JOSÉ ANTÔNIO PINHEIRO MACHADO *
Que impressionante é esse meu amigo Millôr Fernandes...” – escreveu
Luiz Gravatá, dia 12 de junho de 2011, num e-mail circular a uma dezena
de outros companheiros da fraternidade informal que acompanhava com
angústia a agonia do Mestre. – “Depois de um violento AVC e após mais de
quatro meses em coma era difícil acreditar em recuperação: mais uma vez
Mestre Millôr nos surpreende.”
Naquele dia, para perplexidade dos amigos, dos médicos – e contrariando todas as previsões – inesperadamente, de uma hora para outra, Millôr saiu do coma. Gravatá contou que Dr. Gabriel, o neurologista que acompanhava o escritor, dramaturgo, desenhista, humorista, poeta, pintor, jornalista e boa gente e dele tratava, fez alguns procedimentos para avaliar suas reações. Pediu-lhe que olhasse para o lado esquerdo, para o direito, para cima e para baixo. Depois, que colocasse a língua para fora e a movesse para a direita e para a esquerda. Pediu que movesse o braço direito e o esquerdo. Em seguida, fez os testes com o martelinho. Os reflexos estavam perfeitos. Millôr respondeu a todos os testes. Vieram então as perguntas, para testar a memória e a lucidez.
“Fiquei emocionado ao vê-lo responder a mais de 50 perguntas feitas pelo médico. Absolutamente incrível! Não errou nenhuma delas; ou melhor, errou o número do telefone de casa, mas isto ele não sabe. Cansei de receber telefonema de Millôr me perguntando o número do telefone de sua casa...” – escreveu Gravatá. Além disso, quando o médico perguntou a sua idade, fez como fazia sempre: mentiu que tinha 84. Perguntado sobre em que mês estavam, respondeu “janeiro”, embora fosse junho. Detalhe: foi em janeiro que ele teve o AVC, a partir do qual ficou em coma.
Respondeu corretamente sobre seu endereço, disse os nomes do médico, de diversos amigos, dos filhos e netos, identificou um desenho de Claudius pendurado na parede, reconheceu os amigos Gravatá e Chico Caruso, que acompanhavam emocionados a consulta médica.
Em seguida, uma das enfermeiras, jovem e bonita, se aproximou para realizar alguns procedimentos e perguntou:
– Você me ouve, Millôr?
– Com ou sem H? – ele respondeu, ensaiando um sorriso.
Depois dessa molecagem, Gravatá teve certeza de que o velho Millôr estava de volta e escreveu no e-mail: “Quase todos os dias tenho estado com ele no hospital. Hoje, me convenci de que ele se recupera e está, realmente, completamente lúcido. Não noventa e nove por cento. Está cem por cento lúcido.”
Mas faltou ao corpo a energia da mente, e esta semana, nove meses depois daquela alegria fugaz dos amigos e médicos que o cercavam, Millôr enfim nos deixou. Fica a memória dos que tiveram a oportunidade de estar por perto. Meu irmão Ivan Pinheiro Machado, amigo próximo por mais de 40 anos, advertiu que o gênio também foi um homem gentil e generoso que gostava de escutar as pessoas. Creio que o Ivan morreu um pouco com Millôr, como confessou no Blog da L&PM: “Primeiro, eu fazia parte da imensa legião dos admiradores de Millôr. O mágico das palavras e do traço. Depois fui seu editor, seu amigo e passei a admirá-lo mais ainda. Foi meu padrinho de casamento no começo da década de 80. Foi a única vez que o vi engravatado. Millôr falava muito e dizia coisas brilhantes. E se calava para ouvir seu interlocutor atentamente. Era delicado, gentil e amigo. Muitos de seus bilhetes acabavam com a saudação, “fra-paternalmente, o Millôr”. O Paulo Lima e eu tivemos o privilégio de uma convivência de quase 40 anos com Millôr Fernandes. Ele era bem mais velho do que nós. E a partir de um certo tempo passamos a temer este momento. E Millôr se foi ontem às 21 horas, aos 88 anos, depois de uma longa agonia. Seu filho, Ivan Fernandes, me disse que no final ele se foi suavemente, sem sofrimento. Esta é a dura e terrível realidade da vida; ela acaba. Leva os queridos e ficamos nós. Com esta dor no peito, este nó na garganta e esta saudade do homem, do amigo e do imenso artista que se foi”.
Em setembro de 1981, fizemos na revista Oitenta, da L&PM, uma longa entrevista com Millôr, que vem de ser republicada em livro. Trinta anos atrás, nós, os jovens entrevistadores, que por certo nos considerávamos eternos, encerramos as sete horas de animada conversa, com uma pergunta reveladora de que não pretendíamos perder um só minuto dessa eternidade: “O que move um cara, durante 43 anos, das 7 da manhã até as 8 da noite, enquanto os outros fazem surf etc., o que faz com que este cara escreva? Que tipo de obsessão é essa?”
A resposta de Millôr Fernandes foi uma singela lição de vida que muitos de nós carregaram dali, para o resto da vida, em suas bolsas “capanga”, moda naquela época: “MILLÔR – Não, mas peraí! Primeiro, não é obsessão, é profissão. Como os outros ganham a vida no mercado financeiro, o português ganha a vida no seu armazém, eu estou ganhando a minha vida. Exatamente, eu estou ganhando a minha vida: tem aqueles que ganham a sua vida dignamente e os que ganham indignamente. Eu estou procurando vender um produto. É aquela história que a gente já falou, a história do bom tijolo. Eu estou lá fazendo o meu tijolo, e só entrego o que eu acho que está bom. Pode até estar ruim, mas eu não estou achando que é ruim, não. Além disso, não foram 43 anos confinados. Enquanto isso, graças ao bom Deus, eu tive enormes paixões, eu namorei as moças, eu viajei, eu fui e voltei, eu corri riscos, tive medos e muitas alegrias. E tudo isso ainda me deu o lucro marginal de estar aqui com vocês: oportunidade que eu obtive com o meu trabalho, na minha vida”.
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Naquele dia, para perplexidade dos amigos, dos médicos – e contrariando todas as previsões – inesperadamente, de uma hora para outra, Millôr saiu do coma. Gravatá contou que Dr. Gabriel, o neurologista que acompanhava o escritor, dramaturgo, desenhista, humorista, poeta, pintor, jornalista e boa gente e dele tratava, fez alguns procedimentos para avaliar suas reações. Pediu-lhe que olhasse para o lado esquerdo, para o direito, para cima e para baixo. Depois, que colocasse a língua para fora e a movesse para a direita e para a esquerda. Pediu que movesse o braço direito e o esquerdo. Em seguida, fez os testes com o martelinho. Os reflexos estavam perfeitos. Millôr respondeu a todos os testes. Vieram então as perguntas, para testar a memória e a lucidez.
“Fiquei emocionado ao vê-lo responder a mais de 50 perguntas feitas pelo médico. Absolutamente incrível! Não errou nenhuma delas; ou melhor, errou o número do telefone de casa, mas isto ele não sabe. Cansei de receber telefonema de Millôr me perguntando o número do telefone de sua casa...” – escreveu Gravatá. Além disso, quando o médico perguntou a sua idade, fez como fazia sempre: mentiu que tinha 84. Perguntado sobre em que mês estavam, respondeu “janeiro”, embora fosse junho. Detalhe: foi em janeiro que ele teve o AVC, a partir do qual ficou em coma.
Respondeu corretamente sobre seu endereço, disse os nomes do médico, de diversos amigos, dos filhos e netos, identificou um desenho de Claudius pendurado na parede, reconheceu os amigos Gravatá e Chico Caruso, que acompanhavam emocionados a consulta médica.
Em seguida, uma das enfermeiras, jovem e bonita, se aproximou para realizar alguns procedimentos e perguntou:
– Você me ouve, Millôr?
– Com ou sem H? – ele respondeu, ensaiando um sorriso.
Depois dessa molecagem, Gravatá teve certeza de que o velho Millôr estava de volta e escreveu no e-mail: “Quase todos os dias tenho estado com ele no hospital. Hoje, me convenci de que ele se recupera e está, realmente, completamente lúcido. Não noventa e nove por cento. Está cem por cento lúcido.”
Mas faltou ao corpo a energia da mente, e esta semana, nove meses depois daquela alegria fugaz dos amigos e médicos que o cercavam, Millôr enfim nos deixou. Fica a memória dos que tiveram a oportunidade de estar por perto. Meu irmão Ivan Pinheiro Machado, amigo próximo por mais de 40 anos, advertiu que o gênio também foi um homem gentil e generoso que gostava de escutar as pessoas. Creio que o Ivan morreu um pouco com Millôr, como confessou no Blog da L&PM: “Primeiro, eu fazia parte da imensa legião dos admiradores de Millôr. O mágico das palavras e do traço. Depois fui seu editor, seu amigo e passei a admirá-lo mais ainda. Foi meu padrinho de casamento no começo da década de 80. Foi a única vez que o vi engravatado. Millôr falava muito e dizia coisas brilhantes. E se calava para ouvir seu interlocutor atentamente. Era delicado, gentil e amigo. Muitos de seus bilhetes acabavam com a saudação, “fra-paternalmente, o Millôr”. O Paulo Lima e eu tivemos o privilégio de uma convivência de quase 40 anos com Millôr Fernandes. Ele era bem mais velho do que nós. E a partir de um certo tempo passamos a temer este momento. E Millôr se foi ontem às 21 horas, aos 88 anos, depois de uma longa agonia. Seu filho, Ivan Fernandes, me disse que no final ele se foi suavemente, sem sofrimento. Esta é a dura e terrível realidade da vida; ela acaba. Leva os queridos e ficamos nós. Com esta dor no peito, este nó na garganta e esta saudade do homem, do amigo e do imenso artista que se foi”.
Em setembro de 1981, fizemos na revista Oitenta, da L&PM, uma longa entrevista com Millôr, que vem de ser republicada em livro. Trinta anos atrás, nós, os jovens entrevistadores, que por certo nos considerávamos eternos, encerramos as sete horas de animada conversa, com uma pergunta reveladora de que não pretendíamos perder um só minuto dessa eternidade: “O que move um cara, durante 43 anos, das 7 da manhã até as 8 da noite, enquanto os outros fazem surf etc., o que faz com que este cara escreva? Que tipo de obsessão é essa?”
A resposta de Millôr Fernandes foi uma singela lição de vida que muitos de nós carregaram dali, para o resto da vida, em suas bolsas “capanga”, moda naquela época: “MILLÔR – Não, mas peraí! Primeiro, não é obsessão, é profissão. Como os outros ganham a vida no mercado financeiro, o português ganha a vida no seu armazém, eu estou ganhando a minha vida. Exatamente, eu estou ganhando a minha vida: tem aqueles que ganham a sua vida dignamente e os que ganham indignamente. Eu estou procurando vender um produto. É aquela história que a gente já falou, a história do bom tijolo. Eu estou lá fazendo o meu tijolo, e só entrego o que eu acho que está bom. Pode até estar ruim, mas eu não estou achando que é ruim, não. Além disso, não foram 43 anos confinados. Enquanto isso, graças ao bom Deus, eu tive enormes paixões, eu namorei as moças, eu viajei, eu fui e voltei, eu corri riscos, tive medos e muitas alegrias. E tudo isso ainda me deu o lucro marginal de estar aqui com vocês: oportunidade que eu obtive com o meu trabalho, na minha vida”.
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* Escritor, jornalista e apresentador de TV, autor de “Memórias do Anonymus Gourmet” (L&PM, 2011)
Fonte: ZH on line, 31/03/2012
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