Maria Clara Bingemer*
A palavra "perdão” por si mesma carrega em si toda uma
concepção antropológica. Ensina que ser humano é mover-se em uma economia não
da troca, não do comércio, mas do dom.
Somos feitos para o dom e não para as relações interessadas
e comerciais onde a sociedade de consumo nos põe. O perdão significa, então, a
ênfase nisso que é constitutivo de nossa identidade. Per-dão= persistir no dom,
insistir em dar. Mesmo após a ofensa, a ruptura não se dá. Porque uma das
partes insiste, persiste, per-doa.
A revelação, a fé e a teologia nos dizem que, se somos
assim, não existimos sozinhos. Somos responsáveis uns pelos outros, estamos
conectados uns com outros e depende de nós todos que a humanidade continue a
autocompreender-se como feita para o dom e não para a acumulação irresponsável
de bens excluindo outros dos mesmos.
E somos assim porque Deus é assim. Se somos criados à sua
imagem e semelhança, não podemos ser de outra maneira. E se Deus per-doa,
persiste no dom seja o que for que façamos, nós não podemos ser fiéis à nossa
vocação de criaturas suas a não ser perdoando, insistindo e persistindo no dom
de nós mesmos aos outros.
Reconhecermo-nos necessitados de perdão equivale então a
reconhecer que somos chamados a perdoar os outros. A persistir no dom a fim de
que eles possam encontrar a vida em plenitude para a qual foram criados.
Já no Judaísmo há uma consciência forte por parte do povo
eleito de que é preciso perdoar os semelhantes para receber o perdão de Deus. O
perdão é vivido e celebrado com jejum e oração em uma das festas mais
importantes do Judaísmo, o Yom Kippur.
No Cristianismo, o perdão sem limites encontra-se no coração
do ensinamento de Jesus de Nazaré a seus discípulos. O Sermão da Montanha,
Carta Magna do Reino de Deus, proposto por Jesus como projeto maior daquele que
deseja segui-lo, traz vários convites ao perdão irrestrito a todos, mesmo aos
inimigos.
Ao afirmar que não é permitido insultar seu irmão, pois isso
é uma forma de agressão à sua vida e entra no mandamento que diz "Não matarás”,
é toda a dinâmica do perdão que começa a desenvolver-se. A ira é condenada,
pois o amor respeitoso do irmão, segundo o Evangelho, exige mais do que uma
simples observância da Lei. O autor neotestamentário visa aqui não tanto a uma
cólera interior como aquela que se expressa externamente em injúrias. Não se
pode, portanto, dissociar o sentimento da cólera de certas demonstrações
violentas, notadamente de palavras ofensivas ao próximo.
O perdão e a reconciliação não são uma imagem, mas um dever
que se impõe ao cristão mesmo antes de fazer sua oferenda no templo. Precede a
todo e qualquer gesto e atitude ritual e de louvor a Deus. Assim também alguém
que é agredido (esbofeteado em uma face) não deve devolver a agressão, mas
oferecer a outra face. Perdoar e mostrar seu perdão com essa atitude. Amar
sempre e apesar de tudo, mesmo aos inimigos e aos perseguidores.
O cristão, portanto, nesta arte de "persistir no dom” deve
ir além da justiça dos escribas e fariseus; deve fazer "a mais” que as
categorias pecadoras mencionadas em comparação pelo evangelista. Deus em
pessoa, por seu exemplo soberano, o chama a um ultrapassar-se constante e sem
limite. Deus que faz nascer seu sol e cair sua chuva sobre maus e bons, justos
e injustos. "Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”.
Jesus, o Filho de Deus, arrasta seus discípulos a limites
não suspeitados. Pois não propõe apenas uma arte de viver neste mundo, mas uma
obrigação positiva, um ministério do amor universal. Neste sentido, vai muito
além do próprio dever do perdão: apesar de incluí-lo, a exigência de Jesus de
não insultar o outro, não devolver a agressão e amar os inimigos vai mais
longe. Rejeitando o que ainda possa subsistir de condescendência mesmo no
perdão, leva a esquecer-se de si para não mais pensar senão no dom generoso de
si, sem nenhum ressentimento e intenção escondida.
Trata-se simplesmente de amar, sem jogadas estratégicas de
manutenção da paz nas fronteiras da Igreja nem de propaganda para conversão. É,
portanto, e sem dúvidas, um amor mais divino que humano. Mas não deve
atemorizar nem desencorajar ninguém, pois para isso somos criados, para
assemelhar-nos sempre mais a Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus mesmo.
Que nesta Quaresma possamos exercitar o perdão sem medida
que nos faz semelhantes a Jesus, a fim de poder celebrar com júbilo o triunfo
do amor que é Sua Páscoa!
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* Maria Clara Bingemer é teóloga. Prof. Universitária. Autora de "Deus amor: graça que
habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
Fonte: Adital on line, 27/03/2012
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