sexta-feira, 30 de março de 2012

As várias faces de Drummond


Luiz Roncari*
 
  
Existem vários Carlos, o nome já é em si no plural, mas só um Drummond, como espírito unificador de todas as variações. Para falar das suas múltiplas faces, o espaço seria sempre restrito, e qualquer tentativa de sintetizá-lo num perfil homogêneo correria o risco de deixar algumas de fora. De modo que ilustrarei as dificuldades de falar dele e de ultrapassar as pedras no caminho que o próprio poeta colocou para a sua identificação com dois exemplos: um poético e outro da estatuária.
Através deles poderemos apreender o movimento de seu pensamento como algo dinâmico que vai se definindo nas objetivações artísticas, o que talvez seja mais importante do que reduzi-lo numa fórmula rígida, como querem muitas vezes os críticos que disputam a sua herança poética. Isso depois de quase 60 anos de produção literária - o seu primeiro livro, "Alguma Poesia", é de 1930 -, o que pode muitas vezes levar-nos a trocar o todo pela parte, perdendo o que talvez seja o mais característico do poeta: a autonomia de pensamento que se expressa na liberdade de movimento e perspectiva diante de um mundo social e cultural carregado de contradições e ambiguidades.
No seu livro "Brejo das Almas", de 1934 - período de forte exaltação nacionalista, acentuada com a crise de 29, a Revolução de 30 e a paulista de vezo também separatista de 32 -, há um poema chamado "Hino Nacional". Como é possível ver já no próprio título, ele tem um forte tom irônico e é composto com a paródia dos discursos que circulavam no tempo. O motivo do poema deve ser justamente o de expressar a sua reação a esse espírito coletivo dominante e mostrar ao leitor o ridículo ou pelo menos a relatividade de tudo o que diziam sobre o país.
Entram em causa no poema não só os discursos patrioteiros e ufanistas, mas também os críticos e modernizadores, muito presentes também na literatura da época e nas novas interpretações da nação. A sua construção é, portanto, uma costura de retalhos de críticas e exaltações do Brasil, que falavam tanto de suas carências como das qualidades. Para um país com grandes deficiências, assim como recursos e belezas naturais, todos tinham dele um diagnóstico, com suas faltas ou virtualidades, assim como uma fórmula salvadora ou um projeto de solução. Todos sabiam, portanto, quais eram os seus problemas e tinham a equação para resolvê-los: "Precisamos colonizar o Brasil", "Precisamos educar o Brasil", "Precisamos louvar o Brasil" e daí por diante.
Com a paródia desses discursos, Drummond constrói o poema e o conclui com uma estrofe surpreendente - embora já anunciada na anterior, porém não percebida pelo leitor entusiasmado, que acreditou no título do poema e achou que era uma peça ufanista ou reformadora. A última estrofe contraria todo o corpo do poema, é uma espécie de antiode que fala de um país cansado de discursos e não tem nada a ver com tudo o que dizem dele e sobre ele, como se fosse um país de outro mundo, e que era bem diferente de tudo o que imaginavam, fossem os críticos ou os ufanistas: "Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!/ Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,/ Ele quer repousar de nossos terríveis carinhos".
Quem esperava que o poeta fosse engrossar o coro, ele o contraria no tom e no sentido e joga um balde de água fria nos ânimos exaltados. E termina então com um verso em nada lapidar: "Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?"
Os críticos universalistas usaram o poema, em especial o primeiro hemistíquio do último verso, para riscar do mapa das preocupações de Drummond o lugar periférico de grandezas amazônicas, mas principalmente de fundas desigualdades, violências, prepotências e injustiças. E foram descansar conformados nos travesseiros de plumas onde deviam sonhar neste embalo: "Brasil, Nova Iorque... Suíça... Paris".
No livro seguinte, "Sentimento do Mundo", de 1940, Drummond publicou um pequeno poema com o nome de "Tristeza do Império". Nele, fala dos "conselheiros", que depois seriam chamados de "vultos do Império", senhores de escravos que sublimavam as suas pulsões nos salões onde "donzelas opulentas" abemolavam ao piano as modinhas ingênuas e românticas: "Bus-co a cam-pi-na se-re-na/ pa-ra li-vre sus-pi-rar". Certamente, os nobres conselheiros depois se refestelavam (nem sempre às escondidas) nos porões das senzalas.
Para o poeta, os serões sublimes os ajudavam a esquecer "a guerra do Paraguai,/ o enfado bolorento de São Cristóvão,/ a dor cada vez mais forte dos negros". Mas o que importa no poema são os sonhos que esses senhores tinham para o futuro, "sorvendo mecânicos/ uma pitada de rapé", que eram justamente o que se realizava no presente do poeta, anos 40, assim revelado num verso longuíssimo: "A futura libertação dos instintos/ e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático".
Já tinha acontecido a Abolição, a República, a Revolução de 30, mas os "conselheiros" continuavam os mesmos. O que variava eram as amantes, não mais escravas, e não se conformavam também com uma casinha nos subúrbios, como as dos "heróis" de Machado, que montavam para elas uma no Catumbi. As do tempo do poeta exigiam apartamentos com varandas em Copacabana, com todos os badulaques modernos e, se possível, com vista para o mar. O que exigiriam hoje? Ou já mudaram os maus costumes do país?
Os realistas não deixaram por menos. Para eles o poema só vinha confirmar que existia, sim, um lugar de extração escravista e alta concentração de renda que permitia essa vida dupla aos homens das camadas senhoriais, de constituírem famílias distintas e se dispor à vontade das mulheres pobres bem ajeitadinhas. O que era exceção nos países civilizados aqui se transformava em norma.
A melhor coisa a concluir é que Drummond primeiro dava pano pra manga, depois cosia um corpete de manga cavada.
Quando morreu, ele virou estátua, sentado num banco da orla do posto 6 de Copacabana. Os universalistas passaram a dizer que continuava a contemplação de seu belíssimo poema "Noturno à Janela do Apartamento", olhando para os horizontes longínquos do oceano, perscrutando os mistérios insondáveis da vida e da morte. As más línguas realistas diziam que não, na linha de seus poemas eróticos, na verdade olhava para as moças, não para seus olhos quando vinham, mas para os talentos delas depois que passavam. E assim continua Drummond, tendo para todos.
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* Luiz Roncari é professor titular da área de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP)
Fonte: Valor Econômico on line, 30/03/3012

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