segunda-feira, 26 de março de 2012

A interpretação dos sonhos

Divulgação / Divulgação 
Mortensen em cena de "Um Método Perigoso": 
"Sempre preferi os tipos quietos, que exigem uma interpretação 
mais minimalista e detalhada.
 Só mesmo Freud para me fazer interpretar um sujeito eloquente"
Nas mãos de Viggo Mortensen, Sigmund Freud (1856-1939) não corresponde necessariamente à imagem austera projetada pelo pai da psicanálise em imagens de arquivo. "Aquele ar sério e compenetrado não passava de uma fachada. Era o que se esperava de um grande pensador na época", disse o ator, escalado por David Cronenberg para encarnar o médico neurologista austríaco em "Um Método Perigoso". O homem que supostamente via sexo em tudo ganha no retrato de Mortensen mais leveza, amabilidade e senso de humor. "Costumamos pensar em Freud como o velho doente e frágil que ele foi no fim da vida, quando sofria de câncer na mandíbula. E nos esquecemos do homem carismático, polêmico e sedutor que ele foi na casa dos 50 anos."
É justamente o Freud sociável, vigoroso e espirituoso que Cronenberg revisita no seu longa-metragem - com estreia marcada para o dia 30. "Não que Freud tenha sido um piadista. Mas ele tinha um tom irônico delicioso que David e eu fizemos questão de honrar no nosso filme", afirmou o ator nova-iorquino, de 53 anos, mais conhecido pelos personagens calados e introspectivos. Como o pai de família com histórico criminoso de "Marcas da Violência" (2005) e o mafioso russo de "Senhores do Crime" (2007), ambos também dirigidos por Cronenberg. "Sempre preferi os tipos quietos, que exigem uma interpretação mais minimalista e detalhada. Só mesmo Freud para me fazer interpretar um sujeito eloquente", disse, em entrevista concedida ao Valor, por telefone, de Londres.

Valor: Como o senhor chegou ao Freud de "Um Método Perigoso"? A ideia sempre foi distanciá-lo do Freud dos livros, o idoso barbudo de olhar severo?
Viggo Mortensen: Tivemos o cuidado de retratá-lo com certa solenidade, já que ele gostava de se apresentar assim. É difícil vê-lo à vontade e desarmado numa fotografia. Mas, ao pesquisar a sua vida mais profundamente, descobri pelos depoimentos de quem o conheceu de perto que Freud era um homem amoroso, descontraído, generoso, astuto e engraçado.

Valor: Como foi construir um personagem que seduz e manipula todos ao seu redor com as palavras?
Mortensen: Eu me baseei em muitas descrições que encontrei sobre o seu jeito de falar. Ele era muito sagaz quando abria a boca. Na minha pesquisa, descobri que muitos de seus contemporâneos tentaram indicá-lo para um Prêmio Nobel, o que nunca aconteceu. Mas havia uma dúvida, na época, se era melhor indicá-lo pelo campo da ciência ou da literatura, pela forma brilhante como ele escrevia em alemão.

Valor: Há um pouco do humor do próprio David Cronenberg no papel? O diretor serviu também como inspiração?
Mortensen: Não tinha pensado nisso até o início das imagens. Mas, conforme o filme avançava, percebi que o senso de humor um tanto obscuro de David não é muito diferente do de Freud. De um jeito indireto, David foi, sim, um modelo na minha caracterização de Freud. Eu tinha todo dia do meu lado um homem perspicaz, no qual pude me basear.

Valor: É verdade que o papel de Freud originalmente seria de Christopher Waltz?
Mortensen: Não. David me chamou para fazer o filme um ano antes. Como eu não estava disponível, ele chamou Christopher. Só que Christopher ganhou um Oscar [por "Bastardos Inglórios"] e decidiu participar de uma grande produção de Hollywood ["Água para Elefantes"]. Ele abandonou o projeto quando tudo já estava encaminhado para o início das filmagens. Por sorte, quando David voltou a me contatar, eu estava disponível. A perda do Christopher representou um ganho para mim.

Valor: O filme põe em primeiro plano a tumultuada amizade entre Freud, no papel de mentor, e Carl Jung (vivido por Michael Fassbender), seu discípulo. Qual foi, na sua opinião, o motivo que os distanciou para sempre?
Mortensen: Obviamente Freud desaprovou quando Jung passou a tecer as próprias teorias, a partir de exames com pacientes psicologicamente perturbados. E ele nunca perdoou o pupilo por ele ter se envolvido sexualmente com a paciente russa Sabina Spielrein [Keira Knightley]. Mas as diferenças de personalidade e de criação foram mais determinantes. Jung veio de uma cidade pequena, mas nunca teve de enfrentar as dificuldades pelas quais Freud passou. Por ser filho de judeu, ele cresceu vendo o pai ser humilhado pelas ruas de Viena. E isso fez dele um homem mais rígido e com um mecanismo de defesa muito poderoso.

Valor: A sua percepção sobre Freud mudou após interpretá-lo?
Mortensen: Eu passei a gostar mais de Freud, a apreciá-lo mais. Não apenas pela sua inteligência, mas pela sua coragem. Principalmente pela maneira como ele tratou questões como sexo, doenças e a morte. Freud cresceu numa época de muita repressão. Não só no que dizia respeito ao sexo, mas ao pensamento livre de uma maneira geral. E ele nunca se importou em ser criticado pelas suas ideias revolucionárias. Acreditava no potencial de destruição do ser humano e não se desculpava por isso. Nem sequer acreditava na capacidade de o homem mudar. Tudo o que ele queria era entender todo o processo, sabendo que seria difícil conseguir curar alguém.

Valor: Freud não se desgruda o charuto no filme. O senhor tem ideia de quantos fumou ao longo da filmagem?
Mortensen: Não. E é melhor assim, porque foram charutos demais [risos]. Mas esse detalhe não poderia faltar. Praticamente não existe nenhuma foto de Freud, sem um charuto nas mãos. A não ser as suas fotos de criança. Ele fumava pelo menos 20 por dia, o que explica os cinzeiros estarem sempre por perto em todas as imagens dele de arquivo. Além dos retratos, Freud aparecia com um charuto também nas fotos da família, com os amigos, em fotos de interiores e também ao ar livre. É por isso que eu fumei em quase todas as cenas. Exceto no momento do jantar. Aí já seria demais!

Valor: É comum a associação do charuto à virilidade do homem. O senhor acredita ser essa a razão que levava Freud a sempre ser fotografado com o seu?
Mortensen: Não sei. Só posso dizer que era um hábito muito comum na época. Na minha pesquisa, descobri que Freud fazia muitas reuniões com acadêmicos em sua casa. E havia sempre um cinzeiro diante de cada participante na mesa. Os acadêmicos praticamente sobreviviam de café, cigarros e charutos.

Valor: Além de Cronenberg, o senhor já filmou com vários cineastas expressivos, como Gus Van Sant, Peter Jackson e Jane Campion. Como foi rodar "Na Estrada - On the Road", com o brasileiro Walter Salles?
Mortensen: Gostei muito de trabalhar com Walter. Ele tem um toque leve, mas absolutamente eficaz, na hora de dirigir os atores. E isso foi fundamental na hora de conduzir um set com tantos personagens memoráveis que não param de falar um minuto [Mortensen interpreta Old Bull Lee, inspirado no escritor William Burroughs]. Só um homem calmo e gentil como Walter para criar uma atmosfera harmoniosa em tais circunstâncias.
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Reportagem Por Elaine Guerini | Para o Valor, de Londres
Fonte: Valor Econômico on line, 2/03/2012

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