por PHILIP GOUREVITCH
O presidente da França não gosta de vinho. Não gosta de queijos
malcheirosos. Não gosta de trufas. Gosta de Coca Diet, balas e charutos
Havana enormes. Esse desprezo pelo bom gosto é considerado anormal na
França, mas Nicolas Sarkozy não liga. Ele se orgulha de sua franqueza e,
se parece inculto e bronco, sua atitude é: e daí? Por exemplo: ele
gosta de dinheiro. Por que não? Quem não gosta? Mas na França se espera
que as pessoas sejam motivadas por objetivos mais nobres ou mais
frívolos. Leiam-se os romances: de Balzac a Proust, passando por
Stendhal, Flaubert e Zola, grande parte da literatura francesa é sobre a
hipocrisia da sociedade burguesa. Os segredos e mentiras, os desejos
distorcidose o ressentimento associados ao dinheiro estão no centro da
trama. Ainda hoje, falar de dinheiro – em especial, falar em público, e a
favor de querê-lo, ganhá-lo e guardá-lo, como Sarkozy faz – é
considerado vulgar, até mesmo sórdido.
“Nos Estados Unidos, o tabu é o sexo. Na França, é o dinheiro”, disse-me
o filósofo Pascal Bruckner. “Até mesmo para pessoas de direita, ele é
um defeito – um defeito moral.” Sarkozy acha isso ridículo. Durante a
campanha presidencial, apresentou-se como décomplexé em relação ao dinheiro, mas como falava tanto do assunto, no fim das contas parecia bem complexé.
Valorizou o trabalho e o lucro, e prometeu livrar os franceses daquilo
que considerava a letargia patrocinada pelo Estado: a semana de trabalho
de 35 horas, a aposentadoria do funcionalismo aos 60 anos de idade e os
subsídios e proteções governamentais que diminuíram a produtividade.
É muito melhor, segundo Sarkozy, se esfalfar e ser recompensado, ter e
gastar. O aumento do poder aquisitivo foi uma de suas palavras de ordem.
Por falar assim, pela arrogância e pelo coloquialismo tosco – e porque
admirava George W. Bush –, era chamado de “Sarkô, o Americano”.
“Consideram isso um insulto, mas tomo como um elogio”, disse ele a um
enviado de Bush, segundo um telegrama diplomático obtido pelo WikiLeaks.
Sarkozy se ofereceu como um novo modelo de francês empreendedor,
empenhado em forjar um futuro melhor do que o passado idealizado. Para
os franceses, isso era estranho mas empolgante, e apostaram nele.
Sarkozy é uma figura tão singular que caricaturá-lopode
parecer fácil, mas toda caricatura se baseia no exagero, e ele é tão
exagerado que deixa pouco espaço para o caricaturista. Os franceses
esperam que seus presidentes tenham uma aura de refinamento estético e
intelectual que dignifique a nação. Sarkozy não pretende irradiar nada
disso. No ano seguinte à sua eleição, em 2007, sua vida doméstica digna
de tabloide – um divórcio sensacionalista e um novo casamento ainda mais
sensacionalista –, aliada a seu óbvio prazer de frequentar os
super-ricos, lhe valeu o apelido de “Président Bling-Bling” (algo como
“Presidente ostentação”). Sua popularidade despencou, e não parou mais
de afundar.
altando
poucos meses para o fim do mandato, Sarkozy se prepara para enfrentar a
reeleição no papel de azarão, o que implica um esforço que seus
assessores chamaram de “represidencialização”. Em outubro passado, ele
inaugurou uma exposição de arte moderna que viajará pelo país e será
exibida gratuitamente. Era uma ocasião para ser visto junto ao povo,
levando a grande arte ao homem comum. Ao contemplar um quadrado
monocromático laranja, pintado por Yves Klein, ele manifestou admiração:
“Isto custa milhões.” Em seguida, expressou espanto: “Um Klein vale
mais que um Léger? Menos que um Matisse?” Suas observações provocaram
grunhidos de escárnio e perplexidade na imprensa. Mas ele desconsidera a
etiqueta com tal força e frequência que não se pode chamar isso de
gafe.
Poucos dias depois, num encontro de líderes do continente, o
primeiro-ministro britânico David Cameron disse algo que Sarkozy não
gostou, e ouviu do presidente francês: “Você perdeu uma boa oportunidade
de ficar calado.” Anos atrás, durante uma audiência com o papa, foi
visto checando seu BlackBerry. “Ele profana tudo”, diz Bruckner. Suas
bufonarias contribuem para uma desconfiança profunda, a percepção de que
não é autêntico e, o que é pior, não é suficientemente francês para o
cargo.
Por outro lado, o próprio cargo já não é tão francês quanto costumava
ser. A França não é mais um Estado soberano: é um dos 27 países da União
Europeia. No papel, a França tem um Executivo forte e os franceses veem
seu líder como uma espécie de rei republicano, eleito não só para
governar, mas para reinar. A UE não permite isso. O escritor e
economista Jacques Attali exagerou quando me disse que “a Presidência
está quase sem poder”. Mas não exagerou o sentimento dos franceses – a
sensação de vertigem política que acompanhou a integração europeia.
A França já não controla sua moeda. Já não controla suas fronteiras. Tem
controle apenas limitado sobre sua defesa. Na imagem de Attali:
“Estamos como num desenho animado, em que as pessoas veem alguém que
ainda corre, sem saber que o penhasco acabou. Aquele lá é o presidente.”
Para Attali, a França de hoje é uma “terra de ninguém”. E o que é pior,
ressalta ele, “fizemos isso de propósito, por vontade própria, no
processo de construção de um Estado federal europeu”. E agora o sucesso
da Europa é muito incerto. “Esse é o malaise da situação
francesa”, disse ele, “ter desistido do Estado como base da identidade,
sem adquirir as vantagens de uma nova identidade.”
Attali é um velho teórico do Partido Socialista, por isso é
surpreendente que Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional, o partido
de direita radical ultranacionalista, tenha me descrito a situação
francesa em termos semelhantes: “Tudo o que fez a grandeza da França – o
dinamismo, a inovação, a abertura – foi aniquilado pela União
Europeia.” Ela disse que o país está “arruinado”, e arrolou alguns itens
favoritos do seu discurso: “A França tem 1,6 trilhão de euros em
dívidas, um déficit anual de 140 bilhões, 4 milhões de desempregados.
Não exporta mais nada. Não tem voz autônoma entre as nações.” (Ela
exagera o problema: a França tem a quinta maior economia do mundo e o
quinto maior volume de exportações.)
Embora façam o mesmo diagnóstico – que a França está sendo destruída
pela Europa –, Marine Le Pen e Attali chegam a conclusões opostas: ela
quer tirar a França da zona do euro antes que seja tarde, e ele acredita
que a única maneira de assegurar a sobrevivência do país seja
aprofundar a união.
“Falando sério, a França pode ficar mais degradada do que está hoje?”,
perguntou Marine Le Pen. Attali acredita que pode. E relembrou o que
veio antes da União Europeia – “Primeira Guerra Mundial, nazismo,
comunismo, Segunda Guerra Mundial etc.” – para concluir: “A nação
isolada é impossível. Temos que ser a Europa.” Marine Le Pen considera
prudente abandonar a zona do euro antes que a catástrofe ocorra: “Não
exijo nada mais do que o resto das nações do planeta tem: uma moeda,
terra, a possibilidade de meu povo fazer suas próprias leis.”
Até a crise da dívida, a hipótese sombria de Marine Le Pen de que uma Europa unida fracassaria era recebida com risos pelo establishment político.
O principal conselheiro de Sarkozy para política externa, Jean-David
Levitte, me disse: “Estamos condenados ao sucesso porque não podemos
abandonar o euro.” Mas o que fazer? Ninguém em Paris soube dizer.
À medida que a crise se aprofundava, Sarkozy reagia com uma retórica
cada vez mais vigorosa. Em meados de outubro, disse a parlamentares de
seu partido, a União por um Movimento Popular (UMP), de centro-direita:
“Nosso destino será decidido nos próximos dez dias.” Mais tarde, em
Nice, advertiu: “Aqueles que destroem o euro serão responsáveis pelo
ressurgimento do conflito em nosso continente.”
Àquela altura, estava claro que a sobrevivência do euro dependia da
Alemanha, a potência econômica da Europa. Mas os alemães estavam
cansados de bancar a gastança dos vizinhos. A França estava afundada
em dívidas e, ao falar em guerra e paz, Sarkozy compensava sua
vulnerabilidade avisando à chanceler Angela Merkel que ela não tinha
alternativa. Ao mesmo tempo, preparava o terreno para a campanha da
reeleição. Quando chegou ao poder, em maio de 2007, a economia francesa
ia bem. Seu slogan de campanha foi “Juntos, tudo se torna possível”. Não
admira que os franceses se sintam decepcionados. A maior vitória de
Sarkozy foi passar a idade da aposentadoria de 60 para 62 anos. Agora,
em tempos de austeridade, quase nada parece possível – o que obviamente
não cola como slogan de campanha. Mas se ele puder dizer que salvou a
República, evitou a aniquilação econômica e protegeu a França do
espectro da guerra, já dá uma boa plataforma.
orque
ele é baixinho e pomposo; porque acha que a França deve liderar a
Europa e a Europa, o mundo; porque é abrasivo e agressivo na busca do
poder, e autocrático e descarado em seu exercício; porque é
exibicionista e oportunista, bem como capaz, astuto e ágil; porque se vê
ao mesmo tempo como conservador e reformista, e não é movido por
ideologia, mas por instinto e impulso; porque não nasceu nem foi criado
para governar, mas é um outsider que invadiu o establishment,
convencido de que seu destino era entrar na história para alterar seu
rumo; porque dá a impressão de desdenhar as elites esnobes, mas está
louco para que elas o aceitem; porque cresce na crise e tende a tropeçar
quando não está sob pressão; e porque busca projetar a influência
francesa no exterior para aumentar sua estatura em casa, Nicolas Sarkozy
é frequentemente tido como um candidato a Napoleão. Não se trata de um
elogio. Foi Marx quem decretou que chamar alguém de bonapartista é uma
ofensa. Ao analisar Napoleão III, comparando-o a seu tio Napoleão I, ele
disse que grandes figuras históricas são protagonistas primeiro de uma
tragédia, e depois de uma farsa. Muitos franceses dizem hoje que Sarkozy
é ambas, tragédia e farsa.
o
início, Nicolas Sarkozy foi o presidente francês mais popular desde a
criação da Quinta República. Hoje, é o mais impopular. O que esfriou o
entusiasmo dos franceses não foi tanto sua política, mas seu estilo. A
antipatia é pessoal. “Ele é odiado”, me disse Saïd Mahrane, repórter
político da revista semanal Le Point. “E por que é odiado?
Porque despertou uma esperança louca.” O fervor com que é rejeitado só
pode ser compreendido como consequência de uma desilusão. “Eu adoro
Sarkozy”, disse-me um ex-membro de sua equipe, “mas estou muito, muito,
muito decepcionado com seu governo.” Ele prometeu demais e depois não
cumpriu seu programa, disse o ex-assessor: “No fundo, ele é um político
da velha escola. Um homem de campanhas, de guerra, de tomar o poder.”
Para a grande maioria dos franceses que não tolera o presidente, disse
Pascal Bruckner, “tudo o que diz respeito a ele é detestável, até mesmo
sua baixa estatura”. O desprezo físico equivale a um tipo de “racismo
contra as pessoas pequenas”, disse Bruckner, e acrescentou: “Há também
um pouco de antissemitismo, não admitido porque não pode ser declarado,
mas na consciência coletiva ele é um estrangeiro, não é daqui.”
Seu nome de batismo é Nicolas Paul Stéphane Sarközy de Nagy-Bócsa. Seu
pai, Pál István Ernö Sarközy de Nagy-Bócsa, era um refugiado apátrida,
um aristocrata sem título que fugiu com os pais para a Alemanha nazista
depois da invasão da Hungriapelo Exército Vermelho, em 1944. Voltou
depois para casa e descobriu que a propriedade da família havia sido
tomada. Em 1948, fugiu novamente. Foi parar na Áustria, onde foi
recrutado pela Legião Estrangeira Francesa. Serviu por cinco anos e
estava prestes a ser enviado à Indochina quando um médico de Marselha –
um compatriota húngaro – concedeu-lhe a dispensa médica. Sua próxima
parada foi Paris. Chegou sem um tostão e, segundo ele, descalço, e
dormiu as primeiras noites numa estação de metrô. Passou a trabalhar em
publicidade e progrediu. Estabeleceu-se no subúrbio chique de
Neuilly-sur-Seine, logo adiante do Bois de Boulogne, e mais tarde
comprou uma casa de campo com o dinheiro que disse ter ganho ao jogar
bacará contra o ator Yul Brynner, no Cassino de Deauville. Abriu sua
própria agência de publicidade e fez campanhas para grandes casas de
moda e cosméticos. Continuou apátrida até 1975, quando adquiriu a
cidadania francesa.
Aos 82 anos, Pál Sarkozy publicou um livro de memórias, em 2010, no qual
se gaba de ser um insaciável viciado em sexo, que decidiu, a partir do
momento em que seduziu sua babá, aos 11 anos, levar para a cama todas as
mulheres que pudesse, pelo menos até se casar com sua quarta e atual
esposa, uma modelo – o que já dura quarenta anos. No entanto, ele se
lembra de ter se sentido ultrajado na noite de núpcias de seu primeiro
casamento, ao descobrir que a noiva não era virgem. Ela era Andrée
Mallah, uma francesa católica, filha de um médico de ascendência
greco-judaica. Tiveram três filhos até que o casamento se desfizesse, em
1959, quando Nicolas, o menino do meio, tinha 4 anos.
Sarkozy disse certa vez: “O que fez de mim o que sou é a soma de todas
as humilhações que sofri na infância.” Sofreu por ser baixinho, por ter
pais divorciados e – mesmo depois de abreviá-lo e tirar o trema – por
ter um nome estrangeiro. Foi reprovado no primeiro liceu que frequentou e
transferido para uma escola católica. Disse que pouco via seu pai e que
na casa de sua mãe nunca havia dinheiro suficiente. “Ele nunca cuidou
de nós quando precisamos dele. Tive de trabalhar para pagar meus
estudos”, contou – alegações que pai e mãe negaram. Apesar disso,
formou-se em direito e administração antes de se matricular na Sciences
Po – Institut d’Études Politiques de Paris, cujos ex-alunos compõem a
maioria da classe dominante francesa. Sarkozy não é um deles: não passou
no exame final de inglês.
“Quando menino, ele disse ao pai que queria ser presidente quando
crescesse”, registra o telegrama de 2005 vazado pelo WikiLeaks. “Seu pai
húngaro retrucou: ‘Nesse caso, vá para a América, porque com um nome
como Sarkozy você nunca vai conseguir isso aqui.’ Provar que ele estava
errado, segundo Sarkozy, foi um marco em seus esforços para obter
sucesso e mudar a França.”
tolerância
para a humilhação, até mesmo um certo gosto por ela, é pré-requisito
para qualquer alto cargo na democracia moderna. O problema surge quando
um político fica insensível à humilhação – deixa de temê-la ou se sente
imune a ela. A dramaturga francesa Yasmina Reza acompanhou Sarkozy
durante o ano em que ele fazia campanha para presidente e registrou suas
impressões em um livro. No seu relato, Sarkozy só tem a seu favor o
desejo de poder – a energia maníaca, a necessidade compulsiva de se
impor à multidão e conquistar seu amor, o impulso voraz para chegar ao
que os franceses gostam de chamar de “poder supremo”. O que ele pretende
exatamente fazer com esse poder nunca é declarado. Em seu livro de
campanha intitulado Testemunho, ele afirma: “Não tenho a
pretensão de apresentar alguma teoria nova ou um novo marco intelectual.
Quero simplesmente contar a história de uma vida em que a vontade de
agir de forma decisiva e obter resultados tem um papel importante.” Aos
22 anos, o jovem militante do partido de direita neogaullista conquistou
um assento no conselho municipal de sua cidade natal, Neuilly, onde sua
mãe era secretária do prefeito. Cinco anos depois, em 1983, o prefeito
morreu e Sarkozy entrou na disputa. Venceu e foi prefeito nos dezenove
anos seguintes. Os socialistas estavam no poder e o líder informal da
oposição era o prefeito de Paris, Jacques Chirac. Sarkozy buscou nele um
mentor e, com o aumento da proximidade entre ambos, Chirac o adotou
como filho político. Em sua prática de direito comercial, também
cultivou homens poderosos com quem poderia aprender – Silvio Berlusconi
foi um de seus clientes – e começou a ganhar dinheiro.
Mesmo assim, continuava a ser um aprendiz, labutando na obscuridade, até
se tornar instantaneamente famoso, em 1993, quando um homem com
explosivos amarrados no corpo, que se autodenominava “A Bomba Humana”,
entrou num jardim de infância de Neuilly, tomou as crianças como reféns e
ameaçou explodi-las. Sarkozy correu para o local, atravessou o cordão
policial e entrou sozinho na escola. Depois de um tempo, saiu com
algumas das crianças e voltou para negociar mais. Fez oito dessas
viagens ao longo de 46 horas, até que a polícia, que havia invadido
furtivamente o prédio, matou o sequestrador a tiros.
Sarkozy estava casado havia um ano quando se tornou prefeito de Neuilly.
Um ano depois, enquanto celebrava o casamento de Jacques Martin – um
apresentador de televisão de 51 anos –, se apaixonou pela noiva, Cécilia
Ciganer-Albéniz, uma ex-modelo de 26 anos, de origem estrangeira (pai
judeu moldavo e mãe espanhola), grávida de nove meses. Enquanto a casava
com Martin, o prefeito pensou: “Por que isso? Ela é minha.” Os Sarkozy
tiveram dois filhos e os Martin, duas filhas. As famílias passavam as
férias juntas. Em 1988, os Martin se divorciaram, e os Sarkozy fizeram o
mesmo apenas em 1996. A mulher de Sarkozy não aceitava a separação,
mesmo depois que ele e Cécilia passaram a morar juntos.
Enquanto isso, Sarkozy foi nomeado ministro do Orçamento no governo do
primeiro-ministro Édouard Balladur. Chirac o apadrinhara. Mas quando
Chirac concorreu à Presidência, Sarkozy apoiou Balladur. Ao vencer a
disputa, Chirac o chamou de traidor. “Aos olhos da mídia, deixei de ser
‘o Mozart da política’, com toda a promessa de sucesso, para ser um Iago
traiçoeiro e falso”, disse o presidente.
Durante décadas, antes que a crise atual tornasse o temor de declínio
nacional concreto e doloroso, os franceses sofreram a agonia da
insegurança. Intermináveis pesquisas de opinião refletem o sentimento
generalizado de declínio. Essa atitude é quase o oposto do espírito
expresso pelo pai da Quinta República, Charles de Gaulle, na abertura de
suas Memórias de Guerra – um parágrafo que muitos franceses
eram capazes de recitar de cor: “Por toda a minha vida, tive uma certa
ideia da França. Ela é inspirada tanto pelo sentimento quanto pela
razão. Meu lado emotivo imagina a França como a princesa dos contos de
fadas ou a madona dos afrescos, nascida para um destino eminente e
excepcional. O instinto me diz que a Providência a criou para triunfos
absolutos ou infortúnios exemplares. Se, no entanto, acontece de a
mediocridade marcar seus fatos e gestos, tenho a sensação de uma absurda
anomalia, imputável às falhas dos franceses, e não ao gênio da pátria.
Em suma, a meu ver, a França não pode ser a França sem grandeza.”
Esse hino romântico foi o mito de criação da França do pós-guerra. O
país tinha acabado de passar por uma derrota e uma desonra colossais – a
capitulação à ocupação nazista –, e De Gaulle se refere a isso como
“uma absurda anomalia”.
Mas ele liderou as forças de resistência da França Livre, e depois
arregimentou o país para se refazer à imagem de sua lenda, como uma
nação de resistentes. Seu credo – se não tem grandeza, não é francês –
ofereceu uma solução para o passado, tornando-o habitável. Com essa
ideia, os franceses conseguiram três décadas de crescimento e
prosperidade, que eles chamam de Les Trente Glorieuses. Hoje, a França já não tem uma ideia certa de si mesma, ou pior, nenhuma ideia unificadora, apenas incerteza.
s franceses são pessimistas por natureza”, disse-me Marc Weitzmann, um romancista que editava a revista cultural Les Inrockuptibles.
“É um sinal de narcisismo. Na verdade, apesar do desemprego crônico, os
franceses desfrutam de uma qualidade de vida excepcionalmente alta.”
Weitzmann, que tem 50 anos, disse que sua geração tem saudades da época
de sua infância, dos últimos anos dos Trente Glorieuses.
“Aquela época é mais bem vista agora. Mas pense de onde vinha a riqueza
do país. Uma boa parte vinha da globalização de então.” Weitzmann se
referia ao ex-império da França na África e no Sudeste Asiático, sobre
grande parte do qual a França continuou a exercer enorme poder, com
retornos cada vez menores, até os anos 90. “O que nós chamamos de
globalização hoje é apenas o fato de que a globalização se voltou contra
nós”, afirmou.
Weitzmann me disse que a percepção de que a França já não é importante
pesa sobre seus colegas intelectuais: “O narcisismo tem algo a ver com
um sentimento de ilegitimidade. Os intelectuais franceses não se sentem
bem. Há um sentimento do tipo ‘não somos realmente o que fingimos ser’, e
é preciso compensar isso com muito narcisismo e autopromoção.” O
governo de Sarkozy também não tem como escapar do fato de que a França
agora é um país pequeno. Como me disse cautelosamente seu chefe de
gabinete, Xavier Musca, quando visitei o Palácio do Eliseu: “Percebemos
agora que a França sozinha não pode desempenhar o que considera ser seu
papel histórico.”
sinal
mais forte da perda de esperança talvez seja a ascensão da Frente
Nacional. Até Marine Le Pen assumir a sua liderança, no ano passado, a
Frente era comandada por seu pai, Jean-Marie Le Pen, que começou na
política como um arruaceiro fascista no final da década de 40. Quando
concorreu à Presidência, em 1974, obteve menos de 1% dos votos. Mas em
1988, e novamente em 1995, Le Pen sacudiu o sistema ao obter 15% dos
votos e chegar em quarto lugar. Foram resultados sensacionais para um
partido liderado por alguém que negava convictamente o Holocausto e não
contestou de forma convincente relatos de que havia torturado durante a
Guerra da Argélia. Le Pen não tinha um programa político claro, exceto
expulsar todos os imigrantes, legais e ilegais.
Embora o poder na Quinta República tenha sempre estado nas mãos da
centro-direita ou da esquerda socialista, muitos partidos disputam as
eleições presidenciais, que são realizadas em dois turnos: o primeiro é
uma rodada eliminatória e, uma quinzena mais tarde, se dá o confronto
entre os dois candidatos mais votados. Quando Chirac concorreu à
reeleição, em 2002, sua popularidade estava em baixa e era investigado
por corrupção. O Partido Socialista, prejudicado por disputas internas e
incoerências, não estava na sua melhor forma. Embora Chirac tenha
vencido o primeiro turno, Le Pen ultrapassou os socialistas e ficou em
segundo lugar. No dia da rodada final, eleitores socialistas
envergonhados votaram aos milhares em Chirac e lhe proporcionaram uma
vitória esmagadora, mas Le Pen teve quase um quinto dos votos. Ele não
havia evoluído muito ao longo dos anos: a França é que estava mudando.
Ao assumir o segundo mandato, Chirac convidou Sarkozy para ser ministro
do Interior. Não gostava nem confiava nele, nem o havia perdoado pela
traição em 1995. Em suas memórias, descreve Sarkozy da mesma maneira que
quase todos que não têm razão para temê-lo na política francesa:
“Nervoso, impetuoso, alguém que transborda de ambição e não duvida de
nada, muito menos de si mesmo.” Apesar de uma relação de trabalho às
vezes conflituosa, Chirac reconheceu em Sarkozy “um dos políticos mais
talentosos de sua geração”.
Todos supunham que concorreria à Presidência depois de Chirac, e a sua
ascensão se deveu, em parte, à percepção de que era o político que
melhor poderia deter Le Pen. Sua imagem pública era a de um linha-dura,
com uma postura firme de centro-direita sobre imigração, dom para a
oratória e uma capacidade infalível de produzir manchetes.
Em 2005, quando os guetos de imigrantes dos subúrbios de Paris foram
inflamados por tumultos que logo se espalharam pelo país, Sarkozy
organizou a repressão policial, declarando que iria limpar as ruas da racaille com uma Kärcher. Racaille
significa “ralé”, mas na gíria do gueto francês tem conotação de
depreciação racial. E Kärcher, assim como Wap, é a marca de uma lavadora
de alta pressão para limpar edifícios e calçadas – uma máquina capaz de
rasgar uma pessoa.
"Os franceses são pessimistas por natureza”, disse-me Marc Weitzmann, um romancista que editava a revista cultural Les Inrockuptibles.
“É um sinal de narcisismo. Na verdade, apesar do desemprego crônico, os
franceses desfrutam de uma qualidade de vida excepcionalmente alta.”
Weitzmann, que tem 50 anos, disse que sua geração tem saudades da época
de sua infância, dos últimos anos dos Trente Glorieuses.
“Aquela época é mais bem vista agora. Mas pense de onde vinha a riqueza
do país. Uma boa parte vinha da globalização de então.”
Sarkozy foi acusado de fazer colocações incendiárias, inclusive de
propor uma limpeza étnica. Mas ele sabia que suas bravatas mais
entusiasmavam do que afastavam o eleitorado francês. Quando falou num
comício da UMP sobre seus planos para combater o crime, levantou os
olhos do discurso escrito, sorriu e disse: “Quando penso nas críticas
que me fizeram por falar racaille...” A multidão o interrompeu
com aplausos e risos. Sarkozy retesou seu sorriso e disse, batendo com a
mão no peito: “Se vocês soubessem o que realmente penso das pessoas que
chamei de racaille, veriam que fui afetuoso.”
Para Sarkozy, a cura estava no trabalho. Todos viam que ele era o
político mais trabalhador do país – visitando fábricas e hospitais, se
misturando às multidões – e todos viam o quanto ele gostava disso.
A atividade o revigorava, e ele disse que, se os franceses trabalhassem
mais, o país seria revigorado. Essa era, segundo Sarkozy, a diferença
entre ele e os socialistas: enquanto os adversários significavam
desemprego e alienação, ele representava o valor positivo do trabalho.
“Desnaturamos a República por sobrecarregá-la de igualitarismo,
nivelamento social e caridade”, declarou. A França precisava “dar as
costas ao misérabilisme”, e acrescentou: “Quero ser o presidente que vai se esforçar para moralizar o capitalismo.”
le
lançou sua candidatura um ano antes de Barack Obama lançar a sua e,
embora suas posições políticas, caráter, história pessoal e estilo não
pudessem ser mais diferentes, Sarkozy também se definia como um líder da
transformação: um homem de ascendência estrangeira cuja própria
candidatura era uma afirmação dos ideais da República. Ao ser indicado
pelo seu partido, Sarkozy disse: “Não posso deixar de pensar naqueles
que me fizeram sonhar com outro destino, com uma vida maior, com um
futuro mais emocionante.” Essas pessoas eram “os heróis da Resistência e
da França Livre, os homens com quem dei meus primeiros passos na
política. Eles me ensinaram – a mim, um pequeno francês de sangue misto –
a amar a França e ter orgulho de ser francês”.
Ao mesmo tempo, Sarkozy censurava o clientelismo e a corrupção do establishment
político. Defendia uma “democracia irrepreensível”. Não se importava
que a heterodoxia deixasse apreensivos muitos dos veteranos do seu
partido. Seu objetivo no primeiro turno era a eliminação da Frente
Nacional. Falava constantemente de lei e de ordem, da deportação de
imigrantes ilegais, e argumentava que se eles não quisessem abraçar a
identidade francesa tanto quanto ele havia feito, não tinham lugar na
República: “Não vou aceitar aqueles que desejam viver na França sem
respeitar e amar a França.”
No primeiro turno, ele arrasou a Frente Nacional e, para o segundo,
apelou à esquerda, invocando os patriarcas do socialismo: “Minha França é
a dos trabalhadores que acreditavam na esquerda de Jean Jaurès e de
Léon Blum, e que não reconhecem a esquerda imobilista que não respeita
mais o trabalho.”
epois
de sua última aparição de campanha, Yasmina Reza encontrou Sarkozy
revolvendo uma pilha de jornais que apontavam sua vitória iminente. Ele
disse: “Terei um palácio em Paris, um castelo em Rambouillet e um forte
em Brégançon. É assim que será.” Regozijo, deslumbramento ou
atordoamento? Nos dias anteriores à votação, ele havia anunciado que, se
ganhasse, marcaria sua vitória recolhendo-se a um mosteiro. “Vou
pensar, descansar, me retirar”, disse a Reza. “Preciso me preparar para
ocupar esse lugar. Preciso de calma e serenidade para encontrar a
distância necessária.” Em vez disso, Sarkozy deu uma festa na noite da
eleição para uma pequena multidão de gente rica e influente no
Fouquet’s, uma brasserie chique nos Champs-Élysées. Na manhã
seguinte, foi com a família fazer um cruzeiro na costa da ilha de Malta
no iate de seu amigo Vincent Bolloré, um investidor agressivo e
bilionário.
Fouquet’s e o iate: ainda hoje, quando os franceses discutem sua aversão
a Sarkozy, a conversa tende a voltar para a impressão que ele causou
nos primeiros dias depois da eleição – a ostentação, o exibicionismo, a
vulgaridade de novo-rico. Os partidários de Sarkozy lembram que o
casamento dele estava acabando e que seu comportamento imprudente era
uma tentativa de salvá-lo. Cécilia já o havia deixado antes: em 2005,
ela se apaixonou por Richard Attias, um produtor de eventos, e foi viver
com ele por um tempo. “Não me vejo como primeira-dama. Acho muito
chato”, disse ela. Ainda assim, Sarkozy a persuadiu a voltar, para
ajudá-lo a manter a aparência do casamento durante a campanha. Segundo
todos os relatos, queria mesmo ficar com ela. “Ele não dá a mínima para o
Fouquet’s e o iate de Bolloré – era tudo para agradar Cécilia”,
contou-me um dos assessores mais próximos de Sarkozy naquela época.
Mas um presidente não é um homem qualquer. Quando se trata de
administrar o casamento, ele pode oferecer à esposa aventuras fora do
repertório romântico convencional. Assim, dois meses depois da eleição, a
imprensa noticiou que Cécilia tinha ido à Líbia como representante do
marido para se encontrar com o coronel Muammar Kadafi. Era uma tentativa
de obter a libertação dos “Seis de Bengasi” – cinco enfermeiras
búlgaras e um médico palestino que haviam sido falsamente acusados de
injetar sangue infectado por HIV em crianças líbias. Havia anos que
diplomatas da União Europeia negociavam com Trípoli e estavam nas
vésperas de um acordo quando Cécilia chegou, sem aviso prévio. A UE
despachou um enviado a Paris para advertir Sarkozy sobre os perigos da
diplomacia amadora, mas ele não se intimidou. Duas semanas depois,
quando os Seis de Bengasi foram libertados, ele reivindicou mérito total
para a França, e mandou Cécilia num jatinho do governo para levá-los à
Bulgária e sair na foto de regresso ao lar.
exibicionismo
de Sarkozy provocou protestos em capitais europeias, mas os diplomatas e
empresáriosfranceses não perderam tempo desembarcando em Trípoli a fim
de obter bilhões de dólares em negócios – a construção de uma usina de
dessalinização nuclear, a venda de mísseis à Líbia, a compra de petróleo
e gás para a França – e planejando uma visita oficial de Kadafi a
Paris. A oposição socialista reclamou que os negócios equivaliam ao
pagamento de resgate e propinas a Kadafi. Montou-se um inquérito
parlamentar, cujo efeito mais visível foi o de dar à esquerda um
palanque para falar sobre o casamento acidentado de Sarkozy. Como disse
Daniel Cohn-Bendit, líder do Partido Verde, “a Europa foi explorada para
que o casal Sarkozy pudesse ter uma sessão de terapia familiar”.
Ainda assim, o resgate dos reféns foi aclamado como um triunfo para o
assertivo novo presidente. A popularidade de Sarkozy atingiu seu ponto
mais alto. Então, Cécilia o deixou. Voltou para Richard Attias, e o
Palácio do Eliseu anunciou o divórcio. Sarkozy logo começou a namorar
Carla Bruni, uma supermodelo francesa, nascida na Itália, que virou
estrela pop, e cujo currículo romântico incluía casos com Eric Clapton,
Mick Jagger e Laurent Fabius, ex-primeiro-ministro socialista. Os
rumores de que algo estava rolando entre Sarkozy e Bruni começaram no
final de novembro de 2007, pouco mais de uma semana depois de serem
apresentados em um jantar. O envolvimento do presidente com uma isca de paparazzi
foi recebido com consternação por uma França cansada de ver o Eliseu
como cenário de novela. Sim, Bruni era de uma elegância impecável, mas
era também famosa por dizer que a monogamia a entediava e o “desejo
ardente” nunca durava mais que duas ou três semanas.
Em meio a essa intriga romântica, o coronel Kadafi chegou à cidade. Na
véspera da visita, debateu-se muito se Sarkozy estava capitulando diante
de um terrorista. A secretária de Direitos Humanos, Rama Yade, uma
francesa nascida no Senegal, formulou o problema de maneira ampla: “O
coronel Kadafi precisa compreender que nosso país não é um capacho no
qual um líder, terrorista ou não, pode entrar e limpar seus pés sujos de
sangue.” Kadafi montou a sua grande tenda beduína perto do Eliseu. Fez
um arremedo de protocolo diplomático, chegando atrasado a audiências
oficiais e visitando os santuários da cultura francesa conforme lhe dava
na veneta. (Uma viagem a Versalhes para admirar o trono do Rei Sol
ofendeu os franceses particularmente.) Zombou do presidente, repetindo
que a França não tinha nada a lhe ensinar sobre direitos humanos. E
enquanto Sarkozy recebia as famílias das vítimas da explosão de um avião
francês por terroristas líbios (um crime pelo qual o cunhado de Kadafi
foi condenado em um tribunal francês), o ditador desfilava em um comboio
de vinte carros até o Museu do Louvre para passar alguns minutos
contemplando a Vênus de Milo.
“Kadafi se divertiu à custa de Sarkozy”, disse-me uma autoridade. “Foi
uma humilhação. Pela primeira vez, Sarkozy parecia fraco. E foi a
primeira vez que ele perdeu pontos nas pesquisas. Tinha de fazer alguma
coisa para apagar aquilo.” O que Sarkozy fez foi providenciar sua
primeira aparição pública com Carla Bruni: uma visita à Euro Disney. A
minha fonte se espantou: “Isso foi pior do que Kadafi! Ela é uma notória
femme fatale – tinha ficado com Mick Jagger, tinha ficado com
todos – e, para alguém que já é visto como uma pessoa inculta, a Euro
Disney é o pior lugar para se visitar na França.”
Foi nesse ponto, disse ele, que a lembrança da festa no Fouquet’s, do
iate de Bolloré, de todo o drama com Cécilia e do drama com Kadafi se
juntou na cabeça dos franceses para formar um juízo negativo definitivo
sobre Sarkozy. “As pessoas se perguntavam: quem é este que elegemos?”,
disse a autoridade. Depois da Euro Disney, houve uma enxurrada de cenas
públicas de namoro – Sarkozy e Carla Bruni em Luxor, o presidente com
óculos Ray-Ban e a camisa desabotoada no peito, hospedado num resort
extravagante, na capa de todas as revistas de fofoca. Em dois meses,
eles estavam casados.
Mas o público francês não se comoveu. Poucas semanas depois do
casamento, Sarkozy apareceu em uma exposição agrícola, e quando um homem
se recusou a apertar sua mão, retrucou: “Casse toi, pauvre con.”
A frase ostensivamente antipresidencial, que pode ser traduzida por “Vá
à merda, babaca”, foi discutida como mais uma prova da truculência
essencial de Sarkozy. “Ele estava muito deprimido naquele período”,
contou-me um dos conselheiros do presidente. “Então, cometeu muitos
erros de comunicação. Foi há quatro anos, mas ele não se recuperou
completamente daquilo. É incrível como a imagem dos erros grudou nele.”
m
um fim de semana de julho de 2010, a polícia de Grenoble, nos Alpes,
matou a tiros um homem de ascendência norte-africana, suspeito de roubar
um cassino. O assassinato provocou dois dias de tumultos, durante os
quais jovens de guetos de imigrantes no subúrbio incendiaramem torno
decinquenta carros. No mesmo fim de semana, em Saint-Aignan, um povoado
do centro do país, a polícia matou um trabalhador migrante, membro de
uma comunidade cigana, que não parou numa blitz. Também ali houve
tumulto e uma delegacia foi incendiada. Sarkozy ordenou que centenas de
acampamentos ciganos fossem desmontados e anunciou planos para deportar
membros da comunidade, a maioria dos quais havia imigrado legalmente da
Romênia e da Bulgária. Foi a Grenoble, onde reiterou o plano de deportar
ciganos e declarou uma nova guerra: “A principal causa da violência é a
leniência”, disse ele, referindo-se não apenas à aplicação frouxa da
lei. “Pais negligentes poderão ser objeto de acusações criminais.”
Sarkozy disse que qualquer cidadão francês nascido no exterior que
atacasse uma autoridade pública deveria perder a cidadania: “Quem atira
num agente que representa as forças da ordem não merece mais ser
francês.”
Evidentemente, o vilipêndio das comunidades de imigrantes foi pontuado
por cautelas banais: “De nenhuma maneira estou estigmatizando os
ciganos”; “Estou falando somente dos estrangeiros em situação
irregular”. Mas para muitos – mesmo dentro de seu próprio partido – a
declaração do presidente de que a França entraria de novo no negócio de
deportação em massa, e de que deveria traçar uma linha entre os nativos e
os nascidos no exterior, trazia ecos de Vichy. “Foi uma mancha na nossa
bandeira”, disse-me Dominique de Villepin. Na verdade, a França vinha
deportando ciganos há anos, alegando vadiagem, e os eleitores aprovavam a
medida com entusiasmo. Mas o fato de Sarkozy destacar todo o grupo
étnico era de legalidade duvidosa, e o espetáculo que se seguiu de
famílias inteiras despachadas em trens para o Leste provocou condenação
mundial.
A hostilidade de Marine Le Pen aos estrangeiros levou-a a comparar os
pequenos grupos de muçulmanos que rezam nas ruas de Paris com o exército
de ocupação de Hitler. Mas ela não ficou bem impressionada com a
campanha de Sarkozy contra os ciganos. Quando perguntei o que achara do
discurso dele em Grenoble, levou as mãos à boca e fez o gesto de quem
toca flauta. “O problema é que Nicolas Sarkozy tem palavras
grandiloquentes e mão fraca”, disse. “Ele levou os ciganos para uma
fronteira que não existe mais e que eles cruzaram de volta quatro
minutos mais tarde, diante dos jornalistas perplexos. É tudo encenação.”
Le Pen se apresenta como uma mulher comum e de bom-senso – mãe de três
filhos, divorciada e trabalhadora –, que vê um sistema quebrado e afirma
o óbvio: os políticos que vivem desse sistema não podem corrigi-lo.
Quase todas as pessoas com quem conversei em Paris disseram que ela deve
ser a maior preocupação de Sarkozy no primeiro turno da eleição de
maio. Mas como reagir?
Marine Le Pen gosta de dizer que as diferenças entre Sarkozy e os
socialistas são insignificantes: ambos estão afastados do povo francês
na sua devoção a uma Europa que funciona apenas para as elites
internacionais. Ela me disse que, ao contrário, “tem uma visão gaullista
da França – seu lugar no mundo, sua independência, à qual estamos muito
apegados, sua voz particular, sua soberania nacional”. E acrescentou:
“A divisão esquerda-direita não existe na França de hoje.” Em vez disso,
ela traça a divisão política entre “globalistas e nacionalistas”, uma
distinção que deixa Sarkozy numa posição desconfortável.
arkozy
estava na Liberty Island, no porto de Nova York, numa manhã de setembro
de 2011, de costas para a Estátua da Liberdade. Um grupo de alunos
estava abaixo dele, vestido no estilo dos Jovens Pioneiros Soviéticos,
com camisas brancas e lenços vermelhos no pescoço, cantando A Marselhesa com
vozes agudas e doces: “Avante, filhos da pátria, / o dia de glória
chegou. / Contra nós o estandarte ensanguentado da tirania se levanta.”
Durante toda a manhã, uma névoa quente e pesada envolvera o porto.
Agora, o nevoeiro estava se dissipando e o dia se iluminava, mas Sarkozy
não. De terno escuro, com seus cabelos pretos ondulados penteados para
trás, parecia um ator tentando se descontrair nos bastidores. Mas estava
no centro do palco e parecia incapaz de relaxar. Embora mantivesse as
mãos cruzadas na cintura, os dedos insistiam em se soltar e tinham de
ser recapturados. Os escolares cantavam: “Eles vêm até nós, / degolar
nossos filhos e nossas mulheres. / Às armas, cidadãos!”
Sarkozy estava na cidade para a Assembleia Geral das Nações Unidas, e
havia atravessado o porto para marcar os 125 anos de aniversário da
Estátua da Liberdade, um presente da França aos Estados Unidos. À frente
de um microfone, ele se recompôs e assumiu o ar de quem tem algo
importante a dizer. Falando de improviso, evocou os mortos do 11 de
Setembro e disse: “Para o povo francês, eles também são nossos mortos.”
Agregou essa ideia à lembrança de que França e Estados Unidos estavam
lutando juntos no Afeganistão e na Líbia. Terminou dizendo que os
americanos que combateram e morreram na Segunda Guerra e permanecem em
cemitérios da França representam um “pacto de sangue” que une os dois
países em “uma responsabilidade em particular – mostrar que a liberdade é
para todos”.
Fazer discursos desse tipo agrada a Sarkozy. Mais do que qualquer outro
presidente francês das últimasdécadas, ele procurou se apresentar como
um estadista internacional. Mas, entre as dúzias de repórteres que
cobriam a cerimônia, poucos parecem ter anotado o que ele disse. Estavam
curvados sobre seus BlackBerrys, absortos em notícias de Paris sobre
uma onda de ações policiais contra colaboradores do presidente. Tinham
sido apanhados num inquérito de corrupção sobre a venda de submarinos
para o Paquistão, em meados da década de 90, quando Sarkozy era ministro
do Orçamento do governo de Édouard Balladur.
Na noite anterior ao discurso de Sarkozy na ONU, Thierry Gaubert, então
seu subchefe de gabinete, fora detido e posto sob investigação. Horas
depois, a polícia invadiu a casa de Nicolas Bazire, um diretor do
conglomerado LVMH de artigos de luxo. Bazire, que fora chefe de gabinete
de Balladur e padrinho de Sarkozy em seu casamento com Carla Bruni,
havia sido detido. Na barca a caminho da Liberty Island, correu a
notícia de que Bazire também estava sob investigação. E agora os
BlackBerrys estampavam a notícia de que Brice Hortefeux, um dos
auxiliares mais próximos do presidente – padrinho de um de seus filhos,
seu ex-ministro do Interior e provável chefe de sua campanha à reeleição
–, também poderia ser interrogado.
história
do submarino paquistanês era bem conhecida. Para garantir o contrato
lucrativo, o ministro da Defesa de Balladur havia concordado em pagar
uma comissão de mais de 50 milhões de euros a vários intermediários,
inclusive chefes militares paquistaneses. (Essas comissões – na verdade
subornos – na época eram legais na França.) No momento em que o negócio
estava sendo fechado, a equipe de Balladur introduziu mais um
intermediário, Ziad Takieddine, um empresário franco-libanês que recebeu
uma comissão adicional de dezenas de milhões de dólares. Surgiram
suspeitas de que Takieddine abastecera os cofres da campanha de
Balladur, mas uma série de investigações não produziu nenhuma prova
conclusiva. Por fim, um juiz mandou a polícia revistar a casa de
Gaubert, confiscar documentos e interrogá-lo. A polícia também
interceptou seus telefonemas e o caso tornou-se público quando
transcrições dos grampos vazaram para a imprensa.
Em meados de julho, Nastasia, a filha de Gaubert, de 21 anos, havia
ligado para um amigo dizendo que a polícia tinha encontrado registros de
uma conta bancária secreta de seu pai nas Bahamas. “Ele abriu a conta
em nome da minha mãe”, disse ela. Nastasia contou que seu pai temia que
sua mãe, Hélène da Iugoslávia (uma princesa de verdade, da qual estava
separado), testemunhasse contra ele. Nastasia parecia ter certeza de que
seu pai era culpado. Além da conta nas Bahamas, disse, “ele também tem
uma na Suíça e uma em Israel – eles não descobriram essas”. Ela achava
que a única maneira de Gaubert evitar a prisão era fugir do país.
Segundo Nastasia, seu pai dissera à mãe: “Ninguém vai me ajudar, porque
estão todos mergulhados na merda. Hortefeux está na merda. E se Sarkô
não chegar ao segundo mandato, também estará na merda e ninguém vai
ajudá-lo.”
Depois que Gaubert e Bazire foram detidos e Hortefeux foi formalmente
implicado – e os três negaram qualquer irregularidade –, Hélène deu uma
entrevista ao Le Monde. Disse que havia conhecido Gaubert em
meados da década de 80, em Neuilly, quando Sarkozy era prefeito e seu
futuro marido era o braço direito dele. Os dois eram amigos íntimos,
parceiros em negócios e na política, e não demorou para que Gaubert se
tornasse subchefe de gabinete de Sarkozy. Se não estavam juntos, estavam
sempre ao telefone. “Thierry tornou-se indispensável para ele”, disse
Hélène. Quando começou a campanha de Balladur, Gaubert dizia a ela: “Vou
à Suíça cuidar do dinheiro.” Segundo Hélène, ele sempre voltava com
malas cheias de dinheiro, que entregava a Bazire. Gaubert raramente
falava com ela sobre dinheiro e finanças – e ela disse que não lhe
perguntava nada. Aludindo à sua herança real (seu pai ocupa o 1 643º
lugar na linha de sucessão do trono da Inglaterra), ela explicou: “Venho
de um meio em que não se fazem perguntas.”
ano
passado foi particularmente propício a escândalos na França e, à medida
que cada novo escândalo ofuscava o anterior, não deixando nenhum grande
partido ou facção incólumes, ia ficando difícil se surpreender com
eles. Houve o caso de Dominique Strauss-Kahn, preso e acusado de estupro
depois de manter relações sexuais com a camareira de um hotel em Nova
York. Ele perdeu o emprego de diretor-geral do Fundo Monetário
Internacional e a possibilidade de enfrentar Sarkozy como candidato
socialista, mas a denúncia desmoronou e Strauss-Khan voltou para casa,
onde enfrentou outra acusação de agressão sexual. Essa ação também foi
retirada porque o delito prescrevera, mas depois se noticiou uma nova
investigação, envolvendo uma rede de prostituição franco-belga que teria
levado mulheres da Europa para orgias de Strauss-Kahn em Washington.
Houve o caso Bettencourt, com alegações de que a campanha de Sarkozy
recebeu contribuições ilegais de Liliane Bettencourt, a velha herdeira
da L’Oréal [e que foi declarada incapaz pela Justiça no final de 2011]. Sarkozy diz que é inocente, mas o caso não acaba. O Le Monde publicou
uma prova definitiva de que os agentes de segurança do Estado,
repetidamente acusados de espionar jornalistas a pedido de Sarkozy,
tinham grampeado o telefone de um repórter do jornal que cobria a
investigação do caso Bettencourt.
Houve o caso Clearstream, um escândalo de complexidade bizantina,
envolvendo a venda de fragatas a Taiwan, com alguns cadáveres no meio
(um oficial da Marinha pescado nas águas de um porto da Ásia, um
empresário e um espião defenestrados na França), e listas forjadas que
pretendiam ligar contas bancárias offshore ilegais a políticos proeminentes, com destaque para Sarkozy.
E, em setembro, Robert Bourgi, experiente assessor para a África do
Eliseu, disse que havia supervisionado a entrega periódica de milhões de
dólares em dinheiro de vários chefes de Estado africanos – inclusive
com cédulas que recheavam tambores – para o caixa de campanha de
diversos políticos franceses.
Dizer que os franceses estão acostumados com trambiques do establishment
político não significa que sejam incapazes de se revoltar – e o caso de
Takieddine, Gaubert e Bazire foi considerado uma imundície incomum.
Ficou conhecido como o Caso Karachi porque, em 2002, um homem-bomba
explodiu na cidade um ônibus que transportava engenheiros franceses para
um estaleiro naval, onde os submarinos estavam sendo construídos. Onze
franceses e três paquistaneses foram mortos, e os juízes de Paris que
investigam o caso acreditam que membros das Forças Armadas paquistanesas
realizaram o atentado em retaliação à decisão de Chirac de
interromperas comissões pagas no tempo de Balladur. É implausível que
Sarkozy desconhecesse completamente as negociações escusas ligadas aos
contratos paquistaneses. Por isso, o escândalo foi visto como uma ameaça
à sua Presidência, embora ele tenha rejeitado as insinuações,
chamando-as de “conto de fadas” e “grotescas”, e nenhuma prova o vincule
diretamente ao caso.
Sarkozy goza de imunidade presidencial, mas em 2010, quando jornalistas
que cobriam uma reunião de cúpula da Otan, em Lisboa, lhe pediram para
explicar o Karachigate, ele não reagiu como se sentisse imune. O
ex-ministro da Defesa Charles Millon, que investigou o caso no governo
de Chirac, dera um testemunho em que expressava sua “íntima convicção”
de que propinas haviam sido pagas e os repórteres em Lisboa queriam a
opinião do presidente. “E você!”, gritou Sarkozy para um deles. “Não
tenho nenhuma prova contra você. Mas parece que você é um pedófilo. Quem
me disse? Tenho uma convicção íntima. Vi os relatórios da espionagem,
mas não vou lhe dizer quais. Mas tenho uma convicção íntima de que você é
um pedófilo.” OGuardian noticiou que ele continuou nesse diapasão por dez minutos. Depois foi embora, dizendo: “Até amanhã, amigos pedófilos.”
uando
os eleitores decepcionados de Sarkozy falam que se sentem traídos, o
escritor Bernard-Henri Lévy, conhecido como BHL, gosta de dizer: “Eu
avisei.” Tal como Sarkozy, ele cresceu em Neuilly, e quando se
conheceram, no início da década de 80, ele já era um famoso jornalista
do jet set, um ícone playboy intelectual, com cabelos pretos
cuidadosamente despenteados e camisas brancas feitas sob medida
desabotoadas até quase o umbigo, exibindo parte do torso nu. BHL, seis
anos mais velho que Sarkozy, recorda que na época em
que virou prefeito ele parecia “um rapaz animado, cheio de promessas,
muito charmoso”. Os dois tinham temperamentos opostos – Bernard-Henri
Lévy, que herdara uma fortuna imensa, identificava-se com a esquerda,
enquanto Sarkozy, o batalhador solitário, estava comprometido com a
direita –, mas ficaram amigos. Às vezes, viajavam juntos com suas
mulheres para esquiar em Val d’Isère, ou ao palácio de BHL em Marrakech,
e descobriram que concordavam em algumas grandes questões. Após o
massacre de Srebrenica, os dois expressaram indignação diante da inércia
francesa e, em 1994, acreditaram que a intervenção da França em favor
do regime genocida dos hutus em Ruanda foi, como disse Bernard-Henri
Lévy, “uma cagada”.
Um semestre depois da eleição de Sarkozy, contudo, o escritor publicou
um livro em que retratava seu velho amigo como um oportunista crasso,
cinicamente indiferente ao exercício da reflexão e brutal em sua
capacidade de negar a realidade. Citou “a recepção grotesca e
constrangedora do coronel Kadafi em Paris” como um bom exemplo, e
descartou Sarkozy como “um presidente que, ao se transformar de
estadista duvidoso, ainda que imponente, em personagem pitoresco, de
caráter warholiano, talvez interesse apenas a folcloristas ou a
colecionadores de excentricidades políticas”. Henri Guaino, que escreve
os discursos de Sarkozy, chamou Bernard-Henry Lèvy de “babaca
pretensioso”.
A Paris mundana obviamente sabia que os dois tinham uma história
enredada. Mais ou menos uma década antes, Carla Bruni havia namorado
Jean-Paul Enthoven, grande amigo de BHL, antes de passar a sair com seu
filho, Raphaël Enthoven – que era casado com ninguém menos que a filha
de Lévy, Justine. Todos sabiam disso porque Justine, que é romancista,
contou a história num mal disfarçado roman à clef intitulado Nada de Grave. “Um pai, um filho – na França isso é muito malvisto”, disse-me uma socialite de Paris. Mas Carla Bruni ficou com Raphaël durante anos e teve um filho com ele. Na opinião da socialite,
isso pôs fim ao escândalo. “O amor tudo perdoa”, ela disse. “Você pode
ficar com o filho de seu amante se for uma história de amor. Se é Fedra e
Hipólito, tudo bem. Se é Racine, O.K. Se é só um drinque, uma Coca, é
imperdoável.” Aconteceu o mesmo com Carla Bruni e Sarkozy, acrescentou a
socialite: “Uma história de amor, para ser mesmo uma história
de amor, dura quatro ou cinco anos.”
de amor, dura quatro ou cinco anos.”
Carla Bruni negou ter tido um caso com Enthoven pai. E desde que ela e
Sarkozy se juntaram, os Lévy, pai e filha, têm mantido um rigoroso
silêncio público sobre o assunto. BHL e Sarkozy se encontraram várias
vezes na mesma sala, mas não se falavam durante os três primeiros anos
da Presidência. Por isso, foi uma surpresa quando, no ano passado,
Bernard-Henri Lévy surgiu como a força motriz por trás do interesse
súbito e intenso de Sarkozy em liderar a intervenção militar
internacional na Líbia.
arkozy
demorou a perceber a importância dos protestos populares contra os
regimes opressivos do mundo árabe. A Tunísia, onde se acendeu a
centelha, era um ex-protetorado francês, e a França era o principal
patrono internacional da ditadura corrupta do presidente Ben Ali.
Durante os protestos em Túnis, a ministra do Exterior, Michèle
Alliot-Marie, propôs publicamente o envio de tropas de choque francesas
para ajudar a esmagar a dissidência. Depois, verificou-se que a família
Alliot-Marie tinha negócios com um rico comparsa de Ben Ali, e que ela
própria estivera na Tunísia em férias, como convidada do ditador, no
meio da revolução. Depois que Ben Ali foi derrubado e revoltas
proliferaram pela região, Sarkozy demitiu Alliot-Marie e correu para
reposicionar a França como uma defensora dos levantes populares.
Do modo como Bernard-Henri Lévy conta a história, foi nesse ponto que
ele entrou em cena. Em fevereiro de 2011, ele fora ao Cairo para
participar da emoção da praça Tahrir. Mas chegou tarde, e viu-se
assistindo na televisão às forças de Kadafi abatendo a tiros
manifestantes nas ruas. Pegou um táxi para a Líbia e chegou à cidade de
Bengasi a tempo para a primeira reunião da aliança anti-Kadafi, o
Conselho Nacional de Transição. Embora a França tenha laços históricos
com países árabes do norte da África, a Líbia não é um deles. Mas BHL,
entusiasmado com a atmosfera revolucionária, ligou para Sarkozy de seu
telefone celular e sugeriu que recebesse os líderes do Conselho em
Paris. Os assessores de Sarkozy sustentam que a França já havia enviado
aos rebeldes ajuda humanitária, e até mesmo algum apoio militar, mas não
desmentem que a ligação de Bernard-Henri Lévy estimulou o presidente a
agir. O escritor, que logo surgiu como o principal defensor do
engajamento militar em favor dos rebeldes, disse que estava tão surpreso
quanto encantado com a velocidade com que o impulsivo Sarkozy tomou
decisões momentosas.
As autoridades francesas descrevem seu envolvimento na guerra com os
mesmos termos elevados de BHL: uma prova de seu compromisso com a
intervenção humanitária em favor de povos ameaçados por seus
governantes. Mas as pessoas que conhecem Sarkozy descrevem seus
interesses em termos mais pessoais: ele vibrou com a guerra, gostou da
ação, gostou de tomar decisões e gostou de ficar mais importante – de
imediato, no palco diplomático, e também do ponto de vista histórico.
Como me disse um de seus conselheiros, ele não entraria nos livros de
história por ter aumentado a idade da aposentadoria. A guerra envolvia
muitos interesses para a França – o acesso aos campos de petróleo da
Líbia não era o menor deles –, mas pessoas na órbita de Sarkozy
sugeriram que era uma oportunidade para ele se “represidencializar”.
O eleitorado francês, no entanto, apoiou o engajamento na Líbia com
frieza. “Ninguém aqui liga a mínima para a Líbia”, disse-me um repórter
político do Le Monde. E derrubar Kadafi não ajudou Sarkozy nas
pesquisas. (Bernard-Henri Lévy, que publicou uma crônica de sua aventura
na Líbia, gosta de dizer que está ansioso para votar contra Sarkozy na
próxima eleição.)
Em 20 de outubro, um caça francês bombardeou o comboio de Kadafi e o
ditador foi capturado e trucidado pelos rebeldes. Sarkozy não
reivindicou nenhum mérito pelo escalpo. Um dia antes, Carla Bruni dera à
luz uma filha, fazendo de Sarkozy o primeiro chefe de Estado em
exercício a procriar desde Napoleão III. Agora, era o primeiro chefe de
Estado francês desde Napoleão i a ganhar uma guerra, mas não disse isso.
Estava no meio de uma luta muito maior: as negociações de uma solução
para a crise do euro.
que
temos é um país e um continente deprimidos, completamente deprimidos”,
disse-me Matthieu Pigasse. Socialista de longa data, Pigasse é
presidente do banco de investimento Lazard France e, ao mesmo tempo, um
barão da imprensa, dono de Les Inrockuptibles e de um terço do Le Monde.
Ao falar de depressão, referia-se às condições socioeconômicas que
afligem a maior parte da Europa: cinco anos sem crescimento econômico,
agravado pela ausência de aumento da produtividade, do consumo, dos
salários, dos investimentos e do poder de compra. Com o declínio
econômico veio a tensão social “e uma coisa muito nova para mim”, disse
Pigasse, “a instabilidade política”.
“Veja a Europa de hoje”, propôs ele. “A Bélgica ficou sem governo
dezenove meses. E lá fica a sede da União Europeia. É estarrecedor.
Reino Unido? Em Londres, há uma coalizão. Quanto tempo vai durar?
Irlanda? Mesma pergunta. Portugal durante meses não teve governo.” A
lista continuou com os países em desordem: Itália, Espanha, Grécia.
“Acho que estamos numa encruzilhada, e todo mundo sabe disso, mas
ninguém quer enfrentar a realidade”, disse Pigasse. Ele acredita que o
único caminho a seguir é “aprofundar a Europa, o mais rápido possível.
Fundir as políticas orçamentárias, fundir as políticas econômicas. A
única maneira de evitarmos a falência completa é mutualizar a dívida”.
Em grande medida, essa é também a posição de Sarkozy. Mas não a de
Angela Merkel. Desde seu primeiro dia no cargo, Sarkozy cultivou uma
estreita, embora problemática, parceria com a chanceler alemã na
condição de coadministradores da política econômica europeia: Merkozy,
é como os jornais os chamam. Mas a crise pôs em evidência a tensão
entre interesses nacionais e a causa comum europeia. No ano passado, a
imprensa financeira europeia afligiu-se com a possibilidade de um
divórcio dos Merkozy. Afinal, o peso do crédito da França é
assombroso e seus bancos estão sobrecarregados com a dívida podre de
economias do euro em perigo, enquanto a Alemanha está preocupada com a
manutenção de sua solvência, conquistada a duras penas.
Angela Merkel tem de levar em conta seus eleitores, e os alemães estão
num estado de espírito punitivo. Durante meses, ela se recusou a
concordar com qualquer tentativa de salvamento que custasse demais para a
Alemanha, ignorando os custos muito mais elevados da derrocada do euro.
Em um dado momento, ela se perguntou em voz alta por que a Alemanha
deveria permanecer na união monetária. Foi então que Sarkozy começou a
falar da crise como uma questão de guerra e paz, e disse que a Europa
tinha dez dias para fracassar ou vencer. Nove dias depois, em 27 de
outubro, uma sessão de negociação em Bruxelas, que durou toda a noite,
chegou finalmente a um acordo para salvar a Grécia. Mas o acordo foi
apenas mais um remendo, e poucas semanas depois, quando até mesmo o
mercado de títulos da Alemanha se dobrou, discutia-se o fim da zona do
euro como mais provável do que nunca.
Sarkozy, no entanto, voltou de Bruxelas com ar triunfante e deu uma
entrevista no horário nobre cuidadosamente encenada, a primeira em oito
meses. Seu desempenho naquela noite obteve índices excepcionalmente
altos nas pesquisas de opinião pública. O longo silêncio (ele disse que
estava tomando decisões e ocupado demais para ter tempo de falar com a
imprensa) era exatamente o que precisava para se “represidencializar”.
Aceitar a Grécia no euro fora “um erro”, disse Sarkozy – erro que
obviamente não fora cometido no seu mandato. E gastou pelo menos a
metade do tempo atacando os socialistas, procurando contrastar a gestão
da crise por um estadista com a loucura das políticas econômicas dos
adversários: retorno à aposentadoria aos 60 anos, defesa da semana de
trabalho de 35 horas, promessa de contratar dezenas de milhares de novos
funcionários públicos. Duas semanas antes, François Hollande havia
vencido a primária presidencial socialista e Sarkozy já buscava
colocá-lo na defensiva. O Monde observou que ele quis, mais uma vez, se posicionar como um candidato marginal, que “não é do sistema”.
A política é, sobretudo, o trabalho pouco glamoroso da costura de
acordos, mas os políticos franceses estão dispostos a falar na língua da
crise, de ultimatos e escolhas binárias. A trilha sonora é sempre A Marselhesa.
E, no entanto, agora que a mais grave crise das últimas décadas paira
sobre eles, uma cautela temerosa tomou conta do debate. Um fracasso da
liderança pode condenar o continente a uma geração de sofrimentos
terríveis – e tudo o que Sarkozy parece capaz de fazer é azucrinar
Angela Merkel e proferir discursos.
Em dezembro, ele falou de forma veemente, prometendo trabalhar com a
Alemanha para estabelecer uma nova ordem europeia a fim de salvaguardar o
euro. Fez louvores à globalização, afirmando que a soberania deve ser
compartilhada, e também ao nacionalismo, dizendo que a política europeia
de fronteiras abertas precisa ser revista para proteger o estilo de
vida duramente conquistado pela França. “A Europa não é mais uma
escolha”, disse ele. “É uma necessidade. Mas a crise revelou suas
fraquezas e contradições. Se a Europa não mudar rapidamente, a história
será escrita sem ela.” Não há, no entanto, nenhuma maneira rápida de
reorganizar e Europa: as 27 nações da UE precisam concordar com as
reformas.
lain
Minc, homem de grande influência política e conselheiro não oficial de
Sarkozy, tinha previsto que a imagem do presidente começaria a melhorar
quando um candidato socialista entrasse na disputa. “Durante quatro
anos, foi como se estivéssemos em um teatro com um único ator no palco”,
disse-me ele. Todas as pesquisas favorecem François Hollande por uma
margem sólida. Mas o Partido Socialista, que foi em larga medida
abandonado pelos eleitores da classe trabalhadora, carece de uma
liderança unificada. E o seu programa oferece pouco mais do que uma
defesa do velho Estado de bem-estar social, resistente a reformas.
Nessas circunstâncias, segundo Minc, mesmo que Sarkozy não conseguisse
ganhar por seus próprios méritos, os socialistas ainda conseguiriam
perder.
François Hollande formou-se nas três Grandes Écoles – de
negócios, política e administração – e se tornou membro do Parlamento,
prefeito de província e, durante uma década, dirigente do PS. Ele é
conhecido como um homem simpático, com grande senso de humor, mas nunca
fez campanha para um cargo nacional, e não planejava concorrer até
Strauss-Kahn cair fora. É famoso por ter dito que não gosta dos ricos –
aqueles que, em sua definição, ganham mais de 4 mil euros por mês – e
foi apelidado de “Sr. Normal”, porque promete uma “Presidência normal”
depois da viagem alucinante de Sarkozy.
Em reação, a UMP lançou um novo slogan: “A França de Hollande é a Grécia de hoje.” Um repórter da Le Point perguntou
ao porta-voz do Partido Socialista, Benoît Hamon, se a crise beneficia o
presidente. Hamon disparou: “Sarkozy diz que, diante da crise, somente
uma política é possível, apenas um presidente é possível, aquele que
protege, mas tudo isso é truque de mágica. Sarkozy encarna a tapeação
como método de governo. Ele é o presidente que engana em tudo. Já
François Hollande é um homem honesto nas suas convicções, no seu
compromisso, no seu modo de agir.”
Embora os eleitores achem Hollande muito mais fácil de ser digerido, as
pesquisas mostram que a experiência de Sarkozy conta: bem mais do que o
candidato socialista, ele é visto como um estadista capaz de lidar com a
crise mundial. Alain Minc disse-me que, ao saber que Hollande estava
tentando se vender como o candidato da “Presidência normal”, Sarkozy
percebeu imediatamente o erro de seu oponente e disse com desdém: “Esse
cara pensa que se trata de um trabalho normal.”
Em sua longa carreira política, Dominique de Villepin também gastou uma
energia considerável ofendendo Sarkozy: costumava se referir a ele como o
“anão” e, com mais lirismo, disse: “O sarkozismo é o casamento, sobre
uma mesa de dissecação, de uma máquina de costura com um guarda-chuva.
Sarkozismo é surrealismo. É fascinante essa sua capacidade de dizer tudo
e o seu contrário.” Mas Villepin não descarta Sarkozy. Segundo ele, o
bebê que teve com Carla Bruni, junto com a desgraça de Strauss-Kahn,
“faz Sarkozy parecer um pouco mais normal. Isso pode estabilizar tudo,
se ele for capaz de mudar, de se adaptar. E isso significa se recolher,
conseguir a introspecção que lhe faz falta. Obter densidade, mais
densidade pessoal. E ser mais misterioso”.
Sarkozy misterioso? Isso não vai salvar a França, e muito menos a
Europa. E, além disso, ele sempre alegou que sua força estava em não ter
mistério. Pouco depois de ter mudado para o Palácio do Eliseu, Sarkozy
conversou com o jornalista Franz-Olivier Giesbert sobre seus adversários
políticos: “Você quer saber a diferença entre mim e toda essa gente? É
muito simples. Desde o berço, eles foram mimados e afagados, e lhes
disseram sempre: ‘Você é o melhor, o mais bonito, o mais inteligente.’ E
estudaram em escolas chiques. Veja como eles amam a si mesmos. Eu sou
um tipo diferente. Eu sou o bastardo. Mas aí é que está, o bastardo é o
presidente da República.”
---------------------
Tradução: Pedro Maia Soares
Fonte: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-66/carta-de-paris/sem-saida
Nenhum comentário:
Postar um comentário