu inconsciente é sempre psicopata; numa linha parecida, outros diriam que dirigir é o jeito mais fácil e brutal de compensar qualquer insegurança social e privada).
Seja qual for a explicação, Tillmann e Hobbs mostraram que, fichando cada motorista de uma companhia de ônibus e adicionando constantemente, nessas fichas, o número de acidentes (mesmo menores), as denúncias telefônicas do "como estou dirigindo?" e as infrações relativas à direção arriscada, seria possível chegar a um índice de perigosidade que afastasse do volante aquelas pessoas que nunca deveriam ter se sentado atrás dele.
O afastamento, segundo eles, deveria ser definitivo ou quase: para que um motorista propenso ao acidente se torne um motorista seguro, ele precisaria mudar caraterísticas profundas de seu caráter (possibilidade remota).
Tillmann e Hobbs quiseram mostrar, em suma, que os acidentes não são apenas fruto do acaso e efeito de imperícia ou de bobeiras ocasionais; muitas vezes, os acidentes "refletem a personalidade básica do indivíduo que dirige". E essa ideia ainda não foi levada a sério.
Agora, se Juliana foi mesmo fechada propositalmente por um ônibus, ela não foi vítima do acaso nem da imperícia nem da bobeira ocasional de ninguém. 
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* Psicanalista. Escritor. Cronista da Folha
Fonte: Folha on line, 08/03/2012

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