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Urge reformar a legislação criminal brasileira para restabelecer o princípio de proporcionalidade entre penas, crimes e valores
O Senado e a Câmara discutem atualmente, em comissões separadas, alterações profundas na legislação penal brasileira.
Na Câmara, debate-se uma reforma voltada a valorizar penas alternativas e
a punir crimes violentos e corrupção. A direção está correta, mas, ao
pôr de lado temas como aborto ou eutanásia, a comissão reforça a
tendência preocupante de parlamentares a se omitirem em temas polêmicos.
No Senado, o autor do requerimento de criação da outra comissão, senador
Pedro Taques (PDT-MT), afirma que o código atual, com 72 anos, já
merece aposentadoria compulsória. A idade avançada não é o problema mais
grave do diploma legal, e sim a colcha de retalhos em que se
transformou.
Entre reformas expressivas -como a de 1984- e mudanças pontuais, 53 leis
modificaram o Código Penal desde 1940. Mais de dois terços das
alterações aconteceram depois da Constituição de 1988.
Foram promulgadas, ainda, diversas leis que criam crimes e estabelecem
penas, mas sem alterar o código propriamente dito. Tudo somado, obtém-se
um emaranhado obscuro de normas.
Um Código Penal sem coerência e clareza representa grave deficiência
para a democracia. O direito criminal configura a possibilidade mais
severa de interferência na vida do cidadão. Ali estão previstas as
condutas que, praticadas, autorizam o Estado a privar a pessoa de sua
liberdade.
O Código Penal existe para regrar essa interferência extrema e impedir
que fique submetida apenas ao arbítrio dos agentes do Estado. Deve
expressar a hierarquia de valores da sociedade e espelhar-se, sempre, na
Constituição, fundamento do pacto político da nação.
Esse é o cerne do princípio da proporcionalidade. Uma conduta que atente
contra um valor mais importante deve ensejar uma pena maior; um
comportamento que afete valores menos expressivos deve resultar em penas
mais baixas; e uma prática que não prejudique valor relevante para a
sociedade não deve ser criminalizada.
A verdadeira barafunda jurídica em que se converteu a legislação penal claramente desrespeita o princípio da proporcionalidade.
A vida e a liberdade são os bens mais preciosos para o ser humano.
Crimes como os de sequestro ou cárcere privado (pena de 1 a 3 anos de
prisão) e homicídio (6 a 20 anos) deveriam figurar no ápice da
hierarquia penal. Mas o código reserva penas exorbitantes a alguns
crimes banais, como soltar balões (1 a 3 anos) ou molestar cetáceos de
modo intencional (1 a 5 anos).
Outra falha de proporção ocorre com crimes tipificados em momentos de
grande comoção popular, seguida de cenas explícitas de debate
parlamentar oportunista.
Daí resultam situações esdrúxulas, como é o caso da falsificação de
produto terapêutico. O delito foi codificado no calor de denúncias de
adulteração de pílulas anticoncepcionais e contemplado com uma pena de
10 a 15 anos de prisão -que poderia ser aplicada até a quem falsificar
um xampu anticaspa, por exemplo.
A onda de sequestros-relâmpago fez com que o Congresso aprovasse uma lei
que atribui à lesão corporal durante um sequestro desse tipo pena maior
que a de homicídio: 16 a 24 anos.
Certos crimes, por não serem praticados com violência, poderiam ter um
tratamento menos severo, como o furto qualificado (pena hoje de até oito
anos de prisão).
Caberia discutir a inclusão nessa categoria até da venda de pequena
quantidade de drogas, que hoje não pode receber pena alternativa, só a
de privação de liberdade.
Por outro lado, crimes que, mesmo cometidos por uma só pessoa, produzem
danos profundos a toda a sociedade, recebem punições aquém do que parece
razoável.
Abuso de poder e prevaricação têm pena prevista de três meses a um ano;
submeter alguém a trabalho escravo, corrupção, peculato e tráfico de
influência, pena mínima de dois anos; lavagem de dinheiro, três anos. E,
diferentemente de países que já preveem penas altas para quem participa
de organizações criminosas estruturadas (3 a 6 anos na Itália), o
Brasil ainda usa a antiquada figura da quadrilha, com pena de 1 a 3
anos.
A desproporcionalidade generalizada compõe um direito penal desconectado
dos valores constitucionais e produz uma situação desconcertante.
Embora os cárceres estejam apinhados, e os governos admitam que não têm
como criar vagas para tanta gente, o sentimento de impunidade que
revolta a população só faz crescer.
Um Código Penal reformado à luz do princípio de proporcionalidade entres
os delitos criaria uma base sólida para tornar a política criminal mais
eficiente. As prisões não ficariam superlotadas com criminosos de
pequena periculosidade e se destinariam àqueles que realmente violaram
os valores mais preciosos da sociedade.
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Fonte: Editoral - Folha on line, 17/03/2012
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