Jairo Marques *
Assusta o bumbo do discurso pró-aborto
para caminhos em que só os
perfeitinhos serão aceitos
Estava com o pé do ouvido no rádio, quando o locutor começou a
entrevistar um defensor de mudanças nas regras de não punição ao aborto,
hoje restritas a salvar a vida da gestante ou para preservar a honra da
mulher após um estupro.
Em um dos pontos da fala, encafifei: dar direito a retirar o feto nos
casos em que houver comprovação de que ele padece de "graves e
incuráveis anomalias que inviabilizem sua vida independente".
O procurador da República que defendia a proposta foi categórico ao
dizer que não há subjetividade possível no conceito e que ninguém irá
morrer a troco de nada (uia!).
Catei meu bloquinho de repórter e fui atrás de doutores ninjas sobre o
tema. Se for pela objetividade, minha turma "mal-acabada" está na roça
sem jegue e sem enxada.
O conceito de vida independente na medicina é "a realização de
atividades -motoras ou cognitivas- sem a necessidade de outras pessoas
ou de instrumentos de apoio, desde que de forma segura".
De maneira empírica, digo que a perspectiva do que seja "independência" é
fatalmente contaminada e imposta por experiências alheias àquelas de
quem aprende a se virar, a criar mecanismos de compensação de não
conseguir desenvolver uma tarefa física, sensorial ou intelectual.
Digo isso a bordo de uma cadeira de rodas, veículo onde já me despejam
fracassos e impossibilidades diversas que, para mim, são risíveis. O
mesmo atrevo a estender às pessoas com síndrome de Down, paralisadas
cerebrais, vítimas de doenças raras, prejudicados dos cromossomos e
demais "anômalos".
Qual a expectativa de autonomia para gente que nasce só o "cotoco"? Há
más-formações de nascença que fazem bebês darem as caras ao mundo sem as
pernocas e sem os bracinhos.
Ligeiramente, a tendência é achar que ficarão a vida toda em caixas de
sapato recebendo papinha da mamãe e bilu, bilu do papai. Mas nada mais
espetacular do que o poder da natureza, que cria atalhos no sentido
lógico de viver.
Há "cotocos" que, com o apoio da tecnologia, da reabilitação, do
estímulo familiar, se transformam em mestres, em procuradores, em
jornalistas, em plenos cidadãos.
Mara Gabrilli, primeira deputada federal tetraplégica do Brasil, tem uma
frase "maraviwonderful": "Quanto mais tecnologia se oferece para a
pessoa com deficiência, menos deficiências ela tem".
A medicina genética galopa em um puro-sangue na descoberta de genes que
vão determinar até quantas vezes na vida a gente vai ter dor de cabeça,
se o indivíduo vai gostar de coelhinho da Páscoa.
Penso que os avanços são salvaguardas para preparar o porvir, para
buscar soluções antecipadas. Não servem para determinar quem deve viver,
quem deve morrer.
Dar o devido poder à mulher sobre seu corpo me parece ir ao encontro de
uma sociedade moderna e justa, assim como poupá-la de gerar uma cria com
chance nula de sobrevivência.
Mas assusta o bumbo do discurso pró-aborto para caminhos em que só os
perfeitinhos serão aceitos. Ter um bebê fora da curva da normalidade é
de chorar pelado no asfalto, mas diversidade humana tem de ser defendida
além da cor da pele ou do tamanho do pé.
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* Jornalista. Colunista da Folha
jairo.marques@grupofolha.comFonte: Folha on line, 27/03/2012
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