Existem vários Carlos, o nome já é em si no plural, mas só um
Drummond, como espírito unificador de todas as variações. Para falar das
suas múltiplas faces, o espaço seria sempre restrito, e qualquer
tentativa de sintetizá-lo num perfil homogêneo correria o risco de
deixar algumas de fora. De modo que ilustrarei as dificuldades de falar
dele e de ultrapassar as pedras no caminho que o próprio poeta colocou
para a sua identificação com dois exemplos: um poético e outro da
estatuária.
Através deles poderemos apreender o movimento de seu pensamento como
algo dinâmico que vai se definindo nas objetivações artísticas, o que
talvez seja mais importante do que reduzi-lo numa fórmula rígida, como
querem muitas vezes os críticos que disputam a sua herança poética. Isso
depois de quase 60 anos de produção literária - o seu primeiro livro,
"Alguma Poesia", é de 1930 -, o que pode muitas vezes levar-nos a trocar
o todo pela parte, perdendo o que talvez seja o mais característico do
poeta: a autonomia de pensamento que se expressa na liberdade de
movimento e perspectiva diante de um mundo social e cultural carregado
de contradições e ambiguidades.
No seu livro "Brejo das Almas", de 1934 - período de forte exaltação
nacionalista, acentuada com a crise de 29, a Revolução de 30 e a
paulista de vezo também separatista de 32 -, há um poema chamado "Hino
Nacional". Como é possível ver já no próprio título, ele tem um forte
tom irônico e é composto com a paródia dos discursos que circulavam no
tempo. O motivo do poema deve ser justamente o de expressar a sua reação
a esse espírito coletivo dominante e mostrar ao leitor o ridículo ou
pelo menos a relatividade de tudo o que diziam sobre o país.
Entram em causa no poema não só os discursos patrioteiros e
ufanistas, mas também os críticos e modernizadores, muito presentes
também na literatura da época e nas novas interpretações da nação. A sua
construção é, portanto, uma costura de retalhos de críticas e
exaltações do Brasil, que falavam tanto de suas carências como das
qualidades. Para um país com grandes deficiências, assim como recursos e
belezas naturais, todos tinham dele um diagnóstico, com suas faltas ou
virtualidades, assim como uma fórmula salvadora ou um projeto de
solução. Todos sabiam, portanto, quais eram os seus problemas e tinham a
equação para resolvê-los: "Precisamos colonizar o Brasil", "Precisamos
educar o Brasil", "Precisamos louvar o Brasil" e daí por diante.
Com a paródia desses discursos, Drummond constrói o poema e o conclui
com uma estrofe surpreendente - embora já anunciada na anterior, porém
não percebida pelo leitor entusiasmado, que acreditou no título do poema
e achou que era uma peça ufanista ou reformadora. A última estrofe
contraria todo o corpo do poema, é uma espécie de antiode que fala de um
país cansado de discursos e não tem nada a ver com tudo o que dizem
dele e sobre ele, como se fosse um país de outro mundo, e que era bem
diferente de tudo o que imaginavam, fossem os críticos ou os ufanistas:
"Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!/ Tão majestoso, tão sem
limites, tão despropositado,/ Ele quer repousar de nossos terríveis
carinhos".
Quem esperava que o poeta fosse engrossar o coro, ele o contraria no
tom e no sentido e joga um balde de água fria nos ânimos exaltados. E
termina então com um verso em nada lapidar: "Nenhum Brasil existe. E
acaso existirão os brasileiros?"
Os críticos universalistas usaram o poema, em especial o primeiro
hemistíquio do último verso, para riscar do mapa das preocupações de
Drummond o lugar periférico de grandezas amazônicas, mas principalmente
de fundas desigualdades, violências, prepotências e injustiças. E foram
descansar conformados nos travesseiros de plumas onde deviam sonhar
neste embalo: "Brasil, Nova Iorque... Suíça... Paris".
No livro seguinte, "Sentimento do Mundo", de 1940, Drummond publicou
um pequeno poema com o nome de "Tristeza do Império". Nele, fala dos
"conselheiros", que depois seriam chamados de "vultos do Império",
senhores de escravos que sublimavam as suas pulsões nos salões onde
"donzelas opulentas" abemolavam ao piano as modinhas ingênuas e
românticas: "Bus-co a cam-pi-na se-re-na/ pa-ra li-vre sus-pi-rar".
Certamente, os nobres conselheiros depois se refestelavam (nem sempre às
escondidas) nos porões das senzalas.
Para o poeta, os serões sublimes os ajudavam a esquecer "a guerra do
Paraguai,/ o enfado bolorento de São Cristóvão,/ a dor cada vez mais
forte dos negros". Mas o que importa no poema são os sonhos que esses
senhores tinham para o futuro, "sorvendo mecânicos/ uma pitada de rapé",
que eram justamente o que se realizava no presente do poeta, anos 40,
assim revelado num verso longuíssimo: "A futura libertação dos
instintos/ e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de
Copacabana, com rádio e telefone automático".
Já tinha acontecido a Abolição, a República, a Revolução de 30, mas
os "conselheiros" continuavam os mesmos. O que variava eram as amantes,
não mais escravas, e não se conformavam também com uma casinha nos
subúrbios, como as dos "heróis" de Machado, que montavam para elas uma
no Catumbi. As do tempo do poeta exigiam apartamentos com varandas em
Copacabana, com todos os badulaques modernos e, se possível, com vista
para o mar. O que exigiriam hoje? Ou já mudaram os maus costumes do
país?
Os realistas não deixaram por menos. Para eles o poema só vinha
confirmar que existia, sim, um lugar de extração escravista e alta
concentração de renda que permitia essa vida dupla aos homens das
camadas senhoriais, de constituírem famílias distintas e se dispor à
vontade das mulheres pobres bem ajeitadinhas. O que era exceção nos
países civilizados aqui se transformava em norma.
A melhor coisa a concluir é que Drummond primeiro dava pano pra manga, depois cosia um corpete de manga cavada.
Quando morreu, ele virou estátua, sentado num banco da orla do posto 6
de Copacabana. Os universalistas passaram a dizer que continuava a
contemplação de seu belíssimo poema "Noturno à Janela do Apartamento",
olhando para os horizontes longínquos do oceano, perscrutando os
mistérios insondáveis da vida e da morte. As más línguas realistas
diziam que não, na linha de seus poemas eróticos, na verdade olhava para
as moças, não para seus olhos quando vinham, mas para os talentos delas
depois que passavam. E assim continua Drummond, tendo para todos.
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* Luiz Roncari é professor titular da área de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP)
Fonte: Valor Econômico on line, 30/03/3012
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